São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000 |
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+ cinema Um filme desconhecido de Monteiro Lobato
Valêncio Xavier
Um filme realizado nos anos 30 pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948)
permaneceu desconhecido até dois anos
atrás. Foi encontrado na casa de familiares do escritor, que confirmam a autoria
da filmagem. Lobato, que sempre fotografou com perfeição, no entanto, não
aparece frontalmente em nenhuma das
cenas. As imagens foram por mim examinadas, limpas, coladas e revisadas na
Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Pela primeira vez, fotogramas do filme vêm
a público, nesta edição do Mais!.
O filme foi feito em 16 milímetros, preto-e-branco, com duração de 4min20s
-4 minutos de cenas familiares e os 20
segundos restantes de desenho animado.
As cenas familiares se passam no quintal
da casa de Lobato, no bairro da Aclimação, em São Paulo, e no da casa de sua cunhada, no mesmo bairro. E também na
casa, em Taubaté (SP), de Nicacia, tia de
Pureza, mulher do escritor.
O desenho animado foi feito por Lobato com caneta de nanquim na própria
película, depois de ele a ter deixado de
molho na água quente para amolecer a
emulsão e então raspá-la, tornando-a
transparente.
"O cinema é, entre os novos meios de expressão, um dos que mais afetam a linguagem poética, em especial a de Oswald... A contaminação cinema-literatura produz-se pela adaptação das técnicas em que a narração se sucede rapidamente e em que a sintaxe mimetiza os processos da montagem cinematográfica". A escrita de Lobato está mais para o plano-sequência (a cena filmada numa só tomada) do que para o corte rápido. A intelectualidade da época e, repito, muitos intelectuais de hoje seriam incapazes de entender o cinematismo do plano-sequência, uma característica do cinema moderno. Montagem verdadeira Mesmo nos anos 40, o roteirista e teórico italiano Umberto Barbaro, em "Argumento e Roteiro", vociferava contra movimentos de câmera "porque introduzem um tempo e espaço reais no filme, que, por meio da montagem verdadeira e própria, idealiza e cria um tempo e um espaço cinematográficos". Criadores dos mais destacados do cinema moderno utilizam-se do plano-sequência. Entre eles Orson Welles, Glauber Rocha, Wim Wenders, Akira Kurosawa e Andrei Tarkovski. A memorável cena final do incêndio em "O Sacrifício" (1986), de Tarkovski, toda ela um longo plano-sequência de complicados movimentos de câmera, certamente seria vista por Barbaro como "a falta de sentido de muitos dos atuais cineastas, que estão fazendo o filme recuar até as mais ultrapassadas formas de teatro". Leia a seguir um trecho do conto "Os Faroleiros", de Monteiro Lobato, do livro "Urupês" (1918), que pode ser tomado como o roteiro de uma cena em longo plano-sequência, no interior do farol: "Mas acordado continuei a ouvir o mesmo rumor, vindo de cima da lanterna. Pressinto a catástrofe esperada. Salto da cama e aguço o ouvido: barulho de luta. Corro à escada, galgo-a aos três degraus e no topo esbarro com a porta fechada. Tento abri-la, não cede. Escuto: era de fato luta. Rolavam corpos no chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um resfolegar surdo, entremeado de embates contra os móveis. Trevas absolutas. Nenhuma réstea de luz coava para a escada. Minha situação era esquerda. Ficar ali, inútil, sabendo que portas a dentro dois homens se entrematavam? Permanecia nessa dubiedade, quando choque violento escancarou-me a porta. Um clarão de sol chofrou-me os olhos. Senti nas pernas um tranco e rodei escada abaixo, de cambulhada com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em rebolo no chão os dois faroleiros atracados. Atirei-me à luta em auxílio a Gerebita". Como num plano-sequência, a câmera segue o narrador, que acorda de um pesadelo, acompanha-o da cama até o alto do farol e desce com ele escada abaixo, mostrando sua entrada na luta. Embora não tenha aqui citado, a cena prossegue, mostrando os três homens em luta. E Lobato usa som e luz para dar mais dramaticidade à cena (estávamos na época do cinema mudo). Em 1920, o conto "Os Faroleiros" foi filmado pelo diretor Antônio Leito. Lobato abominou o filme.
