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"Vida - O Filme", de Neal Gabler, mostra como funciona a mecânica
da cultura 0do espetáculo nos Estados Unidos
A sociedade do entretenimento
Nicolau Sevcenko
especial para a Folha
O livro soa, ao mesmo tempo, estranhamente fantástico e perturbadoramente familiar. Página após
página, parágrafo após parágrafo, "Vida - O Filme" faz a
gente sacolejar na cadeira e força a abaixar o som do rádio. Devora-se tudo de uma vez só, até raspar o prato.
Mas a digestão é difícil, lenta e convulsiva, apesar de o
conteúdo ser aparentemente muito leve: o entretenimento. Literalmente é disso que se trata, emoções baratas e de como a cultura em todas as suas manifestações
acabou sendo diluída nesse caldo leviano de sensacionalismo, fofoca e trivialidades. Parece pouco, parece
morno, parece supérfluo, mas o conjunto do livro demonstra o contrário: não há tema mais relevante na cena cultural desse fim de século que esse assalto da frivolidade sobre a imaginação, a crítica e a criação.
O autor, Neal Gabler, analista cultural do "New York
Times" e do "Los Angeles Times", é conhecido por ter
escrito um clássico dos estudos de mídia, "An Empire of
Their Own - How the Jews Invented Hollywood", de
1988. A inspiração para o presente livro veio de uma
passagem de "On the Air", de Philip Roth, que Gabler
cita como epígrafe. "E se o mundo for uma espécie de...
de show?... E se todos nós formos apenas talento reunido pelo Grande Descobridor de Talentos Lá de Cima? O
Grande Show da Vida! Estrelando Todo Mundo! Imaginemos que o entretenimento seja o propósito da Vida!".
Soa familiar? Bingo! Isso mesmo, foi daí também que
saiu a inspiração para o filme "The Truman Show - o
Show da Vida", de 1998.
Outras das fontes que dão base ao trabalho crítico de
Gabler são o historiador da cultura Daniel Boorstin
-autor de outro clássico, "The Image - A Guide to
Pseudo-Events in America" (1987)-, os mestres Marshall McLuhan, Umberto Eco, Jean Baudrillard e o historiador Richard Sennet. Gente fina e da pesada, o que ratifica a dramática atualidade do tema. Mas esses autores
tendem a enfatizar sobretudo a questão das mudanças
rápidas e intensas da estrutura tecnológica no mundo
contemporâneo. Elas atuariam como o elemento dinâmico das transformações no imaginário, na sensibilidade e nos sistemas de percepção das populações nas metrópoles modernas. A eletricidade primeiro e agora a
microeletrônica fundaram uma cultura em que as tendências predominantes são a aceleração das informações, a fragmentação da percepção e o alcance coletivo
da comunicação. As populações, sobretudo nas megacidades, se tornaram um gigantesco público padronizado pelas estatísticas, mobilizado pela publicidade e seduzido pelo consumo.
Ainda que se movendo no interior desse grande contexto explicativo, Neil Gabler procura privilegiar um fator em especial, o que ele chama de "a invasão do entretenimento" ou, de forma ainda mais épica, "a revolução
do entretenimento". Gerado a partir do otimismo irradiante da belle époque, esse novo estado de disposição
aparecia plenamente configurado no editorial de lançamento de uma revista que se tornaria sua porta-voz, a
"Vanity Fair". O objetivo do novo magazine, segundo
seu editor, seria refletir e alimentar o estado de espírito
que tomava conta da América, "uma crescente devoção
ao prazer, à felicidade, à dança, ao esporte, às delícias do
país, ao riso e a todas as formas de alegria". Essa atmosfera fremente e desejante, que galvanizava as imaginações e atravessava as divisões sociais, imporia um novo
imperativo de mercado: o que quer que atendesse aos
seus apelos seria favorecido com lucros e sucesso, o que
a confrontasse seria punido com prejuízos e desgraça.
O caso americano
Essa aliás é outra peculiaridade
do livro. Enquanto os mestres citados acima estendem
suas análises para abranger todas as sociedades modernas, Neal Gabler insiste num "caso americano". Segundo ele, a modalidade puritana da tradição religiosa
mantinha um antiintelectualismo latente, fortemente
indisposto contra palavrórios complicados ou formas
artísticas sofisticadas e inacessíveis às pessoas com educação elementar. Ademais, as modalidades do protestantismo evangélico eram adeptas de práticas teatrais e
divertidas de performance, nos serviços e em especial
nos sermões.
O que teria levado a inglesa refinada Frances Trollope
a comentar com desdém que "um estranho chegado há
pouco do continente europeu ver-se-ia inclinado a supor que os locais de culto são os teatros e os cafés da região". O entretenimento pulsava assim como o ovo da
serpente na sociedade americana.
O momento decisivo para desencadear a invasão do
entretenimento como força dominante foi a eleição do
popular Andrew Jackson contra o aristocrático John
Quincy Adams. Desde então a balança sempre pesaria
para o lado do populismo. Gabler registra o novo quadro em tom categórico. "Os Estados Unidos do século
19 foram o triunfo da democracia sobre a opressão. O
encaixe entre o estético e o social não poderia ter sido
mais perfeito. Quando se juntaram, representaram
uma força extraordinária que não só insuflou a quantidade de entretenimento como lhe forneceu apoio contra os ataques elitistas. Por causa dessa aliança, a cultura
popular se transformaria na cultura dominante do país. Por causa dessa aliança,
os Estados Unidos seriam, dali em diante, a República do Entretenimento."
Uma análise elegante e que politiza o
tema, mas tem algo de redutivo ao ignorar o processo de industrialização e a formação das grandes massas operárias como responsáveis, ao mesmo tempo, por
dissolver a cultura popular tradicional e
gerar uma demanda sempre crescente de diversões, lazer e excitação nas grandes cidades, ensejando a indústria das emoções a um tostão. Gabler nesse sentido trata
praticamente como sinônimos a cultura popular e o
mundo do entretenimento.
Mitopoética
Ele não considera como a inclusão
dos proletários na sociedade industrial extirpa as bases
locais da cultura tradicional, dependente dos ciclos da
natureza e dos seus simbolismos mitopoéticos, diluindo esse complexo legado cultural num conjunto de fórmulas padronizadas, de extensão, duração e efeito calculados, para terem um preço mínimo em função de
uma ampliação máxima do consumo.
Há sim elementos da cultura popular no universo do
entretenimento, mas eles estão descontextualizados,
neutralizados e encapsulados em doses módicas, para
uso moderado nas horas apropriadas. Seu fim não é o
êxtase numinoso dos rituais populares
tradicionais, mas propiciar a seres solitários, exauridos e anônimos a identificação com as sensações do momento e
com os astros, estrelas e personalidades
do mundo glamouroso das comunicações.
Quando se trata de revelar a mecânica
dessa sociedade do espetáculo, o livro é
de uma clareza cristalina e de uma verve
irônica e corrosiva. Gabler revisita todas as manifestações da cultura, expondo impiedosamente como o seu
compromisso com os imperativos do entretenimento
causaram sua desmoralização, atribuindo-lhes aspectos manipulativos, artificiosos e cada vez mais apelativos. Suas análises sobre o jornalismo, a política, a TV, o
cinema, a música, o mercado editorial, os esportes, a arte e os museus são antológicas. Num mundo cada vez
mais conduzido pelos recursos, técnicas e truques do
"show business", esse livro se torna uma cartilha indispensável.
No geral, Gabler procura não tomar partido no quadro patético que vai descrevendo, mantendo o equilíbrio entre casos absurdos, comentários sarcásticos, atitudes cínicas e a estupidez revoltante.
Mas às vezes fala pela voz de críticos argutos, como
Neil Postman: "Quando toda uma população vê suas
atenções atraídas pelo trivial, quando a vida cultural é
redefinida como uma sucessão perene de entretenimentos, quando toda conversação pública séria se torna um balbucio infantil, quando, em suma, um povo vira platéia e seus negócios públicos, um número de teatro de revista, então a nação se acha em risco: a morte da
cultura é uma possibilidade nítida".
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura no departamento de
história da USP, autor, entre outros, de "Orfeu Extático na Metrópole" (Cia.
das Letras).
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