São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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Pesquisador contesta ensaio do psicanalista Contardo Calligaris sobre o fim do homem cordial
Brasil nenhum existe

João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha

Gostaria de propor uma leitura crítica do ensaio de Contardo Calligaris, "Do Homem Cordial ao Homem Vulgar" (publicado no Mais! de 12/12/99). Não pretendo, porém, "polemizar" com o autor. A polêmica é uma prática cordial, demasiadamente cordial, empregada à exaustão nos círculos intelectuais brasileiros e que, na maior parte dos casos, somente inviabiliza o diálogo. Apesar de instigante e por isso mesmo oportuno, o ensaio de Calligaris se baseia numa perspectiva contestável, apoiada numa leitura convencional do conceito de "homem cordial", sistematizado por Sergio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil". E desde já reconheço o cuidado com que Calligaris se afasta da interpretação psicologizante, ainda hoje a mais frequente: "Cordial aqui não significa gentil, bem-humorado ou disposto e ainda menos polido". Cordial deriva de "cor, cordis", coração em latim. Dominado pelos afetos, o homem cordial resiste à abstração de princípios universais. Ponto para Calligaris. Contudo ele compreende a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro. Além disso, estabelece uma relação imediata entre a análise de Sergio Buarque, publicada em 1936, e a sociedade brasileira contemporânea. Essas duas premissas comprometem o ponto mais fecundo de seu ensaio -a crítica à "ilusão de uma unidade que oculta nossa divisão social inconciliável".

Simpatia à brasileira Vale a pena esboçar uma breve arqueologia do conceito. Em 1931, em carta a Alfonso Reyes, Ribeiro Couto denominou "civilização cordial a atitude de disponibilidade sentimental da fusão do homem ibérico com a terra nova e as raças primitivas". Trata-se de idéia muito mais próxima da visão de Gilberto Freyre que da concepção de Sergio Buarque, pois esse emprego associa a sociabilidade brasileira à miscigenação. De fato, em "Sobrados e Mucambos", também publicado em 36, Freyre escreveu: "A simpatia à brasileira transforma esse rito como já dissemos essencialmente apolíneo de amizades entre homens em expansão caracteristicamente brasileira, dionisiacamente mulata, de cordialidade". No entanto, em "Raízes do Brasil" o mesmo conceito possui uma orientação muito diferente. Embora a expressão tenha sido tomada de Ribeiro Couto, a inspiração teórica vinha de Carl Schmitt, como Sergio Buarque esclareceu na segunda edição do livro. Por sua vez, em "O Conceito de Político", publicado no mesmo ano de "Casa Grande e Senzala" (1933), o alemão especificara o sentido de dois termos definidores de sua concepção do político, a distinção entre amigo e inimigo, com base na diferença entre esferas pública e privada. O brasileiro assimilou a idéia: "A inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade". Sergio Buarque nunca associou cordialidade a miscigenação. Ele identificou sua origem na família patriarcal, na "herança rural", cuja sociabilidade supõe a transposição da ordem privada para a ordem pública. O homem cordial pode ser visto como um tipo ideal weberiano: ele seria o precipitado de uma formação social caracterizada pela onipresença da esfera privada, logo, pelo primado das relações pessoais. Ora, a cordialidade não deve ser compreendida como uma característica essencialmente brasileira, mas antes como um traço estrutural de sociedades cujo espaço público enfrenta dificuldades para afirmar sua autonomia em relação à esfera privada. O conceito de cordialidade é um importante instrumento analítico para o estudo de grupos sociais dotados de elevado grau de autocentramento, portanto, em alguma medida, resistentes a pressões externas. Calligaris parece compreender a análise de Sergio Buarque exclusivamente como uma interpretação da formação social brasileira, sem se dar conta de sua relevância teórica. Tal relevância, porém, rejeita o procedimento usual de intelectuais que, para conquistar uma limitada inserção no mundo acadêmico internacional, se apresentam como hermeneutas iluminados da "brasilidade". É óbvio que "Raízes do Brasil" pretende oferecer uma interpretação do país. Mas ainda não lemos com a devida atenção a ressalva do próprio autor: "A idéia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é dificilmente imaginável para os povos da América Latina". E tampouco valorizamos a proximidade entre Sergio Buarque e Jorge Luis Borges: "O argentino, ao contrário dos norte-americanos e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. (...) O Estado é impessoal: o argentino somente concebe relações pessoais". Tais passagens desautorizam a associação proposta por Calligaris entre o homem cordial e um hipotético caráter nacional. Ademais, não é possível ver a sociedade brasileira contemporânea sob o signo da cordialidade como um desdobramento das teses de "Raízes do Brasil". Para Sergio Buarque, com a crescente urbanização dos anos 30 e 40 do século 20, "o homem cordial se acha fadado a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo". A superação do mundo rural levaria ao colapso da família patriarcal, centro irradiador das relações cordiais. Ao supor que, apesar do predomínio do mundo urbano, a sociedade brasileira segue cordial, Calligaris contraria o prognóstico de Sergio Buarque. Trata-se, salvo engano, de um passo necessário. Aliás, em outra ocasião, defendi a mesma idéia.

A ilusória unidade O argumento de Calligaris, porém, supõe uma continuidade não problemática, fundada na idéia de "brasilidade". Por isso, ele termina opondo a elite que, além de vulgar, encena uma "cordialidade falsa e esmagadora" ao povo, fonte de uma "cordialidade generosa". E não se esquece de perguntar: "Será que ainda é cordial?". A resposta é reveladora. Os brasileiros que não recorrerem à violência "estão preservando como podem o que sobrou desse patrimônio nacional. Tomara que aguentem e inventem um jeito de seguir cordiais".
Por fim, cumpre identificar a contradição do ensaio de Calligaris: ele se deixou enfeitiçar pela "ilusória unidade" que criticara. Não se trata da unidade que as elites buscam impor à nação, mas da própria idéia de nacionalidade, vista como substância que assegura a continuidade do homem cordial. Isso representa uma perda, pois poderíamos radicalizar sua crítica e pensar numa história cultural que reconhecesse o caráter ambíguo da formação do Brasil precisamente devido à "divisão social inconciliável". Por que não imaginar a escrita da história da cultura brasileira com base nessa hipótese? Carlos Drummond de Andrade talvez tenha intuído esse projeto ao escrever os versos:
"O Brasil não nos quer! Está farto de nós!/ Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil./ Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?".


João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).


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