São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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A REPÚBLICA CONTRA-ATACA


O escritor Gore Vidal, autor de "A Era Dourada", retoma sua crítica ao totalitarismo do Estado americano e diz que a população está cada vez mais ressentida com o seu país


Marc Cooper
do "L.A. Weekly"

Ele talvez seja o último republicano -com "r" minúsculo- dos Estados Unidos. Gore Vidal, que está com 76 anos, passou sua vida fazendo a crítica dos impulsos imperiais americanos e, em duas dúzias de romances e centenas de ensaios, argumentou intempestivamente que os EUA deveriam retroceder para suas raízes mais jeffersonianas, que deveriam parar de imiscuir-se nos assuntos de outros países e na vida privada de seus próprios cidadãos.
É esse também o fio que permeia seu best-seller mais recente, uma coletânea esdruxulamente embalada de ensaios publicados na esteira de 11 de setembro e intitulada "Perpetual War for Perpetual Peace - How We Got to Be So Hated" (Guerra Perpétua para a Paz Perpétua -Como Nos Fizemos Odiar Tanto, ed. Thunder's Mouth/ Nation Books). Para responder à pergunta contida no subtítulo, Vidal afirma que não temos o direito de coçar a cabeça, perplexos, tentando adivinhar o que motivou os responsáveis pelos dois maiores ataques terroristas de nossa história -o atentado de Oklahoma City, em 1995, e o holocausto das torres gêmeas, em setembro do ano passado.


Atentado em Oklahoma City Em 19/4/95 uma bomba explodiu dentro de um caminhão no centro da cidade, atingindo metade dos nove andares do edifício Murrah Federal Building. Naquele que foi o pior ataque terrorista em solo norte-americano ocorrido até então, 168 pessoas morreram, entre homens, mulheres e crianças. Detido por dirigir sem licença, cerca de 90 minutos após a explosão, Timothy McVeigh, 27, seria acusado pelo atentado pouco antes de ser solto, em 21 de abril. Seu amigo de Exército e cúmplice, Terry Nichols, sabendo que também estava sendo procurado, se entregaria voluntariamente à polícia. McVeigh foi condenado à pena de morte pelas acusações de terrorismo, assassinato e conspiração, sendo executado em junho de 2001. Nichols fora condenado à prisão perpétua, em 1998.


Ele escreve: "Existe uma lei da física (ainda existia, da última vez em que conferi) segundo a qual, na natureza, não existe ação sem reação. O mesmo parece aplicar-se à natureza humana -ou seja, à história". A "ação" à qual Vidal se refere é a arrogância de um império americano no exterior (ilustrada por uma carta que, em 20 páginas, mapeia as aventuras militares dos EUA no exterior desde o final da Segunda Guerra Mundial) e um Estado policial nascente em casa. A "reação" inevitável, diz ele, não é nada menos que a obra sangrenta de Osama bin Laden [terrorista saudita que lidera a Al Qaeda] e Timothy McVeigh. "Ambos se sentiram enfurecidos", diz ele, "com as agressões impensadas lançadas por nosso governo contra outras sociedades" -e, assim, foram "levados" a responder com violência horrenda.
Algumas pessoas poderiam interpretar essa visão como uma sugestão de que os Estados Unidos teriam feito por merecer o 11 de setembro. Assim, quando tive um encontro com Vidal na residência que ele mantém em Hollywood Hills (embora ainda passe a maior parte de seu tempo na Itália), a primeira pergunta que lhe fiz foi:
Você está afirmando que os 3.000 civis mortos em 11 de setembro mereceram sua sorte, de alguma maneira?
Não acho que nós, o povo americano, merecêssemos o que aconteceu. Tampouco merecemos o tipo de governo que temos tido nos últimos 40 anos. Nossos governos atraíram esses fatos para nós com as ações que empreenderam em todo o mundo. Infelizmente só recebemos desinformação do "New York Times" e outros meios oficiais. Os americanos não fazem idéia da extensão dos danos causados por seu governo. Desde 1947-48, já lançamos mais de 250 ataques militares contra outros países, sem provocação anterior. Trata-se de grandes ataques em toda parte, do Panamá ao Irã. E essa nem sequer é uma lista completa. Ela não inclui lugares como o Chile, já que aquela [a deposição de Salvador Allende em 11 de setembro de 1973] foi uma operação da CIA. Incluí na lista apenas os ataques das Forças Armadas. Ou essas coisas não são ditas aos americanos ou lhes é informado que atacamos porque, digamos, [o ex-ditador panamenho Manuel] Noriega era o ponto nevrálgico de todo o tráfico mundial de drogas, e precisávamos nos livrar dele. Então, no processo de nos livrarmos dele, matamos alguns panamenhos. O governo se aproveita da relativa inocência dos americanos ou, para ser mais preciso, de sua ignorância. É provavelmente por isso que não se ensina geografia, de verdade, desde a Segunda Guerra Mundial -para manter as pessoas na ignorância sobre onde estamos detonando tudo, sobre por que a Enron [empresa de energia que quebrou em dezembro passado] quer explodir tudo ou por que a Unocal, uma grande empresa que constrói oleodutos, quer que uma guerra comece em determinado lugar. E as pessoas dos países que recebem nossas bombas ficam iradas. Os afegãos não tinham nada a ver com o que aconteceu ao nosso país em 11 de setembro. Mas a Arábia Saudita, sim. Parece que Bin Laden está envolvido, mas não sabemos ao certo. Quero dizer, quando fomos ao Afeganistão para tomar conta do país e detonar tudo, nosso general em comando, indagado sobre quanto tempo levaria para encontrar Bin Laden, fez cara de surpreso e disse: "Bem, não é para isso que estamos aqui".
Na realidade -e isso é algo que você não verá dito em lugar nenhum, no momento- houve uma tentativa imperial de apossar-se de recursos energéticos. Até agora o golfo Pérsico tem sido nossa fonte principal de petróleo importado. Fomos para lá, para o Afeganistão, não para tirar Bin Laden de lá e termos nossa vingança. Fomos para o Afeganistão em parte porque o Taleban -que nós mesmos instalamos no poder, na época da ocupação russa- estava ficando desvairado demais e porque a empresa californiana Unocal tinha feito um acordo com o Taleban para construir um oleoduto que lhe desse acesso ao petróleo da região do mar Cáspio, que é a maior reserva petrolífera do mundo. Ela queria fazer com que aquele petróleo passasse por aquele oleoduto, atravessando o Afeganistão e o Paquistão até Karachi, e, de lá, o embarcar para a China, o que seria tremendamente lucrativo. Qualquer grande empresa que conseguisse participar desse negócio faria uma fortuna. E você verá que essas empresas têm suas ligações com Bush, [o vice-presidente] Cheney, [o secretário da Defesa, Donald] Rumsfeld ou algum outro membro da "Junta do Gás e do Petróleo", que, ao lado do Pentágono, governa os EUA. Tínhamos planejado ocupar o Afeganistão em outubro [de 2001", e Bin Laden, ou seja quem for que nos tenha golpeado em setembro, lançou um ataque preventivo antecipado. Eles sabiam que estávamos a caminho. E o ataque foi um aviso, uma tentativa de nos pegar desprevenidos.
Mesmo assim, se lermos a carta das intervenções militares americanas em seu livro e concluirmos que o governo americano é, de fato, uma "fonte do mal", parafraseando o próprio livro, não seria concebível que existissem outras forças do mal, além dele? Você não pode imaginar forças do obscurantismo religioso, por exemplo, que agem independentemente de nós e que poderiam nos fazer mal pelo simples fato de também serem malévolas?
Sim, sem dúvida. Mas você mencionou o grupo errado. Você mencionou uma das famílias mais ricas do mundo -a família Bin Laden. Ela tem laços muito estreitos com a família real da Arábia Saudita, que nos convenceu, por meio de trapaças, a atuar como guarda-costas dela contra sua própria população, que é ainda mais fundamentalista do que ela. Logo, se for mesmo Bin Laden, estamos lidando com uma entidade poderosa. O que não é verdade é que pessoas como ele simplesmente saíram do nada. O americano médio pensa que simplesmente doamos bilhões de dólares em assistência externa, quando na verdade somos os que menos doam para o exterior entre os países desenvolvidos. E a maior parte do que doamos vai para Israel, além de um pouco para o Egito. Você está há décadas lamentando a erosão das liberdades civis e a conversão dos Estados Unidos, de república em algo que você denomina império. Os efeitos posteriores ao 11 de setembro, coisas como a lei "USA Patriot", simplesmente nos impeliram um pouco mais longe nesse caminho ou, na verdade, constituem uma espécie de ponto de virada histórico?


"USA Patriot Act" Assinado pelo presidente George W. Bush em 24 de outubro de 2001, ele autoriza os serviços de polícia e de informação norte-americanos a praticarem, sob um controle judiciário reduzido, escutas e inquéritos secretos, vigilância de comunicações telefônicas e pela internet e também partilharem as informações obtidas.


A segunda lei da termodinâmica vale sempre: tudo está sempre se esgotando. E o mesmo se aplica à nossa "Bill of Rights" [declaração formal dos direitos fundamentais dos cidadãos, incorporada à Constituição norte-americana sob a forma das emendas constitucionais de números 1 a 10]. A junta atualmente responsável por nossos assuntos -uma junta que não foi legalmente eleita, mas que foi instalada pela Suprema Corte, atendendo aos interesses dos lobbies do petróleo, do gás e da defesa- utilizou-se primeiro de Oklahoma City e, agora, do 11 de setembro para erodir as coisas ainda mais. E, quando o assunto é Oklahoma City e Tim McVeigh, bem, ele também teve suas razões próprias para realizar seu feito desprezível. Milhões de americanos concordam com seu raciocínio geral, embora ninguém, creio eu, concorde com a idéia de fazer crianças voar pelos ares. Mas o povo americano sabe instintivamente, sim, quando o governo sai dos eixos, como aconteceu em Waco e em Ruby Ridge.


Ruby Ridge Uma das ações mais controversas do FBI, que levantou questões sérias sobre o uso abusivo de força por agências federais contra cidadãos americanos. Em 22/8/1992, nas montanhas de Ruby Ridge, no Estado de Idaho, um confronto de uma semana entre o partidário da supremacia branca e separatista Randy Weaver e agentes federais terminou em um tiroteio no qual um atirador de elite do FBI matou a mulher de Weaver, Vicky. O confronto tivera início uma semana antes, quando um oficial federal tentou prender Weaver por ter faltado a uma audiência relativa a acusação de porte de armas. Uma força-tarefa concluiu em relatório de 1994 que a equipe de resgate a reféns do FBI reagiu de forma exagerada à ameaça de violência e violou diretrizes da agência.


