São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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Coisas, lugares e pessoas da poesia

A Cidade e os Livros
80 págs., R$ 20,00 de Antonio Cicero. Editora Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).

Noemi Jaffe
especial para a Folha

Na poesia como na vida, o fora pode ser bem melhor do que o dentro. E talvez os mistérios não estejam todos do lado de dentro, no desconhecido, no íntimo ou no abstrato, como nos querem fazer acreditar o pensamento conceitual, a psicanálise, a religião. Eles podem mesmo estar do lado de fora, aqui, entre nós. No "rio que corre em torno deste mundo"; no "país das maravilhas que fica do lado de fora", por onde se chega através de saídas e não de entradas, saídas que ficam "à orla do pensamento" (como o rio que corre em torno do mundo). Não a "merda do poeta" nem o cerne, pois que em nós "tudo é roupagem". Mas "a visão oblíqua do moreno que olha os tênis na vitrine"; "os passageiros sombrios dentro de um ônibus, vistos à contraluz"; a gratuidade das "luzes cinéticas das avenidas", "o vulto ao vento das palmeiras" e o "eterno espaço infinito dos silêncios que nada dizem" e que, sobretudo, "nada precisam esclarecer".

Matéria de esquecimento
Em "A Cidade e os Livros", de Antonio Cicero, a matéria da poesia e da vida pode estar no esquecimento, e não no luto. E é o esquecimento, por incrível que pareça, que nos permite viver com intensidade e coragem o agora, tempo em que se produz a poesia: "Sê por um bom tempo o que te tente/ e para sempre nada". Já o luto é tempo e linguagem da lembrança, do que não está e nem é e que, portanto, não lança luzes, mas sombras.
O segredo pode ser deixar de lado ou para dentro o que não é e nem se vê, olhar só para o fluxo, para a própria mutação, para o vir a ser -também aí pode ser a morada da perplexidade. Ser "coisa entre coisas", ver as coisas, os lugares e as pessoas, como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Don'Ana, Francisca. O maravilhoso de Don'Ana é só (e tanto) ela ser Don'Ana, na "exemplaridade esplêndida de sua solidez".
De tanto perfurarmos as coisas, iludimo-nos acreditando-nos proprietários delas, quando elas, perfuradas, cada vez nos pertencem menos. Talvez para voltarmos a vê-las sejam necessários mais momentos de distração, quando ainda é possível esbarrar acidentalmente nas coisas e de súbito vê-las como pela primeira vez. E aí pertencer não porque se possui, mas porque se é possuído. Conseguir pertencer à cidade e aos livros no momento súbito em que, "anônimo entre anônimos" (coisa entre coisas) não se pertence a eles.
É assim que se sai -e não se entra- desse livro de Antonio Cicero. Pertencendo a ele e ele a nós no momento mesmo em que não nos pertencemos. Sem querer, quando vimos, e como no poema "Esse Amante", vemo-nos "compenetrados e entregues a um gozo que quiçá se finge".


Noemi Jaffe é mestre em literatura brasileira e autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha).


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