São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


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Tradutor e editor de "Pirandello, do Teatro no Teatro" responde aos comentários feitos à obra pela crítica Barbara Heliodora
O grotesco no cotidiano banal da existência

Jacó Guinsburg
especial para a Folha

Prezada Barbara Heliodora, Em primeiro lugar, não poderia deixar de lhe agradecer as generosas palavras sobre a importância e a oportunidade de trazer ao nosso público as obras de Pirandello. Partindo de uma crítica conhecida por sua severidade, o fato só pode significar uma recompensa por um trabalho que, entre ensaios e peças, reúne quatro textos do autor e três trabalhos introdutórios, num total de 400 páginas. Achei oportuno empreender essa publicação, não apenas por meu interesse pela originalidade criativa do escritor, como pelo extraordinário papel que as suas realizações e a sua percepção estética desempenharam na linguagem do teatro moderno, muito mais do que no vocabulário da crítica, como você afirma. Basta lembrar a influência do dramaturgo italiano nos renovadores da cena das décadas de 20 e 30 e no Teatro do Absurdo. E foi justamente a importância de sua estética, entre cujos elementos o humor desempenha um papel dramático primordial como operador da tragicomédia, do contra-senso e do grotesco no cotidiano banal da existência, que eu quis ressaltar na minha introdução, e não, simplesmente, exaltar o gênio de Pirandello, cujo reconhecimento é de tal modo voz pública, que dispensaria perfeitamente o meu louvor, tornando-o mero lugar-comum. É claro que, ao tentar trazer para o português tais escritos, tive de adotar alguns critérios e, um deles, dada a diversidade das interpretações daquilo que é coloquial, de qual seja a forma falada corrente e de que crédito verbal se pode conceder ao receptor sem cair no rol da inadimplência linguística, mesmo no tumulto vernacular deste fim de milênio, foi o que está manifesto na nota de edição, à pág. 9, onde esclareço "que a forma final de cada uma destas obras é de minha responsabilidade, tendo eu me guiado pelo desejo de conferir à versão em português a mesma norma da linguagem original, não obstante os coloquialismos, e também por julgar que as adaptações às necessidades do diálogo no palco devem ficar a cargo dos diretores e atores, conforme seus projetos de encenação". Pautando-me por esse princípio e pela consideração de que o léxico do leitor brasileiro vai certamente além de um português básico, utilizei as expressões que o idioma me proporciona para lhe dar acesso à riqueza do vocabulário de Pirandello, que, aliás, é tão singular quanto o de todos aqueles que procuram expandir os limites da nossa apreensão, reflexão e expressão a respeito das coisas e do mundo em que vivemos. O autor de "O Humorismo", nesse particular, é até bastante reservado no tocante ao emprego da terminologia filosófica e crítica. Recorre, sem nenhum exagero preciosista, a uma linguagem que é comum aos críticos e filósofos de sua época e o faz em termos que são os de todas as épocas, na operação crítica do discurso.

Gols marcados É claro que ele se arma do instrumental de sua cultura e de sua formação, em especial a italiana e a latina, cuja história literária, em alguns momentos de particular força artística, ele traz à baila em proveito não só de seus argumentos, mas também da informação do leitor e de sua capacitação para poder avaliar as proposições. Não se trata de um problema de alta erudição, porém simplesmente de um debate que não pode ser desenvolvido ao nível do encontro de duas torcidas de futebol, como tampouco pode ser resumido, nas duas páginas finais, como se fossem os gols marcados. Dito isso, minha cara Barbara Heliodora, gostaria de abusar de sua paciência, que eu sei que não é grande, para esclarecer outras transgressões minhas. Começo a "respigar" (palavra que não encontrei nos textos, mas que usaria sem o menor pejo), isto é, a colher as espigas que você considera as menores dentre meus pecadilhos. E vou pela ordem: o uso do termo "retor" no ensaio destina-se justamente a designar o "mestre em retórica" e evitar a conotação adjetiva da palavra (que aparece cinco ou seis vezes no trecho em questão), a qual pode encerrar inclusive, às vezes, um nexo pejorativo; algo semelhante ocorre com o vocábulo "provincial", utilizado de propósito para caracterizar procedência (de uma província, é claro) e para não incidir no sentido depreciativo de provinciano. Por fim, nesse capítulo, na minha qualidade de infrator contumaz da norma falada vigente, segundo seu decreto, não me pareceu que o leitor ou espectador teriam alguma dificuldade de entender "insulso" como "insosso", um e outro de largo emprego na literatura.

