São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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+ cinema

Um filme desconhecido de Monteiro Lobato

Valêncio Xavier
especial para a Folha

Um filme realizado nos anos 30 pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948) permaneceu desconhecido até dois anos atrás. Foi encontrado na casa de familiares do escritor, que confirmam a autoria da filmagem. Lobato, que sempre fotografou com perfeição, no entanto, não aparece frontalmente em nenhuma das cenas. As imagens foram por mim examinadas, limpas, coladas e revisadas na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Pela primeira vez, fotogramas do filme vêm a público, nesta edição do Mais!. O filme foi feito em 16 milímetros, preto-e-branco, com duração de 4min20s -4 minutos de cenas familiares e os 20 segundos restantes de desenho animado. As cenas familiares se passam no quintal da casa de Lobato, no bairro da Aclimação, em São Paulo, e no da casa de sua cunhada, no mesmo bairro. E também na casa, em Taubaté (SP), de Nicacia, tia de Pureza, mulher do escritor. O desenho animado foi feito por Lobato com caneta de nanquim na própria película, depois de ele a ter deixado de molho na água quente para amolecer a emulsão e então raspá-la, tornando-a transparente.

Máscara contra gás O filme foi feito após a Revolução de 32, pois em duas cenas aparecem pessoas com capacete e máscara contra gás distribuídos aos soldados paulistas. E data de antes de 1938, ano da morte de Guilherme, filho de Lobato, aquele que, de máscara contra gás, avança em direção à câmera. As imagens são encenadas, mostrando o domínio que ele tinha da câmera: menininhas e mulheres dançando. Meninos brincando de lutar. Moça cuidando de passarinho na gaiola. Cachorros latindo para a câmera. Mulher com capacete, segurando um pedaço de madeira como se fosse espingarda, seguida por homens com máscara contra gás. No filme aparecem a mulher de Lobato, Pureza, suas filhas Martha e Ruth, a neta Joyce e outros parentes e amigos. Em Taubaté, Lobato filmou uma panorâmica mostrando a cidade, as ruas com pessoas, um grupo de mocinhas em uniforme escolar etc. E cenas familiares no quintal da casa. O homem com máscara contra gás, avançando em direção à câmera, é o início do desenho.

Autocaricaturas Nos 20 segundos de desenho vemos inicialmente um ratinho fazendo micagens. Segue-se um hominho andando daqui para lá e várias autocaricaturas de Lobato. Em meio aos desenhos, uma curiosa imagem do escritor de chapéu, cobrindo o rosto (trata-se mesmo de Lobato, pois está com a mesma gravata que usa em foto da época), visto de cima, tendo ao lado uma câmera (fotográfica?). Um braço passa pela imagem. Segue o desfile de animais: patos, cobras que se transformam em letras, formando palavras indecifráveis, várias caras de bonecos e, encerrando, vemos palavras (uma de cada vez) formando a frase: "If You Do Not Like Go To Hell" (Se você não gosta vá para o inferno). Só um desenhista e chargista de qualidade -e Lobato o era- seria capaz de desenhar uma animação na própria película com tão bom resultado. Apesar de ter sido feito nos anos 30, o filme lembra o estilo das animações desenhadas na película pelo genial cineasta canadense Norman MacLaren, nos anos 50. A intelectualidade brasileira nunca soube ver em Monteiro Lobato o escritor dotado de linguagem cinematográfica.

A nova arte Para os intelectuais do início do século e muitos de hoje, o específico fílmico seria a montagem realizada por meio de cortes rápidos -sua expressão literária estaria, por exemplo, na linguagem telegráfica de alguns textos de Oswald de Andrade. Como observa a crítica Flora Süssekind, em seu livro "Cinematógrafo das Letras" (Companhia das Letras): "Montagem e cortes passariam a invadir, de fato, a técnica literária modernista".
O que o ensaísta Jorge Schwartz exemplificaria em "Vanguarda e Cosmopolitismo na Década de 20" (Perspectiva):

A escrita literária de Lobato está mais para o plano-sequência do que para o corte rápido


"O cinema é, entre os novos meios de expressão, um dos que mais afetam a linguagem poética, em especial a de Oswald... A contaminação cinema-literatura produz-se pela adaptação das técnicas em que a narração se sucede rapidamente e em que a sintaxe mimetiza os processos da montagem cinematográfica". A escrita de Lobato está mais para o plano-sequência (a cena filmada numa só tomada) do que para o corte rápido. A intelectualidade da época e, repito, muitos intelectuais de hoje seriam incapazes de entender o cinematismo do plano-sequência, uma característica do cinema moderno.

