São Paulo, Domingo, 09 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Por trás da regra

Jorge Coli
especial para a Folha

São três excelentes filmes: "Cradle Will Rock", de Tim Robbins, "The Green Mile", de Franck Darabont, "The Cider House Rules", de Lasse Hallström. Num, o tema é política e arte. Em outro, cadeira elétrica e poderes sobrenaturais. No terceiro, órfãos e abortos. Nessa disparidade, há pontos comuns. Os três se passam nos EUA do entreguerras, no rigor da depressão. Apresentam, todos, uma crítica imediata à ordem, às leis, às regras. "Cradle Will Rock", ao tratar da efervescência artística em NY nos anos 30, centrando-se no musical censurado de Marc Blitzstein e no célebre mural que opôs Diego Rivera aos Rockfeller, não se preocupa em dar espessura aos personagens. Consegue, porém, um cruzamento bastante complexo, no qual a generosidade criadora se mistura ao oportunismo, enfrentando normas e censores. "The Green Mile", fiel ao romance de Stephen King, põe de cabeça para baixo a relação entre crime e castigo. "The Cider House Rules" mostra uma densidade humana que não se encaixa nunca na estreiteza clara das leis. A cultura americana, feita de obediência "democrática" a parâmetros fortemente repressores, surge, nesses três filmes, desprovida de humanidade. O humano está por trás dela. Para atingi-lo é preciso uma consciência, ou antes, uma intuição compreensiva dos comportamentos de cada um. "Não é a respeito de mal, é a respeito de regras", diz um vilão de "The Green Mile". Na verdade, o mal se dissimula nas regras.

Sombrero - O trotskismo militante de Diego Rivera nunca o impediu de receber encomendas americanas. Entre elas estão os murais para a Bolsa de San Francisco, na Califórnia, e para o Museu de Detroit, patrocinado pela Ford. Em 1933, Nelson e John D. Rockfeller o convidam para decorar o saguão do Rockfeller Center, em NY. Tempos curiosos: é um artista de extrema-esquerda que deveria dar cores ao âmago simbólico e pulsante do capitalismo ocidental. Perfeita oportunidade para o escândalo de uma radicalização espetacular. Rivera foge do programa aprovado. Pinta, com destaque, os rostos de Lênin e de Trótski. São imagens evidentemente inaceitáveis: os Rockfeller propõem a transferência do mural para um museu, mas Rivera recusa, num heroísmo duvidoso. O brilho do vermelho ideológico disfarçava, assim, as notas verdes. No fim, tudo acaba bem: o mural é destruído, mas refeito no Palácio das Belas Artes do México. Diego Rivera é pago duas vezes, em dólares e em pesos. O saguão do Rockfeller Center termina por receber as pinturas de Sert, ótimo decorador catalão. Que põe Lincoln no lugar de Lênin.

Imaterial - "Cradle Will Rock" inicia contrastando o fascínio de uma imensa tela de cinema à miséria de uma atriz sem emprego. "Cider House" mostra um menino doente morrendo com o sorriso nos lábios, ao assistir a "King Kong". Em "Green Mile", um preto enorme, inocente, mas condenado à pena de morte, vê, nas vésperas da execução, "Top Hat", seu primeiro e último filme. É o momento de "Cheek to Cheek". Fred Astaire e Ginger Rogers dançam, aéreos. Fred Astaire canta: "Heaven, I'm in Heaven". O prisioneiro diz: "São anjos".

Bobagem - A retrospectiva do Whitney Museum, "The American Century", centrou-se no que foi suposto caracterizar a produção artística americana. Determinou, porém, um núcleo convencional que trata apenas de "grande cultura". Elvis, Madonna, Michael Jackson estão lá, mas sempre através de uma lente "highbrow". Ficaram de fora alguns desdenhados, que críticos e curadores não engolem como arte. Normann Rockwell, gênio gráfico que desenhou uma definitiva feição americana, não teve a honra.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


Texto Anterior: + livro - réplica - Jacó Guinsburg: O grotesco no cotidiano banal da existência
Próximo Texto: Joyce Pascowitch
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.