A cabeçorra Prosseguindo neste exame, direi que, tendo o autor escrito que "o homenzinho mede pouco mais que uma braçada" (grafado como "uma braça" por erro de revisão), ele dispensa minha tradução para o sistema métrico decimal que, àquela altura, creio eu, já havia chegado à península italiana. Do mesmo naipe é o reparo sobre o homenzinho e a sua "cabeçorra", porquanto o aumentativo está ali precisamente para provocar efeito cômico e grotesco entre o nanico e o volume de seu crânio.
Nessa linha de idéias, ainda, não vejo por que não funciona bem, em português, a locução onde algo corre ou "escorre liso como óleo", na medida em que, não só é uma forma bastante familiar (pelo menos ao meu ouvido paulista), como a palavra "liso" quer dizer também, conforme o "Michaelis" (Novo Dicionário da Língua Portuguesa), "corredio" ou "corrediço", ou seja, "o que corre", acepção que, sem dúvida, não consta do nosso "Aurélio".
No meu entendimento, "as abas da cortina" são referências não menos próprias do que "as fraldas da cortina" ou, simplesmente, "as cortinas" ou "os panos da cortina", que, obviamente, eliminariam o fato de estar sendo nomeada a existência de duas partes constitutivas da cortina. Concedo que "alimento" poderia soar melhor que "nutrimento" (1), mas também peço sursis por esta ou aquela falha em um conjunto de escritos em que figuram quase 100 mil palavras e prometo corrigir as que me forem apontadas, como no caso acima.
Quero registrar ainda que, para a minha surpresa, há um édito segundo o qual o ator não pode "vir à frente" ou "para a frente", sendo-lhe facultado apenas avançar ou descer, seguramente em ordem unida. No domínio das ilegalidades, outra pela qual devo responder se prende à "fortuna", e adianto que meu computador se recusa a achar nos textos uma que seja "bela", mas tive a ventura de me deparar 12 vezes com a "sorte" e apenas três com a (boa) "fortuna", afora duas em que ela se limita a ser "destino".
Deixo para o fim duas observações suas, minha prezada Barbara Heliodora. Uma que, não fosse certamente a pressa de terminar um artigo, você não a teria feito, levando uma personagem, proprietária de uma "solfatara" ou "solfatada" (mina de enxofre), não a morrer pela inalação de "grisu" (2), como sugere a fala, mas a viver pintada com a cor cinzenta do "griséu".
Agora, chego à falta que mereceu particular destaque na sua crítica, devido à má tradução do termo "donati", à pág. 103. Só posso alegar nesse caso que, salvo conhecimentos ultra-especializados, que talvez você os tenha, não encontrei em todos os dicionários que compulsei, inclusive o "Novíssimo Dizionario de F. Palazzi" (Milão, 1970), outra definição do vocábulo senão a ligada ao verbo "doar" e não "herdar", como você interpreta, e acrescento que não vejo nenhum dano ao sentido, na minha versão.
Agradecendo desde logo a particular atenção que você dedicou a essa edição e a um autor que talvez não goze de sua plena simpatia, mas que, a meu ver, é um dos grandes inovadores do teatro do século 20, continuo admirador de sua proficiência crítica e despeço-me esperando ter esclarecido, pelo menos em parte, os percalços de leitura que minhas traduções lhe causaram.



Pirandello, do Teatro no Teatro
405 págs., R$ 35,00 de Luigi Pirandello
Trad. de J. Guinsburg e outros
Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/ 885-8388).


Notas 1. Embora nem todo alimento seja um nutrimento.
2. Segundo o dicionário Aurélio, "grisu", do valão "grisou", pelo francês "grisou". Gás inflamável contido nas minas de carvão e que encerra quantidades variáveis de metano.



Jacó Guinsburg é editor da Perspectiva e professor aposentado de teoria do teatro da USP.


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