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Ponto de fuga
Bicos e penas
Jorge Coli
especial para a Folha
Sai, em segunda edição aumentada,
"O Corvo e Suas Traduções". É um pequeno livro, organizado por Ivo Barroso e publicado pela editora Lacerda.
Reúne 11 traduções, em português e
francês, do poema "The Raven", de Edgar Allan Poe. Elas são acompanhadas
por "A Filosofia da Composição", na
qual o próprio Poe disseca a gênese da
invenção literária a partir de seu poema: nessa demonstração paira o discreto cinismo de certas narrações policiais,
como se um assassino frio confessasse
os mecanismos de seu crime perfeito.
Ivo Barroso compara, atento e cuidadoso, as diversas traduções, assinalando qualidades e defeitos, dissecando infidelidades e achados felizes, justificando preferências. É um modelo de análise. À espreita da melhor solução, o leitor sucumbe, fascinado, comparando
estrofes que procuram a fidelidade impossível.
Mas há um outro caminho também,
sedutor por seus meandros: deixando
de lado a concorrência ou o "campeonato", para retomar a palavra que Carlos Heitor Cony empregou na apresentação do livro, descobre-se que o corvo
do inglês original reencarna, a cada vez,
com plumagem diferente. Perceber essa forma de metempsicose é o que propôs Borges, na "Historia de la Eternidad", ao confrontar quatro traduções
das "Mil e Uma Noites". Borges conclui
de modo límpido: nem sempre a mais
fiel tradução é a melhor. Boa é aquela
que sabe fazer passar um texto, não
apenas de uma língua para outra, mas
de uma cultura para outra.
Sustos - Baudelaire carrega seu pássaro de angústias que conduzem à alucinação; Mallarmé confere a ele uma
elegância preciosa, terminando-se por
um desespero contido e, por isso mesmo, mais forte. Em Machado, há uma
certa exterioridade diante das situações
românticas, que desaparece pouco a
pouco, cedendo ao pesadelo; em Pessoa, há a dor calma e melancólica de
uma solidão inevitável.
O início da quinta estrofe de "The Raven" é sentido assim por Machado:
"Com um olhar escruto a sombra/ Que
me amedronta, que me assombra". Por
Emílio de Menezes, agora: "Cravo os
olhos na treva e longamente a escruto,/
E a treva é muda e é muda a própria
ventania". Por Pessoa, enfim: "A treva
enorme fitando, fiquei perdido, receando". Machado traz um enfrentamento
do pavor; Emílio de Meneses, uma interrogação mais forte, buscando a resposta que não existe. Pessoa evita qualquer eloquência exaltada, para se mostrar, desarmado e incerto, diante do escuro que se anima, monstruoso. Existe
algo de Lovecraft, nesta sua frase.
Pose - Em meios universitários, é comum o elogio da leitura "no original",
acompanhado pelo desdém às traduções. Trata-se, muitas vezes, de um esnobismo filológico bastante ingênuo.
Traduzir não é remediar, nem a obra
traduzida é um simulacro, por natureza
inferior. A boa tradução é, sempre, um
instrumento para compreender o original, instrumento disposto a partir de
uma perspectiva precisa, a sua. Desse
modo, ler várias traduções de um mesmo texto significa, na verdade, compreender os diversos modos pelos
quais o original foi compreendido. Isso
serve também, se necessário for, para
tomar consciência do caráter relativo,
congênito à leitura. Ao defrontar-se
com um original, mesmo escrito em
sua língua materna, o leitor estará sempre traduzindo: para a cultura de seu
tempo e de seu meio, para o universo
mental que é o seu.
Migrações - Se o texto de origem vem
num idioma conhecido, a leitura de
suas traduções permite descobri-lo sob
luzes específicas. Se não vem, as várias
traduções, ao cruzarem-se, acrescentam complexidade a esse núcleo virtual, que se oferece e foge, ao mesmo
tempo.
Assim, ele passa a ser intuído de maneira cada vez mais densa, embora não
perca nunca sua natureza de fantasma.
Miragem, ectoplasma, o original fora
de alcance encorpa-se com a multiplicação de seus "médiuns", as traduções.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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