São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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+3 questões Sobre urbanismo

1. A cidade ainda é um espaço público?
2. É possível reverter o caos urbano de cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro?
3. Qual será o perfil da cidade do século 21?

Abílio Guerra responde

1.
Redimensionando a questão, é preciso ter claro que o espaço público convive nas cidades com os espaços privados, onde o acesso coletivo é facilitado ou não de acordo com os interesses específicos de seus proprietários. O que caracteriza o espaço público é a posse mediatizada por parte de um ente abstrato, a comunidade. O equilíbrio necessário ao bom funcionamento dessa propriedade compartilhada é facilmente quebrado por fenômenos diversos: violência urbana, má administração, leis inadequadas, desigualdade social, má educação coletiva etc., implicando o seu abandono e degradação.

2.
O "caos urbano" é a materialização lógica da complexa correlação de forças dos agentes sociais. Condições socioeconômicas semelhantes podem produzir espaços urbanos qualitativamente diferentes. O aporte prioritário dos recursos sociais, tanto econômico como intelectual, em malha viária, equipamentos sociais, habitação social, infra-estrutura ou espaço público resulta em cenas urbanas muito distintas.
A ação administrativa ética e democrática, amparada pelo conhecimento urbanístico, é a única maneira de converter o anseio coletivo abstrato e conflitante em uma cidade mais humana para todos.

3.
Parece que estaremos fadados à sobreposição de muitas cidades, uma mescla da dispersão populacional pelo território induzida pelas vias expressas, trens de alta velocidade e novas mídias que permitem o trabalho à distância, da concentração exponencial de infra-estrutura em nódulos de tecnologia de ponta, da sobrevivência dos antigos centros históricos reforçados como espaços simbólicos indutores de identidades colocadas em xeque pelo fenômeno da globalização, da especialização do caráter das chamadas cidades mundiais como pólos culturais, tecnológicos ou turísticos, da migração transnacional em grande escala impulsionada por conflitos sociais e catástrofes naturais, de nichos de pobreza endêmica imposta aos excluídos pela nova ordem mundial.

Regina Meyer responde

1.
Sim, a cidade é ainda um "espaço público", porém a sua crescente atrofia gera uma ameaça para a vida social e um impedimento para a plena experiência de vida urbana. Mas é preciso ter presente que as mais felizes definições de "cidade" são aquelas que conjugam de forma correta a mediação necessária entre "esfera pública" e "esfera privada", entre os domínios construídos da vida pública e da vida privada. O espaço público só se define em contraponto ao e em colaboração com o espaço privado.
A ausência de um dos elementos desse binômio compromete a própria existência da entidade "cidade". Nas cidades contemporâneas, ricas e pobres, a desagregação da "res publica" manifesta-se em projetos urbanos onde fica patente a deletéria confusão que hoje reina entre o espaço público e o privado.

2.
O caos urbano de São Paulo e Rio foi historicamente construído. Traduzindo esse caos em termos urbanos e usando conceitos tais como dispersão periférica, clandestinidade e ilegalidade institucionalizadas, especulação imobiliária, anarquia viária, irracionalidade funcional, fica claro que o "laissez-faire" urbano que prevaleceu nas duas cidades ao longo da sua expansão esteve sempre apoiado na conivência que se estabeleceu entre o poder público e os empreendedores urbanos. Portanto enfrentar o caos urbano contemporâneo significa, antes de mais nada, enfrentar o "liberalismo urbano" que hoje ganha novas dimensões econômicas e novas escalas territoriais.

3.
São Paulo vive hoje uma transição importante, a metrópole industrial cede lugar à metrópole terciária, isto é, a metrópole de serviços. Haverá uma indústria remanescente em seu território, mas associada à sua etapa de metrópole terciária, voltada ao atendimento dos serviços da economia globalizada. Do ponto de vista urbano teremos um perfil que pode ser descrito como pós-industrial, cuja tendência é o estabelecimento um modo de vida em que dois elementos terão grande importância: a vida em escala metropolitana e uma crescente fragmentação territorial. O que hoje parece inexorável -a descontinuidade urbana e a dissolução dos espaços de convívio comunitário e coletivo- poderá ser enfrentado e até mesmo contido por meio de projetos integradores. Nesse sentido o transporte público de massa desempenhará um papel decisivo, pois a mobilidade urbana é um elemento-chave da nova redistribuição de renda em nível urbano. A acessibilidade garantirá graus importantes de igualdade urbana. A conhecida tese da "distância social x proximidade física", exprime um aspecto explosivo das novas metrópoles mundiais e poderá desempenhar ainda um papel interessante na reorganização de São Paulo.

QUEM SÃO

Abílio Guerra
é professor de arquitetura na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas e editor de www.vitruvius.com.br

Regina Meyer
é arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), autora de "Pólo Luz, Cultura e Urbanismo" (Ed. Terceiro Nome).



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