São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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HOMENS DE PRETO

Divulgação
Cena do filme "Os 39 Degraus" (1935), de Alfred Hitchcock



Professor da Universidade de Edimburgo e autor de "Disfarce e Dólar", Rhodri Jeffreys-Jones afirma que o 11 de setembro só ocorreu pela incompetência da CIA e do FBI em interpretar informações e diz que Bush é hoje refém dos serviços de inteligência


Marcio Aith
de Washington

Com sua propensão histórica para exagerar ameaças, a comunidade de inteligência dos EUA tem usado com habilidade os atentados de 11 de setembro de 2001 para manter o seu gigantismo burocrático e saciar seu apetite por dinheiro.
A opinião é do galês Rhodri Jeffreys-Jones, professor da Universidade de Edimburgo, na Escócia, especializado em história da espionagem americana. Segundo Jeffreys-Jones, a "sopa alfabética de agências" -como ele define a CIA, o FBI e a NSA [leia quadro na pág. 6"- perdeu há muito tempo a capacidade de análise de dados, a compreensão do funcionamento de outros países e até domínio de línguas estrangeiras. Em compensação, especializou-se em distorção e autopromoção, qualidades que, segundo ele, são inúteis no combate ao terrorismo.
Jeffreys-Jones escreveu quatro livros sobre o tema. O último deles, "Cloak and Dollar - A History of American Secret Intelligence [Disfarce e Dólar - Uma História da Inteligência Secreta Americana", transformou-se em best-seller entre a miríade de títulos sobre espionagem publicados depois dos atentados do ano passado.
Nesse livro, Jeffreys-Jones conta a história da espionagem dos EUA desde seu nascimento, em 1792, quando o presidente George Washington separou US$ 1 milhão (12% de todo o orçamento federal à época) para criar um "fundo contingente para relações estrangeiras".
O único objetivo desse fundo era obter informações sobre operações britânicas no Canadá e a movimentação dos índios no Oeste. O Congresso não podia fiscalizá-lo, nem o presidente era obrigado a prestar contas dos gastos.
"Foi uma das únicas vezes em que o presidente realmente teve controle da espionagem", disse o professor ao Mais!. "Washington era um estrategista e dependia da correção do relatório de seus espiões para decidir o que fazer. Desde então, quase todos os presidentes foram guiados ou se beneficiaram politicamente da hipérbole criada pela burocracia dessas agências."
Segundo Jeffreys-Jones, o governo dos EUA e seus serviços de inteligência criaram a visão deturpada de que os ataques do ano passado ocorreram simplesmente porque agências como o FBI e a CIA não estão aparelhadas e precisam de mais dinheiro. "Quanto dinheiro é suficiente? Quando Bush assumiu a presidência, o orçamento da inteligência norte-americana já estava em seu quinto ano consecutivo de expansão. O orçamento previsto para 2000, de US$ 30 bilhões, já era maior que todos os gastos militares russos combinados."

de Washington

Na entrevista abaixo o professor Jeffreys-Jones diz que foi Allan Pinkerton, o primeiro detetive particular do mundo e chefe do serviço secreto de Abraham Lincoln, quem inaugurou a manipulação de dados pelos serviços secretos. (MA)

