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Tradutor e editor de "Pirandello, do Teatro no Teatro" responde aos comentários feitos à obra pela crítica Barbara Heliodora
O grotesco no cotidiano banal da existência
Jacó Guinsburg
especial para a Folha
Prezada Barbara Heliodora,
Em primeiro lugar, não poderia
deixar de lhe agradecer as generosas palavras sobre a importância e a oportunidade de trazer ao nosso público as obras
de Pirandello. Partindo de uma crítica
conhecida por sua severidade, o fato só
pode significar uma recompensa por um
trabalho que, entre ensaios e peças, reúne quatro textos do autor e três trabalhos
introdutórios, num total de 400 páginas.
Achei oportuno empreender essa publicação, não apenas por meu interesse pela
originalidade criativa do escritor, como
pelo extraordinário papel que as suas
realizações e a sua percepção estética desempenharam na linguagem do teatro
moderno, muito mais do que no vocabulário da crítica, como você afirma.
Basta lembrar a influência do dramaturgo italiano nos renovadores da cena
das décadas de 20 e 30 e no Teatro do Absurdo. E foi justamente a importância de
sua estética, entre cujos elementos o humor desempenha um papel dramático
primordial como operador da tragicomédia, do contra-senso e do grotesco no
cotidiano banal da existência, que eu
quis ressaltar na minha introdução, e
não, simplesmente, exaltar o gênio de Pirandello, cujo reconhecimento é de tal
modo voz pública, que dispensaria perfeitamente o meu louvor, tornando-o
mero lugar-comum.
É claro que, ao tentar trazer para o português tais escritos, tive de adotar alguns
critérios e, um deles, dada a diversidade
das interpretações daquilo que é coloquial, de qual seja a forma falada corrente e de que crédito verbal se pode conceder ao receptor sem cair no rol da inadimplência linguística, mesmo no tumulto vernacular deste fim de milênio,
foi o que está manifesto na nota de edição, à pág. 9, onde esclareço "que a forma
final de cada uma destas obras é de minha responsabilidade, tendo eu me guiado pelo desejo de conferir à versão em
português a mesma norma da linguagem original, não obstante os coloquialismos, e também por julgar que as adaptações às necessidades do diálogo no palco devem ficar a cargo dos diretores e
atores, conforme seus projetos de encenação".
Pautando-me por esse princípio e pela
consideração de que o léxico do leitor
brasileiro vai certamente além de um
português básico, utilizei as expressões
que o idioma me proporciona para lhe
dar acesso à riqueza do vocabulário de
Pirandello, que, aliás, é tão singular
quanto o de todos aqueles que procuram
expandir os limites da nossa apreensão,
reflexão e expressão a respeito das coisas
e do mundo em que vivemos. O autor de
"O Humorismo", nesse particular, é até
bastante reservado no tocante ao emprego da terminologia filosófica e crítica.
Recorre, sem nenhum exagero preciosista, a uma linguagem que é comum aos
críticos e filósofos de sua época e o faz em
termos que são os de todas as épocas, na
operação crítica do discurso.
Gols marcados
É claro que ele se arma do instrumental de sua cultura e de
sua formação, em especial a italiana e a
latina, cuja história literária, em alguns
momentos de particular força artística,
ele traz à baila em proveito não só de seus
argumentos, mas também da informação do leitor e de sua capacitação para
poder avaliar as proposições. Não se trata de um problema de alta erudição, porém simplesmente de um debate que não
pode ser desenvolvido ao nível do encontro de duas torcidas de futebol, como
tampouco pode ser resumido, nas duas
páginas finais, como se fossem os gols
marcados.
Dito isso, minha cara Barbara Heliodora, gostaria de abusar de sua paciência,
que eu sei que não é grande, para esclarecer outras transgressões minhas. Começo a "respigar" (palavra que não encontrei nos textos, mas que usaria sem o menor pejo), isto é, a colher as espigas que
você considera as menores dentre meus
pecadilhos. E vou pela ordem: o uso do
termo "retor" no ensaio
destina-se justamente a
designar o "mestre em retórica" e evitar a conotação adjetiva da palavra
(que aparece cinco ou seis
vezes no trecho em questão), a qual pode encerrar
inclusive, às vezes, um nexo pejorativo; algo semelhante ocorre com o vocábulo "provincial", utilizado de propósito para caracterizar procedência (de uma província, é claro) e para
não incidir no sentido depreciativo de
provinciano. Por fim, nesse capítulo, na
minha qualidade de infrator contumaz
da norma falada vigente, segundo seu
decreto, não me pareceu que o leitor ou
espectador teriam alguma dificuldade de
entender "insulso" como "insosso", um
e outro de largo emprego na literatura.
