São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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Em "Um Paraíso Perdido" Euclides da Cunha identifica o destino da Amazônia com o do Brasil
A última página vendida do Gênese

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

Iniciativa jubilosa a reedição do ensaio de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, intitulado misteriosamente, plurisignificativamente, maravilhosamente, "Um Paraíso Perdido", dando ênfase ao numeral "um paraíso", com textos críticos introdutórios assinados por Hildon Rocha, Teodoro Sampaio, Sílvio Romero, ou seja, o que há de melhor no pensamento nacional, além das cartas confessionais desbundadas de Euclides a seus amigos José Veríssimo, Machado de Assis, Alberto Rangel, Coelho Neto etc. O fluminense Euclides da Cunha havia escrito a obra prima "Os Sertões" sobre Canudos, ponto de inflexão sociomístico dos sem-terra; aí, por volta de 1905, resolve revelar a Amazônia aos leitores brasileiros, com um ensaio assombroso, talvez o mais profundo e problemático que se tenha escrito entre nós. Ousadia, liberdade, estilo e coragem. Questionando de modo radicular a prosa, a poesia, o cientista, o sábio, o burocrata ante o julgamento acerca da penetração humana na Hiléia. Não para deixá-la intacta, impenetrável: "O homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido -quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão".

A terra em ser
O título "Um Paraíso Perdido" figura na acepção do ainda não consumado ou, se quiser, da Amazônia ainda não castrada, antes portanto do eunuco colonizado oferecer a vulva selvática para os "phallus" imperiais. À época em que Euclides escrevia a "Interpretação dos Sonhos" de Sigmund Freud era lançada em Viena e a Amazônia era a "nudez da sua virgindade portentosa". Ele enfatiza que essa terra é a mais nova do mundo, "é a terra moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo". Vale a pena citá-lo: "Realmente, a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênese". O genial Euclides da Cunha é o escritor intérprete da gestação de um mundo nos trópicos úmidos. "A terra ainda é misteriosa. O seu espaço é como o espaço de Milton: esconde-se em si mesmo." A distante Amazônia não está assim desconectada dos contratos e negócios urdidos na avenida Paulista ou no Botanic Garden do Rio de Janeiro. "O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico." Justifica-se o procedimento estético do deslocamento, de que o grande cinema do século 20 fará uso. É que não devemos, quase cem anos depois de escrito "Um Paraíso Perdido", nos deslumbrar apenas com a invenção do estilo. "Naqueles lugares, o brasileiro salta; é estrangeiro; e está pisando terras brasileiras. Antolha-se um contra-senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes a extraterritorialidade, que é a pátria sem a terra, contrapõe-se uma outra, rudemente física: a terra sem a pátria." É de pasmar o prenúncio do esfacelamento agônico da nação. De resto, ao nacionalismo, realista e delirante, de Euclides da Cunha não passou desapercebida a terrível intuição prefiguradora de uma pátria sem patrimônio, onde o território é vulgarmente privatizado e internacionalizado. Essa relação esquizóide e dolorosa entre terra e pátria, que faz parte da dialética regional na Amazônia, tornar-se-ia inteiramente nacional com o capitalismo da moeda à gandaia. Afinal, nas duas últimas décadas, em que lugar do Brasil o babaca do brasileiro não anda saltando como estrangeiro no seu próprio chão? Se apenas fosse para curtir o belo paisagístico desfrutável, Euclides da Cunha teria fincado pé adstrito ao "segmento do litoral que vai de Cabo Frio à porta do Manduba". O propósito de sua profícua viagem, que durou pouquíssimos meses, ao Norte foi outro: o de mostrar que o destino do Brasil se confunde ao modo pelo qual é feita a ocupação da Amazônia pelos brasileiros, em que não falta a denúncia contra a injusta estrutura do trabalho nos seringais e a série social de outros espoliados. O "seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se". Um paraíso perdido para nós, brasileiros, e que seria apossado pela moderna expansão imperialista junto com "o falso e o incaracterístico de nossa estrutura mental, em que, sobretudo, preponderam reagentes alheios ao gênio da nossa raça. Pensamos demasiado em francês, em alemão, ou mesmo em português. Vivemos em pleno colonato espiritual, quase um século após a autonomia política". Acrescente-se a esse mimetismo psíquico que nos torna alheios aos quadros concretos da nossa natureza "o preconceito de sermos o menos brasileiros que nos for possível".

O clima caluniado
Sobressai o imperativo de historicizar a velha cobiça colonial. Em 1900, a miríade dos recursos minerais e fósseis se impunha como uma operação indispensável, tida por inesgotável e eterna, resultando daí que a riqueza vegetal das florestas dos trópicos nem sequer era concebida pelo prisma distorcido e alienado do "clima caluniado". Euclides põe o dedo no inferno, isto é, na relação patológica do intelectual com a natureza. Esse é o fato mais escandaloso na cultura brasileira. "Assim como não temos uma ciência completa da própria base física da nossa nacionalidade, não temos ainda uma história."
É por isso que o nascimento tardio da história é um acontecimento energético da Amazônia perdida, onde desempenhamos o papel, palhaço e repetitivo, de "construtores de ruínas", no momento em que a minerva sabichona alça vôo no sucateado "boeing sociologicus" do capitalismo periférico.



Um Paraíso Perdido
386 págs., R$ 20,00 de Euclides da Cunha. Ed. do Senado (via nš 2, unidade de apoio 3, pça. dos Três Poderes, s/nš, CEP 70165-900, Brasília, DF).



Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor, entre outros, de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo) e "O Xará de Apipucos", sobre Gilberto Freyre, que está sendo reeditado pela Casa Amarela.

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