São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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"Vida - O Filme", de Neal Gabler, mostra como funciona a mecânica da cultura 0do espetáculo nos Estados Unidos
A sociedade do entretenimento

Nicolau Sevcenko
especial para a Folha

O livro soa, ao mesmo tempo, estranhamente fantástico e perturbadoramente familiar. Página após página, parágrafo após parágrafo, "Vida - O Filme" faz a gente sacolejar na cadeira e força a abaixar o som do rádio. Devora-se tudo de uma vez só, até raspar o prato. Mas a digestão é difícil, lenta e convulsiva, apesar de o conteúdo ser aparentemente muito leve: o entretenimento. Literalmente é disso que se trata, emoções baratas e de como a cultura em todas as suas manifestações acabou sendo diluída nesse caldo leviano de sensacionalismo, fofoca e trivialidades. Parece pouco, parece morno, parece supérfluo, mas o conjunto do livro demonstra o contrário: não há tema mais relevante na cena cultural desse fim de século que esse assalto da frivolidade sobre a imaginação, a crítica e a criação. O autor, Neal Gabler, analista cultural do "New York Times" e do "Los Angeles Times", é conhecido por ter escrito um clássico dos estudos de mídia, "An Empire of Their Own - How the Jews Invented Hollywood", de 1988. A inspiração para o presente livro veio de uma passagem de "On the Air", de Philip Roth, que Gabler cita como epígrafe. "E se o mundo for uma espécie de... de show?... E se todos nós formos apenas talento reunido pelo Grande Descobridor de Talentos Lá de Cima? O Grande Show da Vida! Estrelando Todo Mundo! Imaginemos que o entretenimento seja o propósito da Vida!". Soa familiar? Bingo! Isso mesmo, foi daí também que saiu a inspiração para o filme "The Truman Show - o Show da Vida", de 1998. Outras das fontes que dão base ao trabalho crítico de Gabler são o historiador da cultura Daniel Boorstin -autor de outro clássico, "The Image - A Guide to Pseudo-Events in America" (1987)-, os mestres Marshall McLuhan, Umberto Eco, Jean Baudrillard e o historiador Richard Sennet. Gente fina e da pesada, o que ratifica a dramática atualidade do tema. Mas esses autores tendem a enfatizar sobretudo a questão das mudanças rápidas e intensas da estrutura tecnológica no mundo contemporâneo. Elas atuariam como o elemento dinâmico das transformações no imaginário, na sensibilidade e nos sistemas de percepção das populações nas metrópoles modernas. A eletricidade primeiro e agora a microeletrônica fundaram uma cultura em que as tendências predominantes são a aceleração das informações, a fragmentação da percepção e o alcance coletivo da comunicação. As populações, sobretudo nas megacidades, se tornaram um gigantesco público padronizado pelas estatísticas, mobilizado pela publicidade e seduzido pelo consumo. Ainda que se movendo no interior desse grande contexto explicativo, Neil Gabler procura privilegiar um fator em especial, o que ele chama de "a invasão do entretenimento" ou, de forma ainda mais épica, "a revolução do entretenimento". Gerado a partir do otimismo irradiante da belle époque, esse novo estado de disposição aparecia plenamente configurado no editorial de lançamento de uma revista que se tornaria sua porta-voz, a "Vanity Fair". O objetivo do novo magazine, segundo seu editor, seria refletir e alimentar o estado de espírito que tomava conta da América, "uma crescente devoção ao prazer, à felicidade, à dança, ao esporte, às delícias do país, ao riso e a todas as formas de alegria". Essa atmosfera fremente e desejante, que galvanizava as imaginações e atravessava as divisões sociais, imporia um novo imperativo de mercado: o que quer que atendesse aos seus apelos seria favorecido com lucros e sucesso, o que a confrontasse seria punido com prejuízos e desgraça.

O caso americano Essa aliás é outra peculiaridade do livro. Enquanto os mestres citados acima estendem suas análises para abranger todas as sociedades modernas, Neal Gabler insiste num "caso americano". Segundo ele, a modalidade puritana da tradição religiosa mantinha um antiintelectualismo latente, fortemente indisposto contra palavrórios complicados ou formas artísticas sofisticadas e inacessíveis às pessoas com educação elementar. Ademais, as modalidades do protestantismo evangélico eram adeptas de práticas teatrais e divertidas de performance, nos serviços e em especial nos sermões.
O que teria levado a inglesa refinada Frances Trollope a comentar com desdém que "um estranho chegado há pouco do continente europeu ver-se-ia inclinado a supor que os locais de culto são os teatros e os cafés da região". O entretenimento pulsava assim como o ovo da serpente na sociedade americana. O momento decisivo para desencadear a invasão do entretenimento como força dominante foi a eleição do popular Andrew Jackson contra o aristocrático John Quincy Adams. Desde então a balança sempre pesaria para o lado do populismo. Gabler registra o novo quadro em tom categórico. "Os Estados Unidos do século 19 foram o triunfo da democracia sobre a opressão. O encaixe entre o estético e o social não poderia ter sido mais perfeito. Quando se juntaram, representaram uma força extraordinária que não só insuflou a quantidade de entretenimento como lhe forneceu apoio contra os ataques elitistas. Por causa dessa aliança, a cultura popular se transformaria na cultura dominante do país. Por causa dessa aliança, os Estados Unidos seriam, dali em diante, a República do Entretenimento." Uma análise elegante e que politiza o tema, mas tem algo de redutivo ao ignorar o processo de industrialização e a formação das grandes massas operárias como responsáveis, ao mesmo tempo, por dissolver a cultura popular tradicional e gerar uma demanda sempre crescente de diversões, lazer e excitação nas grandes cidades, ensejando a indústria das emoções a um tostão. Gabler nesse sentido trata praticamente como sinônimos a cultura popular e o mundo do entretenimento.

Mitopoética Ele não considera como a inclusão dos proletários na sociedade industrial extirpa as bases locais da cultura tradicional, dependente dos ciclos da natureza e dos seus simbolismos mitopoéticos, diluindo esse complexo legado cultural num conjunto de fórmulas padronizadas, de extensão, duração e efeito calculados, para terem um preço mínimo em função de uma ampliação máxima do consumo.
Há sim elementos da cultura popular no universo do entretenimento, mas eles estão descontextualizados, neutralizados e encapsulados em doses módicas, para uso moderado nas horas apropriadas. Seu fim não é o êxtase numinoso dos rituais populares tradicionais, mas propiciar a seres solitários, exauridos e anônimos a identificação com as sensações do momento e com os astros, estrelas e personalidades do mundo glamouroso das comunicações.
Quando se trata de revelar a mecânica dessa sociedade do espetáculo, o livro é de uma clareza cristalina e de uma verve irônica e corrosiva. Gabler revisita todas as manifestações da cultura, expondo impiedosamente como o seu compromisso com os imperativos do entretenimento causaram sua desmoralização, atribuindo-lhes aspectos manipulativos, artificiosos e cada vez mais apelativos. Suas análises sobre o jornalismo, a política, a TV, o cinema, a música, o mercado editorial, os esportes, a arte e os museus são antológicas. Num mundo cada vez mais conduzido pelos recursos, técnicas e truques do "show business", esse livro se torna uma cartilha indispensável.
No geral, Gabler procura não tomar partido no quadro patético que vai descrevendo, mantendo o equilíbrio entre casos absurdos, comentários sarcásticos, atitudes cínicas e a estupidez revoltante.
Mas às vezes fala pela voz de críticos argutos, como Neil Postman: "Quando toda uma população vê suas atenções atraídas pelo trivial, quando a vida cultural é redefinida como uma sucessão perene de entretenimentos, quando toda conversação pública séria se torna um balbucio infantil, quando, em suma, um povo vira platéia e seus negócios públicos, um número de teatro de revista, então a nação se acha em risco: a morte da cultura é uma possibilidade nítida".


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura no departamento de história da USP, autor, entre outros, de "Orfeu Extático na Metrópole" (Cia. das Letras).


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