São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999
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LIVROS
"A Nação Mercantilista" propõe nova interpretação do período colonial
Sínteses do Brasil

MANOLO FLORENTINO
especial para a Folha

Contribuir para a compreensão do Brasil de hoje, país que nenhum cientista social pode honestamente dizer conhecer e cujo único traço recorrente é a radical exclusão social -eis aí o grande mérito de "A Nação Mercantilista". Trata-se de livro construído a partir de uma perspectiva interdisciplinar, já insinuada na trajetória de seu autor: tentando responder às suas próprias questões, o renomado jornalista incursiona por anos a fio na historiografia brasileira, acabando por tornar-se também um historiador; a formação anterior empresta à tarefa as boas letras, e a reflexão transforma-se em tese de doutoramento em história, defendida numa pós-graduação de ciência política. Assim, o resultado que ora chega ao grande público não por acaso rompe as fronteiras entre as diversas disciplinas das ciências humanas.
Não creio ser legítimo cobrar de "A Nação Mercantilista" nada além do que o próprio subtítulo do livro explicita -ensaio sobre o Brasil. Alerto para isso pois acompanhei de perto os debates sobre trabalhos anteriores de Jorge Caldeira e pude perceber, por parte de alguns historiadores, uma pitada de má vontade com "Mauá -Empresário do Império" e "Viagem pela História do Brasil".
Além de muitas críticas pertinentes, pude capturar veladas censuras de natureza meramente ideológica. Percebi, igualmente, um certo corporativismo acadêmico, do tipo "quem é esse jornalista que ousa se arvorar de historiador?". Como se o historiador deste final de século ainda guardasse alguma coisa da imagem do sábio insigne de épocas pretéritas, que, devorando uvas em seu jardim, recebia os pobres mortais ávidos por aprender sobre o tempo. Ou ainda como se um jornalista fosse necessariamente incapaz de inscrever a si e a seu entorno no tempo.
"A Nação Mercantilista" não é um livro de história no sentido estrito do termo (isto é, produto do manejo de elaborados corpus teóricos, de hipóteses de trabalho claramente explicitadas, de metodologias rigorosas, de crítica interna aos documentos etc.). Está, sim, alinhavado ao redor de uma das mais ricas tradições do pensamento social brasileiro: a produção de ensaios que têm o Brasil por objeto.
O resultado é, por certo, infinitamente mais modesto do que "Casa-Grande e Senzala" ou "Os Donos do Poder" -apenas para citar duas jóias da carpintaria derivada dessa tradição. Sem maior esforço, no entanto, captura-se em diversas passagens do livro de Caldeira alguns dos procedimentos do mestre de Apipucos e de Raymundo Faoro (na verdade o autor se aproxima mais do fino pensador gaúcho, inscrevendo seu trabalho na vertente dedicada à reflexão sobre as relações entre Estado e sociedade).
Jorge Caldeira se propõe à elaboração de uma síntese radicalmente alternativa da história econômica e social do Brasil colonial e imperial, empreitada que, por si só, já revela certa opção interpretativa: assume que muitos dos traços modeladores de nossa cultura política contemporânea são caudatários da mais enraizada experiência histórica brasileira -a escravidão. Para tanto, constrói passagens nas quais o esperado convencionalismo analítico cede lugar à abertura de instigantes e corajosas picadas, sem jamais perder de vista a totalidade do objeto Brasil. Insinua, por exemplo, uma nova cronologia, bastante distante da já clássica "teoria dos ciclos", e transforma a "mamelucagem" (se nos perdoam o neologismo) em elemento essencial para o entendimento dos dois primeiros séculos da colonização.
A seguir, a mineração passa à condição de etapa longamente anunciada e dotada de particular impacto estrutural -o aumento da liquidez do sistema escravista. Um processo, enfim, e não o resultado fortuito de descobertas ocasionais. Em outro ponto alto do livro, mostra o enorme peso de um Brasil que, como hoje, passava ao largo das fontes oficiais e, ainda como nos dias atuais, surpreendia os analistas com sua poderosa economia informal, com a mestiçagem que dava o tom dos movimentos culturais, enfim, com uma pujante capacidade de adaptação às circunstâncias.
Com base em pesquisas historiográficas de ponta, resultantes da recente disseminação das pós-graduações nacionais, Caldeira constrói grande parte de sua argumentação ao redor da noção de taxa de alavancagem da economia escravista. Trocando em miúdos e de modo muito esquemático: a quantidade de moeda circulante na América portuguesa seria extremamente exígua, pois os recursos monetários aqui amealhados com as exportações retornavam à metrópole quando da aquisição de escravos africanos e mediante a forte ação fiscal da Coroa.
Como resultado, as trocas entre os agentes econômicos brasileiros ou aqui residentes não poderiam se expressar majoritariamente por meio de contratos (ou seja, mediante a afirmação da esfera pública), mas sim por meio de relações pessoais, as quais não raro ensejariam a emergência do império da violência social e do clientelismo. Ressalte-se que a construção do raciocínio é sempre amparada em comparações com outros contextos coloniais, em especial com a experiência da colonização britânica no Caribe e nos Estados Unidos.
Trata-se de um quadro explicativo instigante, que induz ao debate. De minha parte, não creio haver garantia suficiente de que a indubitável baixa liquidez da economia colonial derivasse fundamentalmente da ação fiscal metropolitana e, menos ainda, do controle externo do tráfico de africanos. Este, por exemplo, mesmo antes de se tornar um negócio dominado por mercadores residentes no Brasil, transacionava cativos baratos, dado que eram frutos da violência pura e simples na África. Tendo a crer, portanto, ter a escassez monetária resultado do exíguo grau assumido pela divisão social do trabalho, próprio de economias escravistas.
Por outro lado, embora reconheça a importância e profundidade da indagação-chave de Caldeira ("por que não conseguimos alçar-nos à condição de sociedade contratualista?"), creio ser mais interessante pensar o Brasil como uma sociedade que jamais quis transformar o contrato em meio de expressão de seu "ethos". Esta forma de colocar a questão talvez nos permita detectar a existência de um forte ideal aristocrático no seio de nossas elites, ideal este pautado não apenas no viver do trabalho alheio, mas também no manejo de uma ótica essencialmente privada, a qual associa de modo orgânico poder e clientela.
Ao fechar a última página de "A Nação Mercantilista", mesmo o leitor atento não se livrará do incômodo sentimento de que o Brasil continua sem explicação. Mas certamente saberá que livros como este provam valer a pena tentar.



A OBRA
A Nação Mercantilista - Ensaio sobre o Brasil - Jorge Caldeira. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/ 11/816-6777). 416 págs. R$ 32,00.



Manolo Florentino é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).


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