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Estudo desmonta estereótipos sobre a vida no primeiro milênio
Lições do ano 1000
HÉLIO SCHWARTSMAN
especial para a Folha
"O Ano 1000", de Robert Lacey e
Danny Danziger, apresenta, para
o leitor brasileiro, uma dificuldade enunciada logo no subtítulo da
obra: "A Vida no Início do Primeiro Milênio". Neste conturbado fim de século, em que mal sobra tempo para pensar no que
aconteceu ontem, mergulhar nos
aspectos mais corriqueiros da vida dos ingleses na virada do ano
1000 pode parecer uma excentricidade, coisa de quem não tem o
que fazer.
Talvez seja mesmo. Mas vale a
pena. Trata-se de uma obra excepcionalmente bem escrita, dessas que cativam do começo ao fim
da leitura. Os autores, jornalistas
da revista "Cover", realizaram um
amplo trabalho de consulta a
mais de 50 historiadores e arqueólogos, produzindo um texto
multidisciplinarmente rico.
Na leitura de "O Ano 1000", a
primeira coisa que se descobre é
que os estereótipos comumente
atribuídos à Idade Média nem
sempre são exatos.
É bem verdade que eles eram
sujos. "Os regulamentos de um
mosteiro europeu do século 10
prescreviam cinco banhos para
cada monge por ano, mas isso era
fanatismo pelos padrões anglo-saxões de higiene pessoal. Um comentarista posterior escarneceu
da prática dinamarquesa (os invasores vikings) de tomar banho e
escovar os cabelos todos os sábados, mas admitiu que isso parecia
aumentar as chances dinamarquesas com as mulheres".
A decantada bravura dos cavaleiros medievais tampouco corresponde exatamente à realidade.
"A regra fundamental da guerra
no ano 1000 era evitar a batalha
sempre que possível." Os exércitos podiam passar verões inteiros
manobrando (só se guerreava nos
verões) para evitar o inimigo. Como não havia uniformes e todos
usavam as mesmas túnicas coloridas, era preciso olhar nos rostos
das pessoas para saber se se tratava de um inimigo ou companheiro. Como os exércitos eram relativamente pequenos, um combatente conhecia de vista todos os
seus companheiros. As flechas de
ponta de ferro batido eram difíceis de produzir. Os arqueiros
mandavam-nas forjar com marcas pessoais distintivas para recuperá-las depois da batalha.
A vida era realmente dura. Trabalho pesado e fome eram duas
constantes, esta última principalmente no mês de julho, quando a
primeira colheita da primavera
ainda não havia amadurecido e os
celeiros já estavam vazios. "Ao final da Idade Média, Breughel (o
pintor flamengo Pieter Breughel,
o Velho) mostrou os camponeses
dominados por acessos de histeria de massa. Os relatos históricos
desses frenesis rurais explicaram
o delírio em termos da dieta mínima com que os pobres tinham de
subsistir durante o hiato da fome.
As pessoas se tornavam insensatas pela falta de alimentos sólidos.
A química moderna demonstrou
como a ergotina que florescia no
centeio ao se tornar mofado era
uma fonte de ácido lisérgico, o
LSD."
Já a tão propalada ignorância da
Idade Média parece ser uma impostura, uma impostura criada a
partir do século 18. Foi o Século
das Luzes que forjou injustamente a Idade das Trevas. É claro que a
Idade Média não foi um período
de grande ebulição intelectual,
mas o funcionamento do corpo
humano, por exemplo, era bem
compreendido (a dissecação ainda não fora proibida pela Igreja).
"Um manuscrito muito copiado
do século 9, agora na Biblioteca
Real de Bruxelas, mostra 13 desenhos anatômicos, ilustrando as
posições que o feto podia assumir
no útero. Devem ter sido baseados em observações obstétricas
práticas, da mesma forma que a
seguinte descrição do desenvolvimento fetal, encontrada num documento anglo-saxão do século 11
na biblioteca de Canterbury: "Na
sexta semana o cérebro é coberto
por uma membrana extra; no segundo mês as veias se formam... e
o sangue flui então para os pés e as
mãos, ele se mostra articulado nos
braços e pernas, tem um desenvolvimento geral; no terceiro mês
ele é um homem, exceto pela alma"."
Em geografia o homem do ano
1000 também não ia tão mal. Foi
mais ou menos nesse ano que os
vikings que assolavam as costas
da Inglaterra chegaram ao Canadá, precedendo Colombo em
quase cinco séculos. E é bom lembrar que praticamente ninguém
considerava que a Terra fosse
chata ou que houvesse um grande
abismo em sua beirada. Para todos os estudiosos importantes
(Aristóteles, Eratóstenes, Beda,
Roger Bacon e Aquino), a Terra
sempre foi esférica. Como mostra
Stephen Jay Gould em "Dinossauro no Palheiro", apenas duas personagens sem a menor importância, Lactantius (245-325) e Cosmas Idicopleustes (sua obra é de
547-9), sustentavam que a Terra
era plana. A suposta batalha de
Colombo para convencer as pessoas de que a Terra era redonda
nunca aconteceu e é uma criação
do século 19, mais especificamente de John Draper e Andrew Dickson White, autores de obras de
ciência popular nos EUA.
Todas as épocas históricas têm
uma certa tendência a se julgarem
superiores às que a antecedem.
Até certo ponto isso é saudável. É
melhor do que ficar lamentando
uma idade de ouro perdida. O
problema começa quando esse
"historiocentrismo" dá lugar ao
menosprezo e à falsificação. Nenhum período histórico e nenhum elemento de cultura são insignificantes demais. Como mostram Lacey e Danziger, até a análise dos coprólitos do ano 1000 têm
algo a nos ensinar.
A OBRA
O Ano 1000 - Robert Lacey e Danny Danziger. Trad. Alfredo B.
Pinheiro de Lemos. Editora Campus. (r. Sete de Setembro, 111, 16º
andar, CEP 20050-002, RJ, tel. 0/ xx/21/509-5340). 184 págs. R$ 22,00.
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