Assim, o governo deveria pôr uma coisa em sua cabeça: que é odiado não só pelos estrangeiros cujos países destruíamos, mas também por americanos cujas vidas foram destruídas. Todo o chamado movimento Patriota nos EUA teve sua origem em pessoas expulsas de suas fazendas familiares ou cujos pais ou avôs tinham sido expulsos. Temos milhões de cidadãos americanos ressentidos, que não gostam da maneira como o país está sendo conduzido. Eles podem ser escravos, podem colher algodão ou fazer a mais recente coisa incômoda que existe a ser feita. Mas não terão, nas palavras de Richard Nixon, "uma parte na ação".
No entanto os americanos parecem responder bem a uma espécie de patriotada, o "inimigo do mês", lançada por Washington. Você diz que milhões de americanos odeiam o governo federal. Mas algo como 75% dos americanos dizem apoiar George W. Bush, especialmente no que diz respeito à guerra.
Espero que você não acredite nessas cifras. Você não sabe que as pesquisas de opinião são fraudadas? É simples. Depois de 11 de setembro, o país ficou realmente apavorado e em choque. Bush faz uma pequena dança da guerra, fala sobre o "eixo do mal" e sobre todos os países que ele vai castigar. E sobre quanto tempo isso vai levar, diz ele com um sorriso feliz, já que isso significa bilhões ou trilhões para o Pentágono e seus amigos do setor petrolífero. E isso significa refrear nossas liberdades.
De quem? Do povo americano?
Sim, do povo americano. Ele é convocado a dar respostas rápidas a várias perguntas: "Você o aprova?". "Oh, sim, sim, sim, é claro. Isso mesmo, ele detonou todas aquelas cidades de nome estranho, lá longe." Isso não quer dizer que as pessoas gostem dele. Ouça bem o que eu digo. Bush vai deixar o cargo como o presidente menos popular na história americana. A "junta" causou estragos demais. Ela agiu de maneira suspeita, mostrando que já tinha a lei "USA Patriot" pronta para soltar, assim que fomos atacados.
Estavam prontos para revogar o habeas corpus, os processos costumeiros da lei, a privacidade das comunicações entre advogado e cliente. Estavam prontos. O que significa que já conseguiram seu Estado policial. Basta pegar um avião para qualquer lugar, hoje, e você está nas mãos de um Estado policial arbitrário.
Você não quer contar com esse tipo de proteção quando viaja de avião?
Uma coisa é ter cuidado, e com certeza queremos que as companhias aéreas tomem cuidados para prevenir ataques terroristas. Mas isso é alegria pura para eles, para o governo federal. Agora conseguiram controlar todo mundo, porque todo mundo viaja de avião.
Vamos falar de uma de suas queixas prediletas, a mídia americana. Alguns dizem que ela vem fazendo um trabalho melhor do que o costumeiro desde 11 de setembro. Mas suspeito de que você não concorde com isso.
Não mesmo. Vivo parte do ano na Itália. E descubro mais sobre o que está acontecendo no Oriente Médio lendo a imprensa britânica, a francesa, até mesmo a italiana (e não a americana). Tudo aqui é apresentado com um viés. Estou falando em Bush fazendo sua dança de guerra no Congresso, falando em "malfeitores" e num "eixo do mal" -Irã, Iraque e Coréia do Norte. Vi isso e pensei: "Ele nem sequer sabe o que quer dizer a palavra "eixo'". Alguém lhe soprou a palavra, só isso. E a imprensa nem sequer o questionou. Trata-se de uma declaração das mais insensatas que se poderia fazer. Depois ele cita cerca de uma dúzia de outros países que podem ter "pessoas malévolas", que podem cometer "atos terroristas". O que é um ato terrorista? O que ele pensar que é. Vamos perseguir essas pessoas porque somos bons, e elas, más. Vamos "pegá-las", "arrasar com elas". Uma pessoa capaz de levantar-se e fazer aquele discurso perante o povo americano não apenas é idiota, mas também está convencida de que somos todos idiotas. Mas não somos. Estamos amedrontados, seja pela desinformação que recebemos da mídia, uma visão enviesada do mundo, seja pelos impostos atrozes que subsidiam essa máquina de guerra permanente. E não temos nenhuma representação. Apenas as grandes empresas estão representadas no Congresso. É por isso que apenas 24% da população americana votou em Bush.
Os EUA deveriam simplesmente retirar suas forças militares de todos os lugares e voltar para casa?
Sim. Sem exceções. Não somos a polícia do mundo. Não conseguimos nem sequer policiar os Estados Unidos, exceto para roubar dinheiro do povo e semear o caos, de maneira geral. A polícia é vista com frequência, e corretamente, na maior parte do país, como inimiga. Acho que é hora de deixarmos o império para trás; ele não está fazendo bem a ninguém. Já nos custou trilhões de dólares, fato que me leva a crer que vai terminar por conta própria.
Você se descreve como um dos últimos defensores da República Americana contra o Império Americano. Ainda lhe sobraram aliados? Quero dizer, não temos uma oposição digna do nome neste país, não é mesmo?
Às vezes me sinto como se eu fosse o derradeiro defensor da república. Não faltam cabeças pensantes jurídicas que defendem a "Bill of Rights", mas elas não parecem ser muito vigorosas. Ou seja: depois de 11 de setembro, fez-se silêncio enquanto eram decretadas essas leis draconianas, realmente totalitárias, uma após a outra.
Então qual seria a saída? Nos anos 1980, você pedia um novo tipo de convenção constitucional populista. Você ainda acredita que essa seja uma solução possível?
Bem, seria a menos sangrenta. Porque haverá problemas, e grandes. Os loucos se reuniram para conseguir uma emenda de orçamento equilibrado e conseguiram que a maioria dos Estados concordasse com a proposta de uma convenção constitucional. O senador Sam Ervin [que chefiou o comitê de investigações do Watergate], hoje morto, pesquisou o que aconteceria numa convenção desse tipo, e, ao que consta, tudo poderia ser discutido e disputado. Uma vez que nós, o povo, estamos reunidos em assembléia, conforme pede a Constituição, podemos fazer qualquer coisa, podemos jogar fora todo o Executivo, todo o Judiciário, o Congresso inteiro. Podemos instaurar um lama tibetano no poder. Ou podemos transformar o país num grande centro de triagem da cientologia. E os liberais, é claro, são os mais lerdos e burros, porque eles não entendem seus próprios interesses. A direita é composta por vilões, mas estes sabem o que querem: o dinheiro de todo mundo. E sabem que não gostam de negros nem de minorias. Gostam de ferrar com todos com quem topam no caminho. Mas, uma vez que você sabe o que quer, passa a estar em posição mais forte do que aqueles que só sabem dizer: "Oh, não, você não deve fazer aquilo". Devemos ter liberdade de expressão. Liberdade de expressão para o quê? Para concordar com o "New York Times"? Os liberais sempre dizem: "Meu Deus, se houver uma constituição convencional, vão acabar com a "Bill of Rights'". Mas já acabaram com ela! Ela não existe mais. Não sobrou praticamente nada. Assim, se eles, os famosos "eles", mostrarem constituir a maioria da população americana e não quiserem uma "Bill of Rights", então, na minha opinião, vamos pôr um fim nisso. Vamos jogar a "Bill of Rights" pela janela. Se vocês não a quiserem, não a terão.
Gore Vidal é escritor norte-americano e um dos principais intelectuais dos EUA. Entre seus romances publicados no Brasil estão "A Era Dourada" (ed. Rocco) e "Criação" (ed. Nova Fronteira). A íntegra deste texto foi publicada no "L.A. Weekly".
Tradução de Clara Allain.


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