Montagem verdadeira Mesmo nos anos 40, o roteirista e teórico italiano Umberto Barbaro, em "Argumento e Roteiro", vociferava contra movimentos de câmera "porque introduzem um tempo e espaço reais no filme, que, por meio da montagem verdadeira e própria, idealiza e cria um tempo e um espaço cinematográficos".
Criadores dos mais destacados do cinema moderno utilizam-se do plano-sequência. Entre eles Orson Welles, Glauber Rocha, Wim Wenders, Akira Kurosawa e Andrei Tarkovski. A memorável cena final do incêndio em "O Sacrifício" (1986), de Tarkovski, toda ela um longo plano-sequência de complicados movimentos de câmera, certamente seria vista por Barbaro como "a falta de sentido de muitos dos atuais cineastas, que estão fazendo o filme recuar até as mais ultrapassadas formas de teatro".
Leia a seguir um trecho do conto "Os Faroleiros", de Monteiro Lobato, do livro "Urupês" (1918), que pode ser tomado como o roteiro de uma cena em longo plano-sequência, no interior do farol:
"Mas acordado continuei a ouvir o mesmo rumor, vindo de cima da lanterna.
Pressinto a catástrofe esperada. Salto da cama e aguço o ouvido: barulho de luta. Corro à escada, galgo-a aos três degraus e no topo esbarro com a porta fechada. Tento abri-la, não cede. Escuto: era de fato luta. Rolavam corpos no chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um resfolegar surdo, entremeado de embates contra os móveis. Trevas absolutas. Nenhuma réstea de luz coava para a escada.
Minha situação era esquerda. Ficar ali, inútil, sabendo que portas a dentro dois homens se entrematavam? Permanecia nessa dubiedade, quando choque violento escancarou-me a porta. Um clarão de sol chofrou-me os olhos. Senti nas pernas um tranco e rodei escada abaixo, de cambulhada com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em rebolo no chão os dois faroleiros atracados.
Atirei-me à luta em auxílio a Gerebita".
Como num plano-sequência, a câmera segue o narrador, que acorda de um pesadelo, acompanha-o da cama até o alto do farol e desce com ele escada abaixo, mostrando sua entrada na luta. Embora não tenha aqui citado, a cena prossegue, mostrando os três homens em luta. E Lobato usa som e luz para dar mais dramaticidade à cena (estávamos na época do cinema mudo).
Em 1920, o conto "Os Faroleiros" foi filmado pelo diretor Antônio Leito. Lobato abominou o filme.

Quando o escritor vivia nos EUA, jornais brasileiros noticiaram que a Paramount estava interessada em filmar "Jeca Tatu"


Mas não só a escrita cinematográfica marca a ligação de Lobato com a sétima arte. Ele leva para seus livros infantis personagens da tela, como Shirley Temple. O caubói Tom Mix aparece em "O Circo de Escavalinho" (1929), ao lado do palhaço Piolim e de personagens lendários, como o Gato de Botas. Já o Gato Félix dos desenhos animados ganhou em 1928 um livro próprio. Essas obras foram lançadas quando o escritor vivia nos Estados Unidos como adido comercial do consulado brasileiro em Nova York. Nessa época, jornais brasileiros noticiaram que a Paramount estava interessada em filmar "Jeca Tatu".

Sheerezade aimoré Nos Estados Unidos, Lobato está ligado ao cinema. Vai ver estréias de filmes com a presença das atrizes, assiste palestra do diretor russo Sergei Eisenstein, defende o filme falado, aqui não bem-visto por parte da intelectualidade, incentivada pelo escritor e crítico Otávio de Faria e outros membros do Chaplin Club. Em "A Reforma da Natureza" (1941) nota-se a clara influência de "O Grande Ditador" (1940), de Charles Chaplin. Na célebre crítica a "Fantasia" (1940), de Walt Disney, publicada quando da exibição do filme no Brasil, Monteiro Lobato dá sua visão do que seria o cinema: "Até o aparecimento de Disney, o cinema não passava duma conjugação do teatro com a fotografia. Era uma representação teatral fotografada em todos os seus movimentos, cores e sons. Disney criou a coisa nova; a conjugação da fotografia com a imaginação. O desenho genial de Disney permite que todas as criações da imaginação possam ser fotografadas e projetadas com a riqueza dos sonhos. Uma arte, pois, absolutamente nova e jamais prevista". No livro "Negrinha" está "Marabá", um roteiro de Lobato. Começa com o escritor, meio de brincadeira, contando que está escrevendo um romance histórico que "vem de Alencar, esse filho de alguma Sheerezade aimoré". É a história de um guerreiro branco, loiro de olhos azuis, preso pelos índios, que é libertado por Iná, "a mais formosa virgem da selva". Lobato, então, interfere: "A época é apressada, automobilística, aviatória, cinematográfica, e esta minha Marabá, no andamento em que começou, não chegaria nunca ao epílogo. Abreviêmo-la, pois, transformando-a em entrecho de filme". E segue contando as histórias em quadros (cenas) e com letreiros, quando necessário (era para ser um filme mudo). Passa o tempo, Marabá, loira de olhos azuis, filha de Iná e do guerreiro branco, cresce bela nas selvas. Ipojuca, um índio da tribo, enamora-se dela. Inflamados pelo pajé, os índios tentam pegar os dois para matá-los.

Recado para DeMille A cerca altura, Lobato interrompe para dar um recado ao diretor Cecil B. DeMille. Pede que o papel de Marabá seja dado a Anette Kellermen, uma escultural nadadora australiana, que estrelara seminua "A Filha dos Deuses" (1916), como uma nativa dos mares do sul. Mas pede a DeMille para rejuvenescê-la uns 30 anos, pois Marabá "é o que existe de mais botão".
Marabá e Ipojuca fogem. Ela é aprisionada no forte dos guerreiros brancos, e Ipojuca cai ferido por uma flechada dos índios. No forte, ele vê o comandante branco abraçado a Marabá. Pensando que o capitão lhe roubara a amante, Ipojuca reúne suas últimas forças e mata Marabá com uma flechada, morrendo em seguida. "FIM".
Lida assim, parece coisa não muito boa, mas o entrecho de Lobato é bastante bem estruturado, mesclando com inteligência as cenas de ação com as de amor, mantendo o ritmo e o suspense.
Se fosse filmado hoje, daria coisa bem melhor do que as versões do Guarani que andam por aí.

Nota Para esse artigo contei com o auxílio de Vladimir Sacchetta na pesquisa e o incentivo de Joyce, neta de Lobato, e de seu marido, Jorge Kornbluh, aos quais agradeço.


Valêncio Xavier é escritor, autor de "O Mez da Gripe".


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