Um ano depois do maior atentado terrorista em toda a história, qual é o balanço que o sr. faz do papel da comunidade de informação norte-americana (CIA, FBI e NSA) na prevenção de ataques similares? Espiões falharam ao não prever o 11 de setembro? Seriam capazes de evitar um novo atentado hoje?
Em princípio, serviços de inteligência nunca foram eficazes na previsão de ataques-surpresa. Eles podem desenvolver sistemas para evitar a repetição da última tragédia, mas nunca de novas formas de atentado. Ataques-surpresa são, deliberadamente, não-sistêmicos. Mas a inteligência americana, com a sua propensão histórica para distorcer ameaças com o objetivo de manter seu gigantismo burocrático e seu apetite por dinheiro, tem sua própria parcela de culpa. Inteligência requer análise, não acúmulo de informações. A sopa alfabética de agências -especialmente a CIA- perdeu a capacidade de análise de dados, compreensão do funcionamento de outros países e até domínio de línguas estrangeiras. Duas mensagens em árabe, datadas "Setembro 10, 2001" e interceptadas pelos EUA, alertavam para um ataque no dia seguinte -"Amanhã é zero hora", diziam elas. No entanto não foram traduzidas em tempo. A falta de proficiência linguística é uma queixa antiga. Em seu livro "The Ugly American" (O Americano Feio, ed. Norton), de 1959, William Lederer e Eugene Burdick já notavam que menos de três entre dez agentes norte-americanos que serviam na Ásia falavam a língua local durante a Guerra Fria. Nove entre dez agentes soviéticos falavam a língua do país onde operavam.
Se os grupos de inteligência não servem, em tese, para prever atentados, qual é sua utilidade no combate ao terrorismo?
Analistas de inteligência podem indicar a direção do fluxo dos acontecimentos, mas não podem mudá-la. Cabe aos políticos arquitetar essa mudança. Essa noção se perdeu com a histeria nacional criada nos EUA depois de 11 de setembro. Sob o ponto de vista político -e não de espionagem-, o 11 de setembro foi um evento esperado para ocorrer. Nenhum argumento moralista sobre o extremismo pode retirar o fato de que o terrorismo espalhado pelo mundo reflete um sentimento arraigado de injustiça. IRA [Exército Republicano Irlandês], Irgun [Irgun Zvai Leumi, organização terrorista judaica], Mau-Mau [insurreição da nação Kikuyu contra o governo central do Quênia" e Hamas [grupo extremista islâmico] não operam no vácuo. Não é possível ignorar os vínculos entre a política norte-americana com relação aos mundos árabe e islâmico e a escolha de alvos pelo terrorismo internacional. No entanto criou-se nos EUA a visão deturpada de que os ataques ocorreram simplesmente porque os serviços de inteligência não estavam aparelhados e precisavam de mais dinheiro. Quanto dinheiro é suficiente? Quando Bush assumiu a Presidência, o orçamento da inteligência norte-americana já estava em seu quinto ano consecutivo de expansão. O orçamento previsto para 2000, de US$ 30 bilhões, já era maior que todos os gastos militares russos combinados. Os EUA gastavam cinco vezes mais em inteligência do que toda a Europa. No entanto desde 11 de setembro o orçamento de inteligência (que exclui o orçamento militar) cresceu 5%, segundo dados disponíveis. Dar dinheiro dos contribuintes à CIA é como jogar moedas numa fonte: se você for supersticioso, pode sentir-se melhor.
O sr. diz que as tendências ao exagero e à deturpação são traços históricos da espionagem norte-americana. O sr. pode dar exemplos?
A hipérbole nasceu com Allan Pinkerton [1819-84, escocês], primeiro detetive particular do mundo e chefe do serviço secreto de Abraham Lincoln (1861-1865) durante a Guerra Civil. Ele foi contratado em 1861 e demitido em 1862 por exagerar o número de soldados inimigos, talvez com o objetivo de atrair atenção e recursos. Seus relatórios equivocados prolongaram a guerra e atrapalharam as decisões de Lincoln. Meio século depois, Stanley Finch [1908-1912], então chefe do FBI, insistiu que nenhuma filha, mulher ou mãe norte-americanas estavam livres de sequestros promovidos por gangues de escravas brancas. Causou uma histeria coletiva. Finch era viciado em pôquer e dizia que adorava blefar. Durante a Segunda Guerra Mundial, as estimativas do poderio da força aérea alemã feitas por espiões de guerra norte-americanos eram 250% maiores que aquelas feitas por britânicos. Em 1941, o diretor de inteligência naval britânico, John Godfrey, notou que havia uma "predileção pelo sensacionalismo" em todos os setores da inteligência norte-americana. Há centenas de outros casos.
Seu último livro confere um papel importante a Pinkerton na formação do caráter atual da comunidade de inteligência americana. Por quê?
Pinkerton inventou tanto o anticomunismo quanto a resposta clandestina a ele. Pinkerton, William Burns e outros detetives privados usaram a retórica anticomunista para se promover -com tal intensidade que não poderiam deixar a ameaça evaporar-se. Além disso, com sua empresa de detetives e sua participação no serviço secreto de Lincoln, foi o primeiro a usar o exagero e a misturar interesses privados ao exercício de espionagem pública.
Qual seria o caminho da comunidade de inteligência dos EUA se o 11 de setembro não tivesse ocorrido?