A cabeçorra
Prosseguindo neste
exame, direi que, tendo o autor escrito
que "o homenzinho mede pouco mais
que uma braçada" (grafado como "uma
braça" por erro de revisão), ele dispensa
minha tradução para o sistema métrico
decimal que, àquela altura, creio eu, já
havia chegado à península italiana. Do
mesmo naipe é o reparo sobre o homenzinho e a sua "cabeçorra", porquanto o
aumentativo está ali precisamente para
provocar efeito cômico e grotesco entre o
nanico e o volume de seu crânio.
Nessa linha de idéias, ainda, não vejo
por que não funciona bem, em português, a locução onde algo corre ou "escorre liso como óleo", na medida em
que, não só é uma forma bastante familiar (pelo menos ao meu ouvido paulista), como a palavra "liso" quer dizer também, conforme o "Michaelis" (Novo Dicionário da Língua Portuguesa), "corredio" ou "corrediço", ou seja, "o que corre", acepção que, sem dúvida, não consta
do nosso "Aurélio".
No meu entendimento, "as abas da
cortina" são referências não menos próprias do que "as fraldas da cortina" ou,
simplesmente, "as cortinas" ou "os panos da cortina", que, obviamente, eliminariam o fato de estar sendo nomeada a
existência de duas partes constitutivas da
cortina. Concedo que "alimento" poderia soar melhor que "nutrimento" (1),
mas também peço sursis
por esta ou aquela falha
em um conjunto de escritos em que figuram quase
100 mil palavras e prometo corrigir as que me forem apontadas, como no
caso acima.
Quero registrar ainda
que, para a minha surpresa, há um édito segundo o
qual o ator não pode "vir à
frente" ou "para a frente", sendo-lhe facultado apenas avançar ou descer, seguramente em ordem unida. No domínio
das ilegalidades, outra pela qual devo
responder se prende à "fortuna", e
adianto que meu computador se recusa a
achar nos textos uma que seja "bela",
mas tive a ventura de me deparar 12 vezes com a "sorte" e apenas três com a
(boa) "fortuna", afora duas em que ela se
limita a ser "destino".
Deixo para o fim duas observações
suas, minha prezada Barbara Heliodora.
Uma que, não fosse certamente a pressa
de terminar um artigo, você não a teria
feito, levando uma personagem, proprietária de uma "solfatara" ou "solfatada" (mina de enxofre), não a morrer pela
inalação de "grisu" (2), como sugere a fala, mas a viver pintada com a cor cinzenta do "griséu".
Agora, chego à falta que mereceu particular destaque na sua crítica, devido à
má tradução do termo "donati", à pág.
103. Só posso alegar nesse caso que, salvo
conhecimentos ultra-especializados, que
talvez você os tenha, não encontrei em
todos os dicionários que compulsei, inclusive o "Novíssimo Dizionario de F.
Palazzi" (Milão, 1970), outra definição
do vocábulo senão a ligada ao verbo
"doar" e não "herdar", como você interpreta, e acrescento que não vejo nenhum
dano ao sentido, na minha versão.
Agradecendo desde logo a particular
atenção que você dedicou a essa edição e
a um autor que talvez não goze de sua
plena simpatia, mas que, a meu ver, é um
dos grandes inovadores do teatro do século 20, continuo admirador de sua proficiência crítica e despeço-me esperando
ter esclarecido, pelo menos em parte, os
percalços de leitura que minhas traduções lhe causaram.
Pirandello, do Teatro no Teatro
405 págs., R$ 35,00
de Luigi Pirandello
Trad. de J. Guinsburg e outros
Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP
01401-000, SP, tel. 0/xx/11/
885-8388).
Notas
1. Embora nem todo alimento seja um nutrimento.
2. Segundo o dicionário Aurélio, "grisu", do valão
"grisou", pelo francês "grisou". Gás inflamável
contido nas minas de carvão e que encerra quantidades variáveis de metano.
Jacó Guinsburg é editor da Perspectiva e professor
aposentado de teoria do teatro da USP.
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