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Em "Um Paraíso Perdido" Euclides da Cunha identifica o destino da Amazônia com o do Brasil
A última página vendida do Gênese
Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha
Iniciativa jubilosa a reedição do ensaio
de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, intitulado misteriosamente, plurisignificativamente, maravilhosamente, "Um Paraíso Perdido", dando ênfase
ao numeral "um paraíso", com textos
críticos introdutórios assinados por Hildon Rocha, Teodoro Sampaio, Sílvio Romero, ou seja, o que há de melhor no
pensamento nacional, além das cartas
confessionais desbundadas de Euclides a
seus amigos José Veríssimo, Machado de
Assis, Alberto Rangel, Coelho Neto etc.
O fluminense Euclides da Cunha havia
escrito a obra prima "Os Sertões" sobre
Canudos, ponto de inflexão sociomístico
dos sem-terra; aí, por volta de 1905, resolve revelar a Amazônia aos leitores
brasileiros, com um ensaio assombroso,
talvez o mais profundo e problemático
que se tenha escrito entre nós. Ousadia,
liberdade, estilo e coragem. Questionando de modo radicular a prosa, a poesia, o
cientista, o sábio, o burocrata ante o julgamento acerca da penetração humana
na Hiléia. Não para deixá-la intacta, impenetrável: "O homem, ali, é ainda um
intruso impertinente. Chegou sem ser
esperado nem querido -quando a natureza ainda estava arrumando o seu
mais vasto e luxuoso salão".
A terra em ser
O título "Um Paraíso
Perdido" figura na acepção do ainda não
consumado ou, se quiser, da Amazônia
ainda não castrada, antes portanto do
eunuco colonizado oferecer a vulva selvática para os "phallus" imperiais.
À época em que Euclides escrevia a
"Interpretação dos Sonhos" de Sigmund
Freud era lançada em Viena e a Amazônia era a "nudez da sua virgindade portentosa". Ele enfatiza que essa terra é a
mais nova do mundo, "é a terra moça, a
terra infante, a terra em
ser, a terra que ainda está
crescendo". Vale a pena
citá-lo: "Realmente, a
Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do
Gênese".
O genial Euclides da Cunha é o escritor intérprete
da gestação de um mundo nos trópicos
úmidos. "A terra ainda é misteriosa. O
seu espaço é como o espaço de Milton:
esconde-se em si mesmo."
A distante Amazônia não está assim
desconectada dos contratos e negócios
urdidos na avenida Paulista ou no Botanic Garden do Rio de Janeiro. "O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico."
Justifica-se o procedimento estético do
deslocamento, de que o grande cinema
do século 20 fará uso. É que não devemos, quase cem anos depois de escrito
"Um Paraíso Perdido", nos deslumbrar
apenas com a invenção do estilo. "Naqueles lugares, o brasileiro salta; é estrangeiro; e está pisando terras brasileiras.
Antolha-se um contra-senso pasmoso: à
ficção de direito estabelecendo por vezes
a extraterritorialidade, que é a pátria sem
a terra, contrapõe-se uma outra, rudemente física: a terra sem a pátria."
É de pasmar o prenúncio do esfacelamento agônico da nação. De resto, ao nacionalismo, realista e delirante, de Euclides da Cunha não passou desapercebida
a terrível intuição prefiguradora de uma
pátria sem patrimônio, onde o território
é vulgarmente privatizado e internacionalizado. Essa relação esquizóide e dolorosa entre terra e pátria, que faz parte da
dialética regional na Amazônia, tornar-se-ia inteiramente nacional com o capitalismo da moeda à gandaia.
Afinal, nas duas últimas décadas, em
que lugar do Brasil o babaca do brasileiro
não anda saltando como estrangeiro no
seu próprio chão?
Se apenas fosse para curtir o belo paisagístico desfrutável, Euclides da Cunha teria fincado pé adstrito ao "segmento do
litoral que vai de Cabo Frio à porta do
Manduba". O propósito de sua profícua
viagem, que durou pouquíssimos meses,
ao Norte foi outro: o de mostrar que o
destino do Brasil se confunde ao modo
pelo qual é feita a ocupação da Amazônia
pelos brasileiros, em que não falta a denúncia contra a injusta estrutura do trabalho nos
seringais e a série social de
outros espoliados. O "seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para
escravizar-se".
Um paraíso perdido para nós, brasileiros, e que seria apossado
pela moderna expansão imperialista
junto com "o falso e o incaracterístico de
nossa estrutura mental, em que, sobretudo, preponderam reagentes alheios ao
gênio da nossa raça. Pensamos demasiado em francês, em alemão, ou mesmo
em português. Vivemos em pleno colonato espiritual, quase um século após a
autonomia política". Acrescente-se a esse mimetismo psíquico que nos torna
alheios aos quadros concretos da nossa
natureza "o preconceito de sermos o menos brasileiros que nos for possível".
O clima caluniado
Sobressai o imperativo de historicizar a velha cobiça
colonial. Em 1900, a miríade dos recursos
minerais e fósseis se impunha como uma operação indispensável, tida por inesgotável e eterna, resultando daí que a riqueza vegetal das florestas dos trópicos nem
sequer era concebida pelo prisma distorcido e alienado do "clima caluniado".
Euclides põe o dedo no inferno, isto é, na
relação patológica do intelectual com a
natureza. Esse é o fato mais escandaloso
na cultura brasileira. "Assim como não
temos uma ciência completa da própria
base física da nossa nacionalidade, não
temos ainda uma história."
É por isso que o nascimento tardio da
história é um acontecimento energético
da Amazônia perdida, onde desempenhamos o papel, palhaço e repetitivo, de
"construtores de ruínas", no momento
em que a minerva sabichona alça vôo no
sucateado "boeing sociologicus" do capitalismo periférico.
Um Paraíso Perdido
386 págs., R$ 20,00
de Euclides da Cunha. Ed. do Senado (via nš 2, unidade de apoio
3, pça. dos Três Poderes, s/nš,
CEP 70165-900, Brasília, DF).
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de
Fora (MG) e autor, entre outros, de "O Príncipe da
Moeda" (Ed. Espaço e Tempo) e "O Xará de Apipucos", sobre Gilberto Freyre, que está sendo reeditado pela Casa Amarela.
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