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Pesquisador contesta ensaio do psicanalista
Contardo Calligaris sobre o fim do homem cordial
Brasil nenhum existe
João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha
Gostaria de propor uma leitura crítica do ensaio de Contardo Calligaris,
"Do Homem Cordial ao Homem Vulgar" (publicado no Mais! de 12/12/99).
Não pretendo, porém, "polemizar" com
o autor. A polêmica é uma prática cordial, demasiadamente cordial, empregada à exaustão nos círculos intelectuais
brasileiros e que, na maior parte dos casos, somente inviabiliza o diálogo.
Apesar de instigante e por isso mesmo
oportuno, o ensaio de Calligaris se baseia
numa perspectiva contestável, apoiada
numa leitura convencional do conceito
de "homem cordial", sistematizado por
Sergio Buarque de Holanda em "Raízes
do Brasil". E desde já reconheço o cuidado com que Calligaris se afasta da interpretação psicologizante, ainda hoje a
mais frequente: "Cordial aqui não significa gentil, bem-humorado ou disposto e
ainda menos polido".
Cordial deriva de "cor, cordis", coração em latim. Dominado pelos afetos, o
homem cordial resiste à abstração de
princípios universais. Ponto para Calligaris. Contudo ele compreende a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro.
Além disso, estabelece uma relação
imediata entre a análise de Sergio Buarque, publicada em 1936, e a sociedade
brasileira contemporânea. Essas duas
premissas comprometem o ponto mais
fecundo de seu ensaio -a crítica à "ilusão de uma unidade que oculta nossa divisão social inconciliável".
Simpatia à brasileira
Vale a pena
esboçar uma breve arqueologia do conceito. Em 1931, em carta a Alfonso Reyes,
Ribeiro Couto denominou "civilização
cordial a atitude de disponibilidade sentimental da fusão do homem ibérico
com a terra nova e as raças primitivas".
Trata-se de idéia muito mais próxima da
visão de Gilberto Freyre que da concepção de Sergio Buarque, pois esse emprego associa a sociabilidade brasileira à
miscigenação. De fato, em "Sobrados e
Mucambos", também publicado em 36,
Freyre escreveu: "A simpatia à brasileira
transforma esse rito como já dissemos
essencialmente apolíneo de amizades
entre homens em expansão caracteristicamente brasileira, dionisiacamente mulata, de cordialidade".
No entanto, em "Raízes do Brasil" o
mesmo conceito possui uma orientação
muito diferente. Embora a expressão tenha sido tomada de Ribeiro Couto, a inspiração teórica vinha de Carl Schmitt,
como Sergio Buarque esclareceu na segunda edição do livro. Por sua vez, em
"O Conceito de Político", publicado no
mesmo ano de "Casa Grande e Senzala"
(1933), o alemão especificara o sentido
de dois termos definidores de sua concepção do político, a distinção entre amigo e inimigo, com base na diferença entre esferas pública e privada. O brasileiro
assimilou a idéia: "A inimizade, sendo
pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade".
Sergio Buarque nunca associou cordialidade a miscigenação. Ele identificou
sua origem na família patriarcal, na "herança rural", cuja sociabilidade supõe a
transposição da ordem privada para a
ordem pública. O homem cordial pode
ser visto como um tipo ideal weberiano:
ele seria o precipitado de uma formação
social caracterizada pela onipresença da
esfera privada, logo, pelo primado das
relações pessoais. Ora, a cordialidade
não deve ser compreendida como uma
característica essencialmente brasileira,
mas antes como um traço estrutural de
sociedades cujo espaço público enfrenta
dificuldades para afirmar sua autonomia
em relação à esfera privada. O conceito
de cordialidade é um importante instrumento analítico para o estudo de grupos
sociais dotados de elevado grau de autocentramento, portanto, em alguma medida, resistentes a pressões externas.
Calligaris parece compreender a análise de Sergio Buarque exclusivamente como uma interpretação da formação social brasileira, sem se dar conta de sua relevância teórica. Tal relevância, porém,
rejeita o procedimento usual de intelectuais que, para conquistar uma limitada
inserção no mundo acadêmico internacional, se apresentam como hermeneutas iluminados da "brasilidade". É óbvio
que "Raízes do Brasil" pretende oferecer
uma interpretação do país. Mas ainda
não lemos com a devida atenção a ressalva do próprio autor: "A idéia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal,
pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é dificilmente imaginável para os povos da América Latina".
E tampouco valorizamos a proximidade
entre Sergio Buarque e Jorge Luis Borges:
"O argentino, ao contrário dos norte-americanos e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. (...)
O Estado é impessoal: o argentino somente concebe relações pessoais". Tais
passagens desautorizam a associação
proposta por Calligaris entre o homem
cordial e um hipotético caráter nacional.
Ademais, não é possível ver a sociedade brasileira contemporânea sob o signo
da cordialidade como um desdobramento das teses de "Raízes do Brasil".
Para Sergio Buarque, com a crescente urbanização dos anos 30 e 40 do século 20,
"o homem cordial se acha fadado a desaparecer, onde ainda não desapareceu de
todo". A superação do mundo rural levaria ao colapso da família patriarcal, centro irradiador das relações cordiais. Ao
supor que, apesar do predomínio do
mundo urbano, a sociedade brasileira
segue cordial, Calligaris contraria o
prognóstico de Sergio Buarque. Trata-se,
salvo engano, de um passo necessário.
Aliás, em outra ocasião, defendi a mesma idéia.
A ilusória unidade
O argumento
de Calligaris, porém, supõe uma continuidade não problemática, fundada na
idéia de "brasilidade". Por isso, ele termina opondo a elite que, além de vulgar,
encena uma "cordialidade falsa e esmagadora" ao povo, fonte de uma "cordialidade generosa". E não se esquece de perguntar: "Será que ainda é cordial?". A
resposta é reveladora. Os brasileiros que
não recorrerem à violência "estão preservando como podem o que sobrou
desse patrimônio nacional. Tomara que
aguentem e inventem um jeito de seguir
cordiais".
Por fim, cumpre identificar a contradição do ensaio de Calligaris: ele se deixou
enfeitiçar pela "ilusória unidade" que
criticara. Não se trata da unidade que as
elites buscam impor à nação, mas da
própria idéia de nacionalidade, vista como substância que assegura a continuidade do homem cordial. Isso representa
uma perda, pois poderíamos radicalizar
sua crítica e pensar numa história cultural que reconhecesse o caráter ambíguo
da formação do Brasil precisamente devido à "divisão social inconciliável". Por
que não imaginar a escrita da história da
cultura brasileira com base nessa hipótese? Carlos Drummond de Andrade talvez tenha intuído esse projeto ao escrever os versos:
"O Brasil não nos quer! Está farto de
nós!/ Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil./ Nenhum Brasil existe. E
acaso existirão os brasileiros?".
João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura
comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).
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