São Paulo, domingo, 9 de março de 1997.

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VERDADES E MENTIRAS
O ciclo inflacionário da agressão


Por que a mídia sempre parte para o ataque
ADAM GOPNIK
da ``The New Yorker''

Os detalhes das queixas feitas contra a imprensa já ficaram tão difusos, que quase se autocancelam. As mídias são acusadas de ser povoadas por ideólogos fanáticos, dispostos a distorcer qualquer fato ou denegrir qualquer reputação para adequar-se à sua ``pauta de prioridades'' e, ao mesmo tempo, de serem compostas de cínicos blasés que não têm respeito por nada. Vistos como Torquemadas nas segundas, quartas e sextas-feiras, os jornalistas seriam Oscar Wildes, digitando freneticamente em seus ``laptops'', nos outros dias da semana.
O aspecto Torquemada é fácil de identificar. Embora a mídia tenha, nos últimos 20 anos, reclamado o que equivale a direitos de promotor e juiz -o direito de devassar vidas privadas, desencavar histórias antigas, escarnecer, julgar etc.-, um balanço de sua atuação revela que ela tem tido muito poucos sucessos inequívocos quando comparados à quantidade de infelicidade humana que causou.
A culpa maior de algumas das figuras públicas que mais sofreram devido a esse novo tratamento dispensado pela imprensa era a de serem humanos, simplesmente. É a natureza arbitrária e quase aleatória dessas campanhas denegridoras e, sobretudo, o tom de farisaísmo que as acompanha, que faz com que quase todos os ocupantes de algum cargo público, desde o administrador de um museu até o presidente da República, se sintam assediados.
Qualquer telespectador comum que tenha assistido às entrevistas coletivas dos presidentes nas duas últimas administrações não terá deixado de perceber o tom de indignação moral farisaica com que os repórteres formulam suas perguntas, que parecem visar não tanto a obter determinada informação ou a trazer à tona determinado ponto de vista quanto a ilustrar, em tom dramático, o abismo supostamente existente, em termos de estatura moral, entre os repórteres e o presidente.
Alguns tópicos que se tornam alvo de uma cobertura obsessivamente exagerada parecem tomar conta da mídia inteira e esgotar a ela e a nós, chegando a um nível de histeria que assume um caráter quase sexual. Os casos de O.J. Simpson e Tonya Harding, por exemplo, parecem seguir uma trama narrativa composta de desejo e exaustão (às vezes seguidos de remorso). Todo mundo sente que há algo de errado nesse tipo de atenção excessiva, mas ninguém quer ser o primeiro a parar.
É essa falta de vergonha que acaba degringolando e se transformando no que geralmente se conhece por ``cinismo'' -isto é, a disposição em atribuir motivações vis a qualquer pessoa que, por acaso, seja o objeto das atenções do momento (é claro que muitas vezes é difícil diferenciar o farisaísmo do cinismo: às vezes, as duas palavras soam como nomes diferentes da mesma coisa).
Entre jornalistas e repórteres, o sentimento de que alguma coisa está errada na mídia norte-americana às vezes gera uma atitude defensiva que beira a paranóia. Quando se trata de acusações de jogo sujo, adotamos o que se poderia qualificar como a Defesa Modificada Menendez: ``Afinal, eles estavam pedindo isso''. A justificativa adotada é a de que todo mundo acaba apanhando igualmente, o que não é bem verdade -e de qualquer modo não é o que se está discutindo. E o argumento segundo o qual, se a imprensa está sendo atacada por todos os lados, deve ser porque está fazendo alguma coisa certa, também é capcioso. Se você é atacado por todos os lados, é possível que esteja fazendo algo certo, mas é igualmente possível que esteja fazendo tudo errado.
Entre aqueles que sentem que algo na imprensa está errado existe uma tendência a reduzir a história recente da imprensa a uma dicotomia simples: as forças do ``jornalismo tablóide'' contra as do jornalismo sério, vistas como envolvidas numa batalha constante.
Carl Bernstein, por exemplo, argumenta que a ``cultura idiota'' do escândalo e do sensacionalismo precisa ser contrabalançada constantemente pela reafirmação da tradição investigativa que ele próprio representa. A longo prazo, porém, as novas atitudes na imprensa podem não ter vazado de baixo para cima, vindas do esgoto, tanto quanto mergulhado de cima para baixo, e são consequência de uma distorção muito peculiar na lógica do jornalismo cético, que Bernstein ajudou a revigorar.
Nos últimos 20 anos, a imprensa americana sofreu uma transformação, passando de uma cultura do acesso a uma cultura da agressão: a tradição, desenvolvida após a Guerra Civil, na qual o progresso profissional do jornalista dependia de sua intimidade com o poder se transmudou para uma tradição em que seu sucesso também pode depender de uma disposição em encenar demonstrações visíveis e ritualizadas de agressão. Antigamente, o repórter ganhava status quando jantava com os personagens de seus artigos; hoje, ganha status quando os janta. Mas como sua agressão ainda precisa se manifestar dentro das velhas instituições da imprensa comercial, cujo objetivo e cuja conquista histórica foi a supressão do pensamento político nos interesses de um ideal (ou pelo menos na aparência de um ideal) de objetividade, a nova cultura obrigou o repórter a levar uma vida dupla. Hoje as mídias se comprazem com a agressão, ao mesmo tempo que seus próprios códigos não permitem que essa agressão tenha alguma relação com argumentos políticos sérios, muito menos com idéias adultas sobre conduta e moralidade.
A agressão se transformou em uma espécie de forma abstrata, praticada num espaço vazio de idéias ou mesmo de solidariedade comum. Num paradoxo sombrio, a mídia dos EUA, pelo fato de sua agressão ter sido mantida afastada de boas idéias, se tornou surpreendentemente vulnerável às más idéias. Tendo se transformado em uma espécie de fórum para o tipo de maluquice antes restrita às margens da vida americana, nada restou para ser feito pelas mídias senão assistir ao processo e fazer de conta que é divertido.
O tom blasé e o tom acusatório são máscaras, podendo ser trocadas com rapidez suficiente para que se possa transmitir uma aparência de atividade e neutralidade ao mesmo tempo. Ou, expressando a coisa em outras palavras, o cinismo e a santimônia se revelam ser um pouco como o magnetismo e a eletricidade -dois aspectos de um campo único, perpetuando-se num vácuo vazio de pensamentos.
Associated Press
Johny Cochran Jr., um dos advogados de defesa de O.J.Simpson, é assediado pela imprensa na porta do tribunal durante julgamento em 95




O que o sistema antigo, tanto em suas esferas superiores quanto nas inferiores, entendia era que o trabalho do mundo é feito, e sempre o será, no espaço existente entre as declarações bem-intencionadas oficiais e as possibilidades humanas. Antes, a imprensa reconhecia as possibilidades humanas; hoje, às vezes parece ser a fonte principal de declarações oficiais.
Com o tempo, ficou claro que o jornalista poderia avançar mostrando-se agressivo, não para realizar alguma coisa, mas pura e simplesmente para ser visto como sendo agressivo. A agressão passou a ser, em grande medida, livre de riscos para o agressor. De vez em quando alguém saía magoado -algumas amizades chegaram a ser rompidas-, mas esses casos eram raros, já que os rituais exigiam um bom companheirismo, e a mágoa passa a ser reinterpretada como "defensividade", um termo estranho cunhado pelos norte-americanos.
Mas, como ninguém pode admitir que comete agressões apenas para seu próprio proveito profissional, a agressão tem que ser justificada com um prospecto elaboradamente detalhado de desinteresse.
Por baixo da insinceridade estudada exigida pela nova agressão havia uma irrealidade mais profunda. A mídia, por mais agressiva que pudesse se tornar, jamais seria livre ou independente, no sentido mais verdadeiro das palavras. Continuava sendo composta de empresas grandes, com fins lucrativos, e os jornalistas, não importa o que mais pudessem ser, continuavam sendo empregados dessas empresas.
As pressões econômicas exercidas sobre os jornalistas normalmente não eram pressões que os obrigassem a seguir a política de seus patrões. Na maioria dos casos, o que se exigia deles não era tanto pureza ideológica, mas simplesmente que produzissem "histórias", e essas histórias soavam melhores se fossem agressivas. Como Michael Arlen observou na década de 70, a agressividade e hostilidade pura e simples haviam se tornado uma das formas favoritas de entretenimento dos norte-americanos.
É óbvio por que os editores exigem um tipo específico de beligerância. A agressividade vende bem. O porquê de ela vender bem é um pouco mais difícil de explicar. Ou, melhor dizendo -já que a agressão sempre vendeu bem-, é difícil explicar por que o tratamento jornalístico conscientemente maldoso permaneceu por tanto tempo segregado da grande imprensa.
O jornalismo agressivo parece prosperar num ambiente que os autores de "The Journalism of Outrage" (um estudo do jornalismo investigativo contemporâneo redigido por sete professores de jornalismo), referindo-se à situação da imprensa no final do século 19, qualificam de "instabilidade competitiva" -em que há "publishers" e jornais demais tentando atrair os mesmos leitores, cientes de que quando a caçada terminar, muitos jornais estarão fechados, e muitos repórteres, desempregados, e temerosos por conta disso.
Essa instabilidade foi gerada cem anos atrás pelo crescimento da imprensa popular. Ela é gerada hoje pelo crescimento da televisão, que tornou o mercado do jornalismo de todos os tipos tão competitivo que não sobra muito lugar para a boa vontade. Também existe uma espécie de ciclo inflacionário fatal embutido em qualquer sistema que premia a agressividade. O furo de ontem se transforma no tédio de hoje, e a única maneira de continuar captando a atenção do público é aumentar as apostas continuamente.
Diz a visão convencional que a imprensa se tornou agressiva para poder refrear os poderes instituídos. Isso deveria significar que, quanto mais autoritária a figura no poder, mais agressiva seria a reação da imprensa a ela. Mas parece que o que acontece é exatamente o oposto: quanto mais autoritária é a figura, mais complacente é a imprensa.
À medida que a agressão foi se tornando uma arte abstrata na grande imprensa, ela encorajou a infiltração da brutalidade ideológica vinda das margens. Quando a agressão em sentido se confronta com a agressão que tem um objetivo claro, os ideólogos acabam soando como pessoas pensantes. O sistema funciona para assegurar que as únicas pessoas às quais se atribui crédito por suas convicções são aquelas que têm convicções demais.
Tanto a esquerda quanto a direita se beneficiaram dessa nova ética da agressão, de maneiras diferentes, e nessa briga a extrema-direita obteve uma vantagem surpreendente e crucial. O pensamento de esquerda nos EUA tende a ser extremamente abstrato -é isso que o torna tão atraente aos estudantes universitários. Ele oferece explicações amplas e sistemáticas para coisas pequenas.
A esquerda se envolveu tão profundamente com a idéia de que a consciência gera a realidade -de que a política cultural é a única política real-, que muitos de seus integrantes se contentam com vitórias no campo da consciência e ficam entediados com o trabalho político de fato. A esquerda americana dedica suas energias aos estudos culturais, não ao ativismo no campo das reformas da saúde.
Por outro lado, o pensamento de direita americano, mesmo a direita séria, tende a ser extremamente pessoal. A direita -para crédito seu- ainda acredita nas consequências das ações individuais, e isso faz com que ela seja muito mais eficiente quando se trata de destacar as maldades e os erros dos indivíduos. A direita é muito mais eficiente quando se trata de assassinar o caráter de alguém, porque ela ainda acredita em caráter.
Esses hábitos mentais diferentes talvez expliquem o fato aparentemente estranho de que, embora a mídia americana tenda à esquerda em termos de direção geral, nos detalhes de seus ataques pessoais ela ainda tende à direita.
Rush Limbaugh e Noam Chomsky têm razão, ambos: a maioria das pessoas na imprensa americana compartilha os preconceitos culturais da esquerda, mas ainda implementa as vendetas políticas da direita. Os objetivos da esquerda são políticos e suas vitórias são culturais, enquanto as aspirações da direita são culturais e suas vitórias, políticas. Essa situação não incomoda as pessoas de esquerda, já que elas acreditam que vitórias culturais são a mesma coisa que vitórias políticas, mas deixa as de direita enfurecidas, e isso explica um dos aspectos mais curiosos da mídia norte-americana nos últimos dez anos -a virada extraordinariamente amargurada e maldosa feita pela imprensa de direita, num momento em que está vencendo praticamente todas as batalhas políticas.
Muita coisa já foi escrita sobre a virada ideológica assustadora descrita pelos meios acadêmicos americanos nos últimos dez anos. O que muitas vezes se percebe menos é a virada à direita testemunhada em setores antes essencialmente moderados.
Não é difícil identificar os motivos dessa virada amarga à direita. Normalmente, os conservadores americanos que se dão ao trabalho de escrever são conservadores sociais ou culturais, amedrontados ou alarmados com a ruptura das continuidades e das verdades da vida norte-americana testemunhada nos últimos 20 anos. Para o campo oposto, é claro, a história recente da direita norte-americana parece ser de vitórias quase ininterruptas, mas a própria direita não a enxerga assim. A direita vem dominando o debate político americano -ela conseguiu colocar seu líder na Casa Branca por oito anos e seu seguidor por mais quatro-, e até agora nada mudou realmente. Se alguma coisa mudou, foi a enxurrada de transformações sociais que se tornou até mais forte.
A ironia é que esse rumo dos acontecimentos encontra uma explicação perfeita na teoria política conservadora. Qualquer conservador burkeano sabe por que uma vitória política da direita não pode interromper a enxurrada de transformações sociais: é porque a política eleitoral exerce um efeito muito limitado sobre o mundo real.


A vida dos parlamentos não guarda muita relação com a vida das mentes e dos corações. Algumas das mesmas pessoas que votaram em Ronald Reagan compravam discos de Madonna. No entanto, os conservadores americanos persistem na crença nada conservadora de que eleger deputados e senadores é capaz de mudar uma cultura. Isso não acontece sob a égide de Ronald Reagan, e é pouco provável que aconteça sob Newt Gingrich.
Mas a direita decidiu que não tem conseguido exercer o poder que conquistou devido a uma conspiração. As coisas ruins acontecem porque pessoas ruins as fazem acontecer. A imprensa do establishment, por sua vez, pronta para prestar maior atenção a narrativas acusatórias e agressivas de qualquer tipo, tornou-se tão vulnerável às vendetas pessoais da direita quanto o é às reivindicações sistemáticas da esquerda. Ela apresenta essas vendetas com a ajuda de um conjunto de eufemismos -"iconoclasta", "dissidente"- que reduzem a distância entre investigação honesta e ódio a uma diferença de tom.
Os problemas de Bill Clinton com a mídia se devem em parte a suas curiosas fraquezas e são exacerbados por sua evidente vulnerabilidade. Em "Out of Order" -um livro que Clinton parece apreciar e que, segundo consta, costuma recomendar às pessoas-, Thomas Patterson aponta um fenômeno mais complexo: que o tipo de tratamento proporcionado a Clinton não é exclusivo de Clinton nem tampouco, como ele diz num posfácio à edição em capa mole do livro, parte do tratamento crítico dado a todos os presidentes. Segundo Patterson, trata-se de um fenômeno histórico recente que também se manifesta na maneira pela qual a imprensa tratou George Bush.
À medida que a economia melhorava, a imprensa intensificava suas críticas ao presidente, fato que nos leva a desconfiar que a ansiedade da classe média estava sendo alimentada pela agressão abstrata da mídia. O que começou com Bush se estendeu a Clinton, sendo agravado pela vulnerabilidade deste, que só fez incentivar mais críticas.
A tese mais ampla de Patterson é que a política nos EUA é praticada principalmente por uma classe governante cujos integrantes, dentro dos limites normais do comportamento humano, diz mais ou menos o que realmente quer dizer e mais ou menos cumpre as promessas que faz, e que os políticos são avaliados por um eleitorado que busca respostas mais ou menos honestas para seus problemas.
Entre esses dois grupos grandes, mas não muito ágeis -como o bandido numa velha comédia de Buster Keaton interpondo-se entre Buster e sua garota-, está a imprensa, que tem suas próprias razões para enxergar tudo em termos controversos ou adversativos e para transformar cada declaração num lance que integra um "jogo" estratégico.
A imprensa, segundo Patterson, enxerga como campo de batalha algo que na realidade é um concurso de beleza, no qual um grupo de candidatos sinceros desfilam seus parcos méritos diante dos juízes, e o que é realmente assustador é o fato de que os candidatos são sinceros em praticamente tudo o que dizem. Patterson argumenta que a necessidade de analisar tudo em termos estratégicos significa que nenhuma ação pode ser aceita como possuidora de integridade própria.
Patterson tornou-se conhecido principalmente por condenar o cinismo da imprensa. Sua indignação é convincente, mas tende a permanecer descritiva e um pouco pessoal: em sua visão, os jornalistas escrevem de maneira cínica porque são cínicos. O problema real talvez seja que, no novo ambiente, se você não é chamativo, "instigante" e agressivo, você perde seu lugar na parada. No entanto, incentivar as pessoas a se engajar e escrever a partir de uma convicção intelectual real significa distanciar-se demais dos rituais de imparcialidade dos quais a mídia depende e dos quais ela tenta derivar sua autoridade.
Talvez seja por isso que o elemento mais característico a emergir na mídia americana recentemente não tenha sido o cinismo, e sim uma espécie de estranha atitude de maledicência sem alvo determinado. O que se vê por toda parte são repórteres e redatores que não têm lealdades políticas ou de classe evidentes, nem mesmo lealdade de geração, mas apenas a fidelidade à manutenção da aparência de que sabem das coisas.
Aos três personagens básicos de Liebling -o repórter, que conta o que viu, o repórter interpretativo, que conta o que acha ser o significado do que viu, e o perito, que conta o que acredita ser o significado de algo que não viu- soma-se o metacolunista, que conta o que acha que outras pessoas irão pensar ser o significado de algo que elas tampouco viram.
A crueldade casual de uma parte tão grande da mídia é, na realidade, uma espécie de esteticismo transferido, que tem sua lógica na afirmação segundo a qual, já que tudo nos EUA de hoje é essencialmente performance ou jogo de sombras, tudo pode ser julgado nos termos niveladores das resenhas culturais.
A sequência possui sua própria lógica deprimente. O soco de esquerda inquisitorial na primeira página (você é culpado), seguido por um "gancho" de direita antropológico na página de editoriais (o que você acredita ser uma defesa não passa de um mecanismo de defesa, típico de pessoas em sua situação), é reforçado por um chute psicanalítico no baixo ventre no suplemento de domingo. A cultura do acesso gerou a mundanalidade como virtude não pretendida; a cultura da agressão gera o "já saber de tudo" como vício derivado.
O mais audacioso dos novos livros sobre jornalismo, "News and the Culture of Lying" (Imprensa e a Cultura da Mentira), de Paul H. Weaver, está repleto de recomendações sobre o que deve ser feito. Algumas delas são mesquinhas e pouco práticas, outras são sensatas e pouco práticas, e parece pouco provável que qualquer uma delas seja seguida.
O argumento de Weaver é que os jornalistas mentem `sempre', mesmo quando não querem fazê-lo -que "a notícia é uma base de mendacidade" que procura criar uma realidade alternativa. A notícia é dirigida no sentido de determinado tipo de narrativa de crise -o "jornalismo pulitzeriano", no qual qualquer coisa que tenha acontecido é exposta na primeira página como uma emergência que pede solução imediata, em lugar de ser considerada com calma. A imprensa concentra suas atenções nessas narrativas e assim impossibilita a aceitação de qualquer outra versão da realidade senão aquela de uma nação que tropeça de uma crise para outra.
O problema é que todos os acontecimentos são, de uma maneira ou outra, o que Daniel Boorstin qualifica de "pseudo-acontecimentos" -ou seja, que pelo menos a linha divisória entre acontecimentos reais e pseudo-acontecimentos não é tão firme quanto Weaver quer que seja.


Apesar disso, entretanto, Weaver tem uma espécie de sinceridade e enxerga mais longe do que a maioria das pessoas que já escreveu sobre o tema.
Ele observa, por exemplo, que o fator mais importante da questão da privacidade não é que se deve deixar as pessoas em paz, mas que o significado dos atos privados não é passível de uma análise ampla, simbólica -é isso que os torna privados. E ele argumenta convincentemente que a imprensa, ao divorciar-se da "cidadania" -ou seja, a maneira como pessoas de verdade falam sobre acontecimentos de verdade-, ao mesmo tempo se esconde por trás do cumprimento de um conjunto elaborado de normas e rituais profissionais, trai a realidade quase rotineiramente.
O impulso dos últimos 20 anos tem sido o de racionalizar a agressividade da mídia, reivindicando para esta um papel quase governamental, no qual nenhum tema pode ser considerado fora do raio de ação da imprensa e nenhum jornalista carrega qualquer responsabilidade moral pelo que é impresso ou divulgado. O fato de muitos jornalistas acreditarem realmente que desempenham um papel constitucional -separado do papel dos outros três poderes do governo, mas tão importante quanto os deles- é demonstrado pela indignação que sentem toda vez que o presidente responde a perguntas dos cidadãos comuns, em vez de perguntas feitas pela imprensa.
A verdade, como aponta Weaver, é que a imprensa é composta de cidadãos comuns que, por acaso, trabalham para jornais ou emissoras de televisão.
A única obrigação que compele um repórter a perguntar a um candidato presidencial se ele já cometeu adultério ou a sacerdotes se eles já abusaram sexualmente de criancinhas é a obrigação de ganhar dinheiro para seu jornal -ou, mais precisamente, sua obrigação pessoal de conservar seu emprego, mostrando a seu jornal que está fazendo o melhor que pode para ajudá-lo a ganhar dinheiro.
Às vezes faz sentido falar em "ética profissional" como algo separado da ética simples, mas não faz sentido um jornalista falar nisso porque o jornalismo não é profissão. O jornalismo não tem critérios de admissão de seus praticantes, não tem órgão revisor. Embora se possa argumentar que as regras normais de compaixão, decência e equidade possam ser suspensas para os praticantes de determinadas profissões, em determinados momentos, esse argumento não se aplica aos jornalistas. A moralidade de ser um repórter é, na realidade, mais ou menos igual à moralidade de ser uma pessoa.
Quando Janet Malcolm escreveu que o jornalismo é moralmente indefensável, o que ela quis dizer, acho, é que a idéia de que o jornalismo pode ser praticado como profissão -como algo desvinculado dos compromissos, fidelidades e critérios de avaliação da vida normal- é odiosa.
O engraçado da imprensa livre é que ela na realidade não desempenha muito bem seu papel manifesto, mas desempenha muitos de seus papéis latentes à perfeição. O jornalismo vem se mostrando muito inepto quando se trata de narrar a história, já que só pode fazê-lo em pinceladas muito rápidas e generalizadas.
A imprensa também é um tribunal fraco e um departamento de Justiça pior ainda: seus critérios para a aceitação de evidências são baixos demais, sua amnésia, repentina demais. Mas ela pode funcionar como guardiã surpreendentemente boa da compaixão e do senso de proporção do público. Mais do que qualquer outra instituição -mais do que escolas, parlamentos ou acadêmicos-, a imprensa livre protege a decência pública.
Ela o faz, quer gostemos disso, quer não, traçando uma distinção entre o que se situa no meio do espectro social e o que ocupa suas margens (Todas as Notícias Que Merecem Ser Publicadas). Hoje em dia, essa tarefa muitas vezes é vista com horror, já que se supõe que a tentativa de criar um "meio" e um "outro" -dizer que existe um espectro de posições nacionais e uma margem de posições loucas- seja obra perniciosa da estrutura de poder. Mas nenhuma sociedade liberal pode funcionar sem o desejo de distinguir entre tipos de discursos públicos que são aceitáveis e tipos que -por sua falta de civilidade, sua incapacidade de ser modificados, sua cegueira, sua má-fé ou seu potencial de violência- não têm lugar no diálogo social. Todos os grupos humanos precisam tentar traçar essas distinções e podem fazê-lo com base em bons princípios ou em maus.
O que é simpático na imprensa como "resolvedora" das sociedades burguesas liberais é que ela não possui poder algum exceto o poder cumulativo do exemplo -o poder de fazer com que você queira soar mundano, você mesmo. I.F. Stone certa vez confidenciou a um jovem repórter que "o melhor amigo do jornalista é seu senso de estilo". Em sua opinião, esse senso de estilo é o alicerce da independência, porque só você é dono dele. O estilo no jornalismo depende em parte de mundanalidade ou da capacidade de avaliação -saber o que está para cima, quando todos os outros acham que está para baixo. Isso era verdade 50 anos atrás e continua sendo verdade hoje. Mas é difícil saber como fazer mais pessoas que trabalham na mídia compreender que, como escreveu Michael Kinsley, nosso trabalho não é adequar a realidade às aparências e sim adequar as aparências à realidade.
Seria divertido imaginar um Instituto de Jornalismo Mundano, criado naquele campus imaginário que também abriga a famosa Escola de "publishers" advogada por Liebling (sem a qual, ele escreveu, nenhuma escola de jornalismo faz sentido). O instituto teria que contar com um bar, um alarme de incêndio, um grupo de políticos corruptos simpáticos e as obras completas de Trollope e Damon Runyon, entre outras. Também poderia promover visitas regulares à escola de "publishers", que ficaria ao lado, para lembrar aos jovens repórteres o que realmente está acima. É claro que o próprio mundo em si não é um mau instituto, mas quando você finalmente aprende o que o mundo tem a lhe ensinar, geralmente já é tarde para fazer qualquer coisa a respeito.


O texto acima foi extraído de um texto maior, inédito no Brasil, publicado pelo autor na revista ``The New Yorker'' em 12/12/94.
Tradução de Clara Allain.

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