São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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O LIVRE-ARBÍTRIO COMPULSÓRIO


Um ano depois, o 11 de setembro avulta como uma oportunidade perdida para repensar as relações entre as nações


por Slavoj Zizek

Para grande desprazer de muitos esquerdistas, os Estados Unidos gozaram de certo capital moral depois de 1990: a vitória na Guerra Fria foi também uma vitória moral pelo menos à medida que expôs a pobreza e a corrupção interna dos regimes comunistas. O 11 de setembro constituiu um reforço para esse capital moral: pela primeira vez os EUA se viram no papel de vítima, com um enorme sofrimento humano equiparável às catástrofes humanitárias do Terceiro Mundo. Um ano depois, o capital moral se desgastou. Como ocorreu essa perda, muito mais prejudicial que a queda do Dow Jones no mesmo período? Um dos grandes eventos da cultura popular de 2002, a estréia de "Guerra nas Estrelas 2 - O Ataque dos Clones", talvez aponte para uma resposta. Em uma entrevista na época do lançamento do filme, o diretor George Lucas explicou seu tema central: "Como a República se transformou em Império? Isso é comparável a: como Anakin se transformou em Darth Vader? Como uma pessoa boa torna-se má, e como uma democracia torna-se uma ditadura? Não que o Império tenha conquistado a República, mas o Império é a República. [...] Um dia a princesa Léa e seus amigos acordam e dizem: "Isto não é mais a República, é o Império. Nós somos os bandidos'".

Impasse fundamental
Aí reside o perigo que os EUA estão cortejando em sua "guerra contra o terror", o perigo claramente percebido um século atrás por G.K. Chesterton, que aplicou o impasse fundamental da crítica da religião: "Homens que começam a combater a igreja em nome da liberdade e da humanidade acabam desprezando a liberdade e a humanidade desde que possam combater a igreja. [...] Os secularistas não destruíram as coisas divinas; mas os secularistas destruíram as coisas seculares, se isso lhes servia de algum conforto". O mesmo não vale para os próprios defensores da religião? Quantos advogados fanáticos da religião começaram atacando ferozmente a cultura secular contemporânea e terminaram abandonando toda experiência religiosa significativa? De maneira semelhante, muitos guerreiros liberais estão tão ávidos para combater o fundamentalismo antidemocrático que acabarão abandonando a liberdade e a democracia desde que possam combater o terror. Eles têm tal paixão por provar que o fundamentalismo não-cristão é a principal ameaça à liberdade que estão prontos para recuar à posição de que devemos limitar nossa própria liberdade aqui e agora, em nossas sociedades supostamente cristãs. Se os "terroristas" estão dispostos a destruir este mundo por amor a outro mundo, nossos guerreiros antiterror estão prontos para destruir seu próprio mundo democrático por ódio ao outro, muçulmano. Alguns deles amam tanto a dignidade humana que estão dispostos a legalizar a tortura -a degradação máxima da dignidade humana- para defendê-la...

Direitos humanos em baixa
Toda uma série de iniciativas recentes aponta nessa direção: desde a recusa dos EUA a que o tribunal mundial de crimes de guerra, em Haia (Holanda), abrigue iniciativas políticas como a Operação TIPS [Terrorist Information and Prevention System - sistema de prevenção e informação sobre terroristas] a debates sobre a necessidade de legitimar a tortura. Infelizmente os EUA não estão sós nessa tendência. Recentemente uma decisão sinistra da União Européia passou quase despercebida: o plano para estabelecer uma polícia de fronteiras pan-européia, para garantir o isolamento do território da UE e evitar a entrada de imigrantes. O que está por trás dessas medidas protetoras é a simples consciência de que o atual modelo de prosperidade capitalista não pode ser universalizado -a consciência, formulada com uma candura brutal mais de meio século atrás, pelo analista político norte-americano George Kennan: "Temos 50% da riqueza mundial, mas apenas 6,3% de sua população. Nessa situação, nossa verdadeira tarefa no próximo período [...] é manter essa posição de disparidade. Para tanto, precisamos dispensar todo sentimentalismo [...], deveríamos deixar de pensar em direitos humanos, elevação dos padrões de vida e democratização".

O vazio profundo
O triste é que, em relação a essa consciência, existe um pacto silencioso entre o capital e as classes trabalhadoras (ou o que resta delas); de todo modo, as classes trabalhadoras são mais sensíveis à proteção de seus relativos privilégios do que as grandes corporações. Depois da muito celebrada queda do Muro de Berlim, um novo muro está surgindo: o muro que separa as pessoas cobertas pelo guarda-chuva dos direitos humanos e as excluídas de sua cobertura protetora. E o que dizer da frase que reverbera por toda parte: "Nada será o mesmo depois de 11 de setembro"?. Significativamente, essa frase nunca é mais elaborada: é apenas um gesto vazio de dizer alguma coisa "profunda" sem realmente saber o que queremos dizer. Então nossa primeira reação a ela deveria ser: realmente? E se, de fato, nada de importante tivesse acontecido em 11 de setembro? E se -como parece demonstrar a exibição maciça de patriotismo americano- a terrível experiência do 11 de setembro afinal tiver servido como um meio para a ideologia dominante "retornar a seus fundamentos", reafirmar suas premissas contra as tentações antiglobalistas e outras críticas? Não obstante talvez devamos qualificar essa afirmação: em 11 de setembro os EUA tiveram uma oportunidade única de perceber o tipo de mundo do qual fazem parte. Eles poderiam ter usado essa oportunidade, mas não o fizeram; em vez disso, optaram por reafirmar seus compromissos ideológicos tradicionais: chega de responsabilidade e sentimento de culpa em relação ao pobre Terceiro Mundo; agora "nós" somos as vítimas! Em uma frase clássica de uma comédia de Hollywood, a garota pergunta ao namorado: "Você quer se casar comigo?". "Não!" "Pare de evitar o assunto, me dê uma resposta franca!" De certa maneira, a lógica subjacente está correta: a única resposta franca aceitável para a garota era um "sim", por isso qualquer outra coisa, inclusive um franco "não", representa uma evasão. Essa lógica subjacente, é claro, mais uma vez é aquela da opção obrigatória: você é livre para decidir, sob a condição de que faça a opção certa. Um padre não cairia no mesmo paradoxo numa disputa com um leigo cético? "Você acredita em Deus?" "Não." "Pare de evitar a questão! Dê-me uma resposta franca!" Novamente, aos olhos do padre, a única resposta franca era afirmar a crença em Deus: longe de representar uma clara postura simétrica, a negação da crença pelo ateu é uma tentativa de evitar a questão do confronto divino.

Você decide
E não acontece o mesmo hoje com as opções "democracia ou fundamentalismo"? Não é verdade que, nesses termos, é simplesmente impossível escolher fundamentalismo"? O que é problemático nessa opção não é o "fundamentalismo", e sim a própria democracia. A democracia que nos é oferecida -aquela da Nova Ordem Mundial- é a única alternativa ao fundamentalismo.
E o que dizer dos próprios americanos? Somos tentados a lembrar as palavras do líder do Taleban mulá Mohamad Omar em seu pronunciamento ao povo americano em 25 de setembro de 2001: "Vocês aceitam tudo o que o seu governo diz, seja verdadeiro ou falso. [...] Vocês não têm pensamento próprio? [...] Então será melhor vocês usarem seu entendimento e sua compreensão". Embora essas declarações sejam sem dúvida nenhuma uma manipulação cínica (digamos, que tal dar aos afegãos o mesmo direito de usar o próprio entendimento e compreensão?), não são, ao mesmo tempo, tomadas literalmente, bastante apropriadas?
O que esse exercício de entendimento e compreensão mostra é que a vítima final das medidas aplicadas em nome da "guerra ao terror" são os próprios americanos. É o governo dos EUA que efetivamente manipula os eventos de 11 de setembro para impor sua própria agenda política. O que de fato tem mudado nos últimos meses não é o mundo, mas o rumo político dos próprios EUA. Numa simples experiência mental, apenas pense: onde estaria o presidente George W. Bush sem o 11 de setembro?

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" (ed. Zahar), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Ritos de Passagem
200 págs., R$ 28,00 de William Golding. Tradução de Elsa Martins. Ed. Nova Alexandria (r. Dionísio da Costa, 141, CEP 04117-110, SP, tel. 0/xx/11/ 5571-5637).



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