Mas não só a escrita cinematográfica marca a ligação de Lobato com a sétima arte. Ele leva para seus livros infantis personagens da tela, como Shirley Temple. O caubói Tom Mix aparece em "O Circo de Escavalinho" (1929), ao lado do palhaço Piolim e de personagens lendários, como o Gato de Botas. Já o Gato Félix dos desenhos animados ganhou em 1928 um livro próprio. Essas obras foram lançadas quando o escritor vivia nos Estados Unidos como adido comercial do consulado brasileiro em Nova York. Nessa época, jornais brasileiros noticiaram que a Paramount estava interessada em filmar "Jeca Tatu". Sheerezade aimoré Nos Estados Unidos, Lobato está ligado ao cinema. Vai ver estréias de filmes com a presença das atrizes, assiste palestra do diretor russo Sergei Eisenstein, defende o filme falado, aqui não bem-visto por parte da intelectualidade, incentivada pelo escritor e crítico Otávio de Faria e outros membros do Chaplin Club. Em "A Reforma da Natureza" (1941) nota-se a clara influência de "O Grande Ditador" (1940), de Charles Chaplin. Na célebre crítica a "Fantasia" (1940), de Walt Disney, publicada quando da exibição do filme no Brasil, Monteiro Lobato dá sua visão do que seria o cinema: "Até o aparecimento de Disney, o cinema não passava duma conjugação do teatro com a fotografia. Era uma representação teatral fotografada em todos os seus movimentos, cores e sons. Disney criou a coisa nova; a conjugação da fotografia com a imaginação. O desenho genial de Disney permite que todas as criações da imaginação possam ser fotografadas e projetadas com a riqueza dos sonhos. Uma arte, pois, absolutamente nova e jamais prevista". No livro "Negrinha" está "Marabá", um roteiro de Lobato. Começa com o escritor, meio de brincadeira, contando que está escrevendo um romance histórico que "vem de Alencar, esse filho de alguma Sheerezade aimoré". É a história de um guerreiro branco, loiro de olhos azuis, preso pelos índios, que é libertado por Iná, "a mais formosa virgem da selva". Lobato, então, interfere: "A época é apressada, automobilística, aviatória, cinematográfica, e esta minha Marabá, no andamento em que começou, não chegaria nunca ao epílogo. Abreviêmo-la, pois, transformando-a em entrecho de filme". E segue contando as histórias em quadros (cenas) e com letreiros, quando necessário (era para ser um filme mudo). Passa o tempo, Marabá, loira de olhos azuis, filha de Iná e do guerreiro branco, cresce bela nas selvas. Ipojuca, um índio da tribo, enamora-se dela. Inflamados pelo pajé, os índios tentam pegar os dois para matá-los. Recado para DeMille A cerca altura, Lobato interrompe para dar um recado ao diretor Cecil B. DeMille. Pede que o papel de Marabá seja dado a Anette Kellermen, uma escultural nadadora australiana, que estrelara seminua "A Filha dos Deuses" (1916), como uma nativa dos mares do sul. Mas pede a DeMille para rejuvenescê-la uns 30 anos, pois Marabá "é o que existe de mais botão". Marabá e Ipojuca fogem. Ela é aprisionada no forte dos guerreiros brancos, e Ipojuca cai ferido por uma flechada dos índios. No forte, ele vê o comandante branco abraçado a Marabá. Pensando que o capitão lhe roubara a amante, Ipojuca reúne suas últimas forças e mata Marabá com uma flechada, morrendo em seguida. "FIM". Lida assim, parece coisa não muito boa, mas o entrecho de Lobato é bastante bem estruturado, mesclando com inteligência as cenas de ação com as de amor, mantendo o ritmo e o suspense. Se fosse filmado hoje, daria coisa bem melhor do que as versões do Guarani que andam por aí. Nota Para esse artigo contei com o auxílio de Vladimir Sacchetta na pesquisa e o incentivo de Joyce, neta de Lobato, e de seu marido, Jorge Kornbluh, aos quais agradeço. Valêncio Xavier é escritor, autor de "O Mez da Gripe". Texto Anterior: + autores - Robert Kurz: O eterno sexo frágil Próximo Texto: + debate - João Cezar de Castro Rocha: Brasil nenhum existe Índice |
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