São Paulo, domingo, 9 de março de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VERDADES E MENTIRAS
O império do jornalismo


TV e sondagens levam lógica comercial a dominar a mídia
PIERRE BOURDIEU
especial para a Folha

O objeto, aqui, não é o ``poder dos jornalistas'' -e, menos ainda, o jornalismo como ``quarto poder''-, mas o império que os mecanismos de um campo jornalístico cada vez mais submetido às exigências do mercado (de leitores e de anunciantes) exercem, primeiro sobre os jornalistas (e os intelectuais-jornalistas) e depois, e em parte por intermédio deles, sobre os diferentes campos de produção cultural, campo jurídico, campo literário, campo artístico, campo científico. Trata-se, portanto, de examinar como a coerção estrutural que faz pesar este campo, ele mesmo dominado pelas coerções do mercado, modifica mais ou menos profundamente as relações de força no interior dos diferentes campos, afetando o que neles se faz e o que neles se produz, e exercendo efeitos muito semelhantes nestes universos fenomenalmente muito diferentes. Isto, sem cair num ou noutro destes dois erros opostos, a ilusão do nunca visto e a ilusão do sempre assim.
O império que o campo jornalístico e por meio dele a lógica do mercado exercem sobre os campos de produção cultural, mesmo os mais autônomos, nada tem de uma novidade radical: poderíamos sem esforço compor, com os textos emprestados a escritores do século passado, um painel inteiramente realista dos efeitos mais gerais que ele, império, produz no interior destes universos protegidos (1).
Deve-se, porém, evitar ignorar a especificidade da situação atual que, para além das coincidências resultantes do efeito das homologias, apresenta características relativamente sem precedentes: os efeitos que o desenvolvimento da televisão produz no campo jornalístico e, por meio dele, em todos os outros campos de produção cultural, são incomparavelmente mais importantes em sua intensidade e sua amplitude que aqueles que o surgimento da literatura industrial, com a imprensa de grande tiragem e o folhetim, tinham provocado, suscitando nos escritores reações de indignação ou de revolta, das quais provêm, segundo Raymond Williams, as definições modernas da ``cultura''.
O campo jornalístico faz pesar sobre os diferentes campos de produção cultural um conjunto de efeitos que estão ligados, em sua forma e sua eficácia, a sua estrutura própria, isto é, à distribuição de diferentes jornais e jornalistas segundo a sua autonomia em relação às forças externas, as do mercado de leitores e as do mercado de anunciantes. O grau de autonomia de um órgão de difusão mede-se, sem dúvida, pela parte de suas receitas que provêm da publicidade e da ajuda do Estado (sob forma de publicidade ou de subvenções) e também pelo grau de concentração dos anunciantes.
Quanto ao grau de autonomia de um jornalista particular, ele depende, primeiro, do grau de concentração da imprensa (que, reduzindo o número de empregadores potenciais, aumenta a insegurança do emprego); em seguida, da posição de seu jornal no espaço dos jornais, ou seja, mais ou menos próximo do pólo ``intelectual'' ou do pólo ``comercial''; depois, de sua posição dentro do jornal ou do órgão de imprensa (funcionário, horista etc.), que determina as diferentes garantias estatutárias (ligadas notadamente à notoriedade) de que ele dispõe e também o seu salário (fator de menor vulnerabilidade às formas dóceis de relações públicas e de menor dependência em face dos trabalhos alimentares ou mercenários, graças aos quais se exerce o império dos patrocinadores); e, enfim, de sua capacidade de produção autônoma da informação (alguns jornalistas, como os vulgarizadores científicos ou os jornalistas econômicos, sendo particularmente dependentes).

