São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2000

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Ponto de fuga

Bicos e penas

Jorge Coli
especial para a Folha

Sai, em segunda edição aumentada, "O Corvo e Suas Traduções". É um pequeno livro, organizado por Ivo Barroso e publicado pela editora Lacerda. Reúne 11 traduções, em português e francês, do poema "The Raven", de Edgar Allan Poe. Elas são acompanhadas por "A Filosofia da Composição", na qual o próprio Poe disseca a gênese da invenção literária a partir de seu poema: nessa demonstração paira o discreto cinismo de certas narrações policiais, como se um assassino frio confessasse os mecanismos de seu crime perfeito. Ivo Barroso compara, atento e cuidadoso, as diversas traduções, assinalando qualidades e defeitos, dissecando infidelidades e achados felizes, justificando preferências. É um modelo de análise. À espreita da melhor solução, o leitor sucumbe, fascinado, comparando estrofes que procuram a fidelidade impossível.
Mas há um outro caminho também, sedutor por seus meandros: deixando de lado a concorrência ou o "campeonato", para retomar a palavra que Carlos Heitor Cony empregou na apresentação do livro, descobre-se que o corvo do inglês original reencarna, a cada vez, com plumagem diferente. Perceber essa forma de metempsicose é o que propôs Borges, na "Historia de la Eternidad", ao confrontar quatro traduções das "Mil e Uma Noites". Borges conclui de modo límpido: nem sempre a mais fiel tradução é a melhor. Boa é aquela que sabe fazer passar um texto, não apenas de uma língua para outra, mas de uma cultura para outra.

Sustos - Baudelaire carrega seu pássaro de angústias que conduzem à alucinação; Mallarmé confere a ele uma elegância preciosa, terminando-se por um desespero contido e, por isso mesmo, mais forte. Em Machado, há uma certa exterioridade diante das situações românticas, que desaparece pouco a pouco, cedendo ao pesadelo; em Pessoa, há a dor calma e melancólica de uma solidão inevitável.
O início da quinta estrofe de "The Raven" é sentido assim por Machado: "Com um olhar escruto a sombra/ Que me amedronta, que me assombra". Por Emílio de Menezes, agora: "Cravo os olhos na treva e longamente a escruto,/ E a treva é muda e é muda a própria ventania". Por Pessoa, enfim: "A treva enorme fitando, fiquei perdido, receando". Machado traz um enfrentamento do pavor; Emílio de Meneses, uma interrogação mais forte, buscando a resposta que não existe. Pessoa evita qualquer eloquência exaltada, para se mostrar, desarmado e incerto, diante do escuro que se anima, monstruoso. Existe algo de Lovecraft, nesta sua frase.

Pose - Em meios universitários, é comum o elogio da leitura "no original", acompanhado pelo desdém às traduções. Trata-se, muitas vezes, de um esnobismo filológico bastante ingênuo. Traduzir não é remediar, nem a obra traduzida é um simulacro, por natureza inferior. A boa tradução é, sempre, um instrumento para compreender o original, instrumento disposto a partir de uma perspectiva precisa, a sua. Desse modo, ler várias traduções de um mesmo texto significa, na verdade, compreender os diversos modos pelos quais o original foi compreendido. Isso serve também, se necessário for, para tomar consciência do caráter relativo, congênito à leitura. Ao defrontar-se com um original, mesmo escrito em sua língua materna, o leitor estará sempre traduzindo: para a cultura de seu tempo e de seu meio, para o universo mental que é o seu.

Migrações - Se o texto de origem vem num idioma conhecido, a leitura de suas traduções permite descobri-lo sob luzes específicas. Se não vem, as várias traduções, ao cruzarem-se, acrescentam complexidade a esse núcleo virtual, que se oferece e foge, ao mesmo tempo.
Assim, ele passa a ser intuído de maneira cada vez mais densa, embora não perca nunca sua natureza de fantasma. Miragem, ectoplasma, o original fora de alcance encorpa-se com a multiplicação de seus "médiuns", as traduções.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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