São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999
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Estudo desmonta estereótipos sobre a vida no primeiro milênio
Lições do ano 1000

HÉLIO SCHWARTSMAN
especial para a Folha

"O Ano 1000", de Robert Lacey e Danny Danziger, apresenta, para o leitor brasileiro, uma dificuldade enunciada logo no subtítulo da obra: "A Vida no Início do Primeiro Milênio". Neste conturbado fim de século, em que mal sobra tempo para pensar no que aconteceu ontem, mergulhar nos aspectos mais corriqueiros da vida dos ingleses na virada do ano 1000 pode parecer uma excentricidade, coisa de quem não tem o que fazer.
Talvez seja mesmo. Mas vale a pena. Trata-se de uma obra excepcionalmente bem escrita, dessas que cativam do começo ao fim da leitura. Os autores, jornalistas da revista "Cover", realizaram um amplo trabalho de consulta a mais de 50 historiadores e arqueólogos, produzindo um texto multidisciplinarmente rico.
Na leitura de "O Ano 1000", a primeira coisa que se descobre é que os estereótipos comumente atribuídos à Idade Média nem sempre são exatos.
É bem verdade que eles eram sujos. "Os regulamentos de um mosteiro europeu do século 10 prescreviam cinco banhos para cada monge por ano, mas isso era fanatismo pelos padrões anglo-saxões de higiene pessoal. Um comentarista posterior escarneceu da prática dinamarquesa (os invasores vikings) de tomar banho e escovar os cabelos todos os sábados, mas admitiu que isso parecia aumentar as chances dinamarquesas com as mulheres".
A decantada bravura dos cavaleiros medievais tampouco corresponde exatamente à realidade. "A regra fundamental da guerra no ano 1000 era evitar a batalha sempre que possível." Os exércitos podiam passar verões inteiros manobrando (só se guerreava nos verões) para evitar o inimigo. Como não havia uniformes e todos usavam as mesmas túnicas coloridas, era preciso olhar nos rostos das pessoas para saber se se tratava de um inimigo ou companheiro. Como os exércitos eram relativamente pequenos, um combatente conhecia de vista todos os seus companheiros. As flechas de ponta de ferro batido eram difíceis de produzir. Os arqueiros mandavam-nas forjar com marcas pessoais distintivas para recuperá-las depois da batalha.
A vida era realmente dura. Trabalho pesado e fome eram duas constantes, esta última principalmente no mês de julho, quando a primeira colheita da primavera ainda não havia amadurecido e os celeiros já estavam vazios. "Ao final da Idade Média, Breughel (o pintor flamengo Pieter Breughel, o Velho) mostrou os camponeses dominados por acessos de histeria de massa. Os relatos históricos desses frenesis rurais explicaram o delírio em termos da dieta mínima com que os pobres tinham de subsistir durante o hiato da fome. As pessoas se tornavam insensatas pela falta de alimentos sólidos. A química moderna demonstrou como a ergotina que florescia no centeio ao se tornar mofado era uma fonte de ácido lisérgico, o LSD."
Já a tão propalada ignorância da Idade Média parece ser uma impostura, uma impostura criada a partir do século 18. Foi o Século das Luzes que forjou injustamente a Idade das Trevas. É claro que a Idade Média não foi um período de grande ebulição intelectual, mas o funcionamento do corpo humano, por exemplo, era bem compreendido (a dissecação ainda não fora proibida pela Igreja). "Um manuscrito muito copiado do século 9, agora na Biblioteca Real de Bruxelas, mostra 13 desenhos anatômicos, ilustrando as posições que o feto podia assumir no útero. Devem ter sido baseados em observações obstétricas práticas, da mesma forma que a seguinte descrição do desenvolvimento fetal, encontrada num documento anglo-saxão do século 11 na biblioteca de Canterbury: "Na sexta semana o cérebro é coberto por uma membrana extra; no segundo mês as veias se formam... e o sangue flui então para os pés e as mãos, ele se mostra articulado nos braços e pernas, tem um desenvolvimento geral; no terceiro mês ele é um homem, exceto pela alma"."
Em geografia o homem do ano 1000 também não ia tão mal. Foi mais ou menos nesse ano que os vikings que assolavam as costas da Inglaterra chegaram ao Canadá, precedendo Colombo em quase cinco séculos. E é bom lembrar que praticamente ninguém considerava que a Terra fosse chata ou que houvesse um grande abismo em sua beirada. Para todos os estudiosos importantes (Aristóteles, Eratóstenes, Beda, Roger Bacon e Aquino), a Terra sempre foi esférica. Como mostra Stephen Jay Gould em "Dinossauro no Palheiro", apenas duas personagens sem a menor importância, Lactantius (245-325) e Cosmas Idicopleustes (sua obra é de 547-9), sustentavam que a Terra era plana. A suposta batalha de Colombo para convencer as pessoas de que a Terra era redonda nunca aconteceu e é uma criação do século 19, mais especificamente de John Draper e Andrew Dickson White, autores de obras de ciência popular nos EUA.
Todas as épocas históricas têm uma certa tendência a se julgarem superiores às que a antecedem. Até certo ponto isso é saudável. É melhor do que ficar lamentando uma idade de ouro perdida. O problema começa quando esse "historiocentrismo" dá lugar ao menosprezo e à falsificação. Nenhum período histórico e nenhum elemento de cultura são insignificantes demais. Como mostram Lacey e Danziger, até a análise dos coprólitos do ano 1000 têm algo a nos ensinar.



A OBRA
O Ano 1000 - Robert Lacey e Danny Danziger. Trad. Alfredo B. Pinheiro de Lemos. Editora Campus. (r. Sete de Setembro, 111, 16º andar, CEP 20050-002, RJ, tel. 0/ xx/21/509-5340). 184 págs. R$ 22,00.




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