São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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"Fazendo Sentido", que saiu nos EUA, investiga como o formato, a paginação e a ilustração de uma obra têm papel central na construção do significado do texto

A consciência gráfica da escrita

Making Meaning - "Printers of the Mind" and Other Essays
360 págs., US$ 24,95 de Donald F. McKenzie. Org. de Peter D. McDonald e Michael F. Suarez. University of Massachusetts Press (EUA).

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/3285-4033).

Roger Chartier
especial para o "Le Monde"

Donald F. McKenzie foi professor de crítica textual na Universidade de Oxford. Ele morreu brutalmente em 1999, aos 68 anos. Pertencia a uma disciplina austera, a bibliografia, entendida como o estudo material dos livros impressos, e é sem dúvida por isso que sua obra permaneceu tanto tempo menos visível que outras. Hoje, graças a dois ex-alunos, Peter McDonald e Michael F. Suarez, 11 de seus ensaios estão facilmente acessíveis em "Making Meaning - "Printers of the Mind" and Other Essays" (Fazendo Sentido).
O trabalho de McKenzie primeiramente revolucionou a disciplina bibliográfica em si, ao combinar a descrição morfológica dos objetos impressos com um estudo histórico dos arquivos dos impressores -quando eles subsistiram, o que infelizmente é raro antes do século 19. Ao confrontar os registros das contas e a produção conservada por vários ateliês tipográficos, McKenzie reconstruiu as práticas dos mestres impressores e de seus operários na época do antigo regime tipográfico, entre os séculos 16 e 18.
Aos "printers of the mind" inventados pelos modelos abstratos da bibliografia, ele pôde opor o trabalho efetivo dos compositores e prensistas, ocupados com a produção de várias obras ao mesmo tempo e mobilizados tanto pela impressão de trabalhos citadinos ou "job printing" (cartazes, ingressos, formulários etc.) quanto pela de livros.
Mas para McKenzie o estudo do trabalho tipográfico e das restrições que governam a produção impressa nunca foi um fim em si. Ele deve permitir, antes de tudo, aprofundar o conhecimento das obras e sua apropriação. Afastando-se dos discursos críticos que afirmaram a morte do autor e depois a do leitor, ele lembrou que os sentidos das obras também dependem de seus dispositivos impressos: formato, paginação, divisão, pontuação, ilustração.
Esses dispositivos exercem um papel essencial na construção do significado do texto e traduzem uma multiplicidade de intenções e decisões, próprias dos diferentes atores envolvidos no processo de publicação: o autor, os copistas, o livreiro-editor, o mestre impressor, os compositores, os revisores.
Donald McKenzie sugere assim uma possível tipologia da consciência (ou da inconsciência) gráfica dos escritores, cujas figuras extremas são, de um lado, o total desinteresse pela publicação impressa da obra, abandonada à opção e aos hábitos daqueles que trabalham no ateliê de impressão, e, de outro, a vontade de um rígido controle sobre a forma material dada ao texto.
Antes de lecionar em Oxford, McKenzie havia sido professor em Wellington, em sua Nova Zelândia natal. Lá ele dirigiu uma companhia teatral, fundou uma editora que imprimia os poetas contemporâneos e teve um papel fundamental no desenvolvimento da Biblioteca Nacional. Mais importante ainda, colocou sua competência científica a serviço das vítimas da colonização.
Em um estudo hoje retomado na reedição inglesa de "Bibliography and the Sociology of Texts" (Cambridge University Press, 1999), ele demonstrou que o Tratado de Waitangi, de 1840, pelo qual os chefes maoris teriam supostamente abandonado sua soberania à coroa inglesa, na verdade repousava sobre uma série de profundos equívocos. Os signatários ingleses e indígenas do tratado davam sentidos diferentes às palavras (o termo maori traduzido como "soberania política" pelos primeiros significava somente "administração dos territórios" pelos segundos), aos objetos escritos e aos gestos. Para os indígenas, que haviam entrado em contato com a cultura escrita somente 15 anos antes, o documento assinado representava apenas um vestígio pobre e incompleto de compromissos mais complexos, enunciados pela palavra viva.
McKenzie salientou assim que a soberania britânica era o resultado de uma violência simbólica, perpetrada graças à manipulação de uma irredutível distância cultural. Donald F. McKenzie era um sábio rigoroso e generoso. Ele nunca separou o trabalho de conhecimento da exigência de justiça.


Roger Chartier é historiador francês, autor de "Práticas da Leitura" (Estação Liberdade).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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