Bush já queria expandir o orçamento dos serviços de inteligência antes mesmo de setembro. Lembre-se de que a ameaça chinesa imperava. Supostamente havia espiões chineses espalhados pelo território americano, o que exigia um esforço gigantesco de contra-espionagem. Hoje ninguém mais fala no assunto, o que demonstra o clima de irracionalidade nisso tudo. A histeria antichinesa, que trouxe de volta a lendária ameaça da quinta-coluna, reforçou a sensação de que o FBI ofende liberdades civis ao concentrar -por mero simplismo, preguiça e xenofobia- as investigações em integrantes da comunidade estrangeira, como o cientista Wen Ho Lee [taiwanês que ficou preso durante nove meses por suposta espionagem para Pequim], de Los Alamos. A ironia é que o FBI nasceu precisamente para combater a discriminação racial e defender as liberdades civis. Mas o FBI tem uma mentalidade policialesca, mais interessada em prender pessoas do que em obter informações.
As ameaças após o 11 de setembro são exageradas?
Exageradas e deturpadas. A Al Qaeda deve ser levada a sério, mas um ataque como o de 11 de setembro exige o efeito surpresa. Se olharmos ao redor do mundo, há ameaças mais sérias. É improvável que a próxima ameaça tenha semelhanças com o 11 de setembro -e pode não ter relação com a Al Qaeda. Não é preciso ser pessimista para formular cenários alternativos, agora que oito países podem dar início a uma guerra nuclear e que outros se esforçam para alcançá-los.
O sr. não acha que exagera ao acusar os serviços de inteligência de exagero? Como o sr. reagiria se, antes de 11 de setembro, dirigentes da comunidade de inteligência previssem publicamente que quatro aviões seriam sequestrados e jogados contra alvos dentro dos EUA?
Concordo que parcela importante das críticas à comunidade de inteligência dos EUA se guia por ambições pessoais e por um idealismo internacionalista infantil. No entanto é preciso ter em mente que os ataques de 11 de setembro ocorreram sem que espiões norte-americanos tivessem compreendido os indícios existentes. Além disso, não podemos esquecer que a burocracia da espionagem geralmente tira vantagens de seus próprios fracassos. Uma prática bizarra e geralmente repetida tem sido a premiação dos fracassos. Sempre que desastres ocorrem, governos criam mecanismos de investigações e invariavelmente chegam à conclusão de que ocorreram porque não havia fundos suficientes para os serviços de inteligência.
Em seguida, presidentes e o Congresso autorizam a elevação do orçamento para manter as mesmas estruturas que falharam e criar novas estruturas ineficientes. Foi assim que o ataque a Pearl Harbor criou a CIA e a OSS (Office of Strategic Services) e os fracassos da NSA durante a década de 1990 levaram a aumentos de orçamento, em vez de cortes punitivos.
Em seu livro o sr. traça um histórico do relacionamento entre presidentes norte-americanos e seus serviços de inteligência. O sr. distingue o papel de George Washington, que tinha pleno conhecimento da realidade e corrigia pessoalmente relatórios de espiões, daquele de Lincoln, que era refém de seus serviços de inteligência. Qual é a relação de dependência de George W. Bush e seus serviços de inteligência?
Bush é refém da comunidade de inteligência. Não tem uma mente crítica. Pessoas exageram quando dizem que Ronald Reagan foi um presidente estúpido, mas acho que o atual presidente não tem capacidade crítica. Durante a batalha pela independência dos EUA, Washington dependia da exatidão dos relatórios de seus espiões para ganhar a guerra contra os ingleses. Não consigo imaginar o presidente Bush contestando e orientando Tenet [George Tenet, atual diretor da CIA] durante as reuniões matinais de 30 minutos na Casa Branca. Mas há outros fatores guiando a política de Bush para a comunidade de inteligência. Seu pai, o ex-presidente George Bush, foi diretor da CIA entre janeiro de 1976 e janeiro de 1977. Ele não foi demitido, mas forçado a sair do cargo contra sua vontade pelo presidente Jimmy Carter. Há uma missão familiar para apoiar a comunidade de inteligência tal como Bush, o pai, a concebe -fechada, expansionista, conservadora, defensora de operações secretas e insensível a idiossincrasias mundiais. Esse é o problema da CIA sob Bush. Há uma missão para terminar uma agenda incompleta, que envolve ainda tirar Saddam Hussein do poder no Iraque. O último aspecto é que governos fracos precisam de algum tipo de ameaça para galvanizar apoio popular a seus objetivos. E esse era, por natureza, um governo fraco antes de 11 de setembro. Depois de 11 de setembro, a CIA recebeu uma liberdade perigosa para atuar no mundo. Temo ouvir, num futuro próximo, histórias sobre assassinatos e atentados no exterior.
Você acha que a CIA seria suficientemente louca para "fabricar" uma ameaça nuclear com o objetivo de invadir o Iraque?
Minha análise histórica é que a CIA não inventaria, mas repassaria ao governo um dado sabidamente inventado por outra agência de inteligência, talvez de um país aliado.


Onde encomendar
"Cloak and Dollar" pode ser encomendado, em SP, à livraria Cultura (tel. 0/xx/11/ 3285-4033) e, no RJ, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 2294-5994).



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