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LIVROS
"A Nação Mercantilista" propõe nova interpretação do período colonial
Sínteses do Brasil
MANOLO FLORENTINO
especial para a Folha
Contribuir para a compreensão
do Brasil de hoje, país que nenhum cientista social pode honestamente dizer conhecer e cujo
único traço recorrente é a radical
exclusão social -eis aí o grande
mérito de "A Nação Mercantilista". Trata-se de livro construído a
partir de uma perspectiva interdisciplinar, já insinuada na trajetória de seu autor: tentando responder às suas próprias questões,
o renomado jornalista incursiona
por anos a fio na historiografia
brasileira, acabando por tornar-se
também um historiador; a formação anterior empresta à tarefa as
boas letras, e a reflexão transforma-se em tese de doutoramento
em história, defendida numa pós-graduação de ciência política. Assim, o resultado que ora chega ao
grande público não por acaso
rompe as fronteiras entre as diversas disciplinas das ciências humanas.
Não creio ser legítimo cobrar de
"A Nação Mercantilista" nada
além do que o próprio subtítulo
do livro explicita -ensaio sobre o
Brasil. Alerto para isso pois acompanhei de perto os debates sobre
trabalhos anteriores de Jorge Caldeira e pude perceber, por parte
de alguns historiadores, uma pitada de má vontade com "Mauá
-Empresário do Império" e "Viagem pela História do Brasil".
Além de muitas críticas pertinentes, pude capturar veladas
censuras de natureza meramente
ideológica. Percebi, igualmente,
um certo corporativismo acadêmico, do tipo "quem é esse jornalista que ousa se arvorar de historiador?". Como se o historiador
deste final de século ainda guardasse alguma coisa da imagem do
sábio insigne de épocas pretéritas,
que, devorando uvas em seu jardim, recebia os pobres mortais
ávidos por aprender sobre o tempo. Ou ainda como se um jornalista fosse necessariamente incapaz de inscrever a si e a seu entorno no tempo.
"A Nação Mercantilista" não é
um livro de história no sentido estrito do termo (isto é, produto do
manejo de elaborados corpus teóricos, de hipóteses de trabalho
claramente explicitadas, de metodologias rigorosas, de crítica interna aos documentos etc.). Está,
sim, alinhavado ao redor de uma
das mais ricas tradições do pensamento social brasileiro: a produção de ensaios que têm o Brasil
por objeto.
O resultado é, por certo, infinitamente mais modesto do que
"Casa-Grande e Senzala" ou "Os
Donos do Poder" -apenas para
citar duas jóias da carpintaria derivada dessa tradição. Sem maior
esforço, no entanto, captura-se
em diversas passagens do livro de
Caldeira alguns dos procedimentos do mestre de Apipucos e de
Raymundo Faoro (na verdade o
autor se aproxima mais do fino
pensador gaúcho, inscrevendo
seu trabalho na vertente dedicada
à reflexão sobre as relações entre
Estado e sociedade).
Jorge Caldeira se propõe à elaboração de uma síntese radicalmente alternativa da história econômica e social do Brasil colonial
e imperial, empreitada que, por si
só, já revela certa opção interpretativa: assume que muitos dos traços modeladores de nossa cultura
política contemporânea são caudatários da mais enraizada experiência histórica brasileira -a escravidão. Para tanto, constrói
passagens nas quais o esperado
convencionalismo analítico cede
lugar à abertura de instigantes e
corajosas picadas, sem jamais
perder de vista a totalidade do objeto Brasil. Insinua, por exemplo,
uma nova cronologia, bastante
distante da já clássica "teoria dos
ciclos", e transforma a "mamelucagem" (se nos perdoam o neologismo) em elemento essencial para o entendimento dos dois primeiros séculos da colonização.
A seguir, a mineração passa à
condição de etapa longamente
anunciada e dotada de particular
impacto estrutural -o aumento
da liquidez do sistema escravista.
Um processo, enfim, e não o resultado fortuito de descobertas
ocasionais. Em outro ponto alto
do livro, mostra o enorme peso de
um Brasil que, como hoje, passava ao largo das fontes oficiais e,
ainda como nos dias atuais, surpreendia os analistas com sua poderosa economia informal, com a
mestiçagem que dava o tom dos
movimentos culturais, enfim,
com uma pujante capacidade de
adaptação às circunstâncias.
Com base em pesquisas historiográficas de ponta, resultantes
da recente disseminação das pós-graduações nacionais, Caldeira
constrói grande parte de sua argumentação ao redor da noção de
taxa de alavancagem da economia escravista. Trocando em
miúdos e de modo muito esquemático: a quantidade de moeda
circulante na América portuguesa
seria extremamente exígua, pois
os recursos monetários aqui
amealhados com as exportações
retornavam à metrópole quando
da aquisição de escravos africanos
e mediante a forte ação fiscal da
Coroa.
Como resultado, as trocas entre
os agentes econômicos brasileiros
ou aqui residentes não poderiam
se expressar majoritariamente
por meio de contratos (ou seja,
mediante a afirmação da esfera
pública), mas sim por meio de relações pessoais, as quais não raro
ensejariam a emergência do império da violência social e do
clientelismo. Ressalte-se que a
construção do raciocínio é sempre amparada em comparações
com outros contextos coloniais,
em especial com a experiência da
colonização britânica no Caribe e
nos Estados Unidos.
Trata-se de um quadro explicativo instigante, que induz ao debate. De minha parte, não creio
haver garantia suficiente de que a
indubitável baixa liquidez da economia colonial derivasse fundamentalmente da ação fiscal metropolitana e, menos ainda, do
controle externo do tráfico de
africanos. Este, por exemplo,
mesmo antes de se tornar um negócio dominado por mercadores
residentes no Brasil, transacionava cativos baratos, dado que eram
frutos da violência pura e simples
na África. Tendo a crer, portanto,
ter a escassez monetária resultado
do exíguo grau assumido pela divisão social do trabalho, próprio
de economias escravistas.
Por outro lado, embora reconheça a importância e profundidade da indagação-chave de Caldeira ("por que não conseguimos
alçar-nos à condição de sociedade
contratualista?"), creio ser mais
interessante pensar o Brasil como
uma sociedade que jamais quis
transformar o contrato em meio
de expressão de seu "ethos". Esta
forma de colocar a questão talvez
nos permita detectar a existência
de um forte ideal aristocrático no
seio de nossas elites, ideal este
pautado não apenas no viver do
trabalho alheio, mas também no
manejo de uma ótica essencialmente privada, a qual associa de
modo orgânico poder e clientela.
Ao fechar a última página de "A
Nação Mercantilista", mesmo o
leitor atento não se livrará do incômodo sentimento de que o Brasil continua sem explicação. Mas
certamente saberá que livros como este provam valer a pena tentar.
A OBRA
A Nação Mercantilista - Ensaio sobre o Brasil - Jorge
Caldeira. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/ 11/816-6777). 416 págs. R$ 32,00.
Manolo Florentino é professor de história
na Universidade Federal do Rio de Janeiro e
autor de "Em Costas Negras" (Companhia
das Letras).
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