Sergio Lima/Folha Imagem
FHC durante a primeira coletiva que fez em 1996 e que contou com monitores de TV


É claro, de resto, que os diferentes poderes, e em especial as instâncias governamentais, agem não apenas pelas coerções econômicas que são capazes de exercer, mas também por todas as pressões que autorizam o monopólio da informação legítima -as fontes oficiais, notadamente; tal monopólio confere, primeiro, às autoridades governamentais e à administração -a polícia, por exemplo-, mas também às autoridades jurídicas, científicas etc., armas na luta que as opõe aos jornalistas e na qual elas tentam manipular as informações ou os agentes encarregados de transmiti-las, enquanto que a imprensa tenta, por seu lado, manipular os detentores da informação para buscar obtê-la e garantir-lhe exclusividade. Sem esquecer o poder simbólico excepcional que confere às grandes autoridades do Estado a capacidade de definir, por suas ações, decisões e intervenções no campo jornalístico (entrevistas, reuniões de imprensa etc.), a ordem do dia e a hierarquia dos acontecimentos que se impõem aos jornais.
Para compreender como o campo jornalístico contribui para reforçar, no seio de todos os campos, o ``comercial'' em detrimento do ``puro'' -os produtores mais sensíveis às seduções dos poderes econômicos e políticos, à custa dos produtores mais aplicados em defender os princípios e os valores da ``profissão''-, deve-se perceber, ao mesmo tempo, que ele se organiza segundo uma estrutura homóloga àquela dos outros campos e que o peso do ``comercial'' é, nele, muito maior.
O campo jornalístico constituiu-se como tal, no século 19, ao redor da oposição entre os jornais que ofereciam, sobretudo, ``notícias'', de preferência ``sensacionais'', ou melhor, ``de sensação'', e jornais que propunham análises e ``comentários'', aplicados em marcar sua distinção com referência aos primeiros, afirmando, altivamente, valores de ``objetividade'' (2); ele é o lugar de uma oposição entre duas lógicas e dois princípios de legitimação: o reconhecimento pelos pares, dispensado àqueles que reconhecem, da forma mais completa, os ``valores'' ou os princípios internos, e o reconhecimento pela maioria, materializado no número de entradas, de leitores, de ouvintes ou de espectadores, isto é, a cifra de venda (best sellers) e o lucro em dinheiro, sendo que, neste caso, a sanção do plebiscito é, inseparavelmente, um veredicto do mercado.
Como o campo literário ou o campo artístico, o campo jornalístico é, portanto, o lugar de uma lógica específica, propriamente cultural, que se impõe aos jornalistas por meio das coerções e dos controles cruzados que eles fazem pesar uns sobre os outros e de que o respeito (por vezes designado como deontologia) funda as reputações de honra profissional.
De fato, afora talvez as ``repetições'', cujo valor e significado dependem também da posição no campo daqueles que delas se valem e daqueles que dela se beneficiam, existem poucas sanções positivas relativamente indiscutíveis; quanto às sanções negativas, contra aquele que omite citar as fontes, por exemplo, elas são praticamente inexistentes -de modo que só se tende a citar uma fonte jornalística, sobretudo quando se trata de um órgão menor, para se reabilitar.
Mas, como o campo político e o campo econômico, e muito mais que o campo científico, artístico ou literário ou mesmo jurídico, o campo jornalístico está submetido, de forma permanente, à prova dos veredictos do mercado, por meio da sanção direta da clientela ou, indireta, do índice de audiência (mesmo se o auxílio do Estado pode assegurar uma certa independência com respeito a coerções imediatas do mercado). E os jornalistas estão, sem dúvida, tanto mais inclinados a adotar o ``critério do índice de audiência'' na produção (``fazer simples'', ``fazer breve'' etc.) ou na avaliação dos produtos e mesmo dos produtores (``sai-se bem na TV'', ``vende bem'' etc.), quando ocupam uma posição mais elevada (diretores de rede, redatores-chefes etc.) num órgão mais diretamente dependente do mercado (uma cadeia de televisão comercial, em oposição a uma cadeia cultural etc.).

Os jornalistas mais jovens, ao contrário, estão mais inclinados a opor os princípios e valores da ``profissão'' às exigências, mais realistas ou mais cínicas, de seus ``antigos'' (3).
Na lógica específica de um campo orientado pela produção deste bem altamente perecível que são as notícias, a concorrência pela clientela tende a assumir a forma de uma concorrência pela prioridade, ou seja, pelas notícias mais novas (o furo de reportagem) -e isso cada vez mais, evidentemente, à medida que se aproxima do pólo comercial. A coerção do mercado só se exerce pelo intermediário do efeito de campo: com efeito, inúmeros destes furos de reportagem, que são buscados e apreciados como trunfos na conquista da clientela, estão fadados a permanecerem ignorados pelos leitores ou espectadores e a só serem percebidos pelos concorrentes (os jornalistas sendo os únicos a lerem o conjunto dos jornais...).
Inscrita na estrutura e nos mecanismos do campo, a concorrência pela prioridade chama e favorece os agentes dotados de disposições profissionais, inclinadas a ordenar toda a prática jornalística sob o signo da rapidez (ou da precipitação) e da renovação permanente (4). Disposições reforçadas, sem interrupção, pela própria temporalidade da prática jornalística que, obrigando a viver e a pensar no horizonte do dia-a-dia e a valorizar uma informação em função de sua atualidade (eis o ``viciado em novidades'' dos jornais televisados), favorece uma espécie de amnésia permanente que é o reverso negativo da exaltação da novidade e também uma propensão a julgar os produtores e os produtos segundo a oposição do ``novo'' e do ``ultrapassado'' (5).
Outro efeito do campo, totalmente paradoxal, e pouco favorável à afirmação da autonomia coletiva ou individual: a concorrência incita a exercer uma vigilância permanente (que pode ir até a espionagem mútua) sobre as atividades dos concorrentes, a fim de lucrar com os fracassos alheios, evitando seus erros, e de opor-se ao sucesso alheio, tentando tomar-lhes emprestado os supostos meios de seu êxito: temas de números especiais que se sente obrigado a retomar, livros resenhados por outros e dos quais ``não se pode deixar de falar'', convidados que se precisa ter, assuntos que se deve ``cobrir'' porque outros os descobriram e mesmo jornalistas pelos quais se disputa, tanto para impedir que os concorrentes os tenham quanto pelo desejo real de os possuir.
É assim que, neste como em outros domínios, a concorrência, longe de ser automaticamente geradora de originalidade e de diversidade, tende muitas vezes a favorecer a uniformidade da oferta, da qual se pode facilmente se convencer ao comparar os conteúdos dos grandes semanários ou das cadeias de rádio ou TV de vasta audiência. Mas este mecanismo, bastante potente, tem também por efeito impor insidiosamente ao conjunto do campo as ``escolhas'' dos instrumentos de difusão mais direta e completamente submetidos aos veredictos do mercado, a exemplo da TV, o que contribui para orientar toda a produção no sentido da conservação dos valores estabelecidos, como o atesta por exemplo o fato de que os ``hit-parades'' periódicos, por meio dos quais os intelectuais-jornalistas se esforçam para impor sua visão do campo (e, por meio do ``toma-lá-dá-cá'', o reconhecimento de seus pares...), justapõem, quase sempre, autores de produtos culturais altamente perecíveis e destinados a figurar durante algumas semanas, com o suporte deles, na lista dos best sellers, e autores consagrados que são, ao mesmo tempo, ``valores seguros'', próprios a consagrar o bom gosto daqueles que os consagram e também, na condição de clássicos, os best sellers no longo prazo. Significa dizer que, mesmo se a eficiência deles se perfaz quase sempre por intermédio das ações de pessoas singulares, os mecanismos de que o campo jornalístico é palco e os efeitos que eles exercem sobre os outros campos são determinados em sua intensidade e orientação pela estrutura que o caracteriza.
Os efeitos da intrusão
O império do campo jornalístico tende a reforçar em todo campo os agentes e as instituições situadas na proximidade do pólo mais submetido ao efeito do número e do mercado; tal efeito tanto mais se exerce quanto mais os campos que o suportam estão eles próprios estritamente submetidos, estruturalmente, a esta lógica, e quanto mais o campo jornalístico que o exerce está ele também submetido, conjunturalmente, às coerções externas que, estruturalmente, o afetam mais que os outros campos de produção cultural.
Ora, observa-se hoje, por exemplo, que as sanções internas tendem a perder sua força simbólica e que os jornalistas e os jornais ``sérios'' perdem sua aura e são, eles próprios, obrigados a fazer concessões à lógica do mercado e do marketing, introduzida pela televisão comercial, e a este novo princípio de legitimidade, que é a consagração pelo número e pela ``visibilidade da mídia'', capazes de conferir a certos produtos (culturais ou mesmo políticos) ou a certos ``produtores'' o substituto aparentemente democrático das sanções específicas impostas pelos campos especializados. Certas ``análises'' da TV deveram o seu sucesso junto aos jornalistas, sobretudo os mais sensíveis, ao efeito do índice de audiência, ao fato de conferirem uma legitimidade democrática à lógica comercial, contentando-se com formular em termos de política, e portanto de plebiscito, um problema de produção e de difusão culturais (6).
Assim, o fortalecimento do império de um campo jornalístico, ele próprio cada vez mais submetido ao domínio direto ou indireto da lógica comercial, tende a ameaçar a autonomia dos diferentes campos de produção cultural, reforçando, no seio de cada um deles, os agentes ou as empresas mais inclinadas a ceder à sedução dos lucros ``externos'', por serem menos ricas em capital específico (científico, literário etc.) e menos seguras dos lucros específicos que o campo garante de imediato ou a termo mais ou menos dilatado.
O império do campo jornalístico sobre os campos de produção cultural (em matéria de filosofia e de ciências sociais, notadamente) se exerce, principalmente, por meio da intervenção de produtores culturais situados num ponto incerto entre o campo jornalístico e os campos especializados (literário ou filosófico etc.).
Estes ``intelectuais-jornalistas'' (7), que se servem de seu vínculo duplo para escapar às exigências específicas dos dois universos e para importar de cada um deles poderes mais ou menos bem adquiridos no outro, são capazes de exercer dois efeitos principais: de um lado, introduzir novas formas de produção cultural, situadas num intervalo mal definido entre o esoterismo universitário e o exoterismo jornalístico; de outro lado, impor, notadamente por meio de seus julgamentos críticos, princípios de avaliação das produções culturais que, ao dar a ratificação de uma aparência de autoridade intelectual às sanções do mercado e ao reforçar a inclinação espontânea de certas categorias de consumidores à ``allodoxia'', tendem a fortalecer o efeito do índice de audiência ou da ``best seller list'' sobre a recepção dos produtos culturais e também, indiretamente e a prazo, sobre a produção, orientando as escolhas (as dos editores, por exemplo) por produtos menos exigentes e mais vendáveis.
E eles podem contar com o apoio dos que, identificando a ``objetividade'' a um tipo de polidez de boa companhia e de neutralidade eclética em relação a todas as partes envolvidas, tomam produtos de cultura média por obras de vanguarda ou, então, denigrem as pesquisas de vanguarda (e não somente em matéria de arte) em nome dos valores do bom senso (8); mas estes últimos podem por sua vez contar com a aprovação ou mesmo a cumplicidade de todos os consumidores que, como eles, estão inclinados à ``allodoxia'' por sua distância do ``foco de valores culturais'' e por sua propensão interessada em dissimular os limites de sua capacidade de apropriação -segundo a lógica da ``self deception'', que evoca bem a fórmula muitas vezes empregada pelos leitores de revistas de vulgarização: ``É uma revista científica de nível bem elevado e acessível a todos''.
Assim, podem vir a se achar ameaçadas as conquistas que foram tornadas possíveis pela autonomia do campo e por sua capacidade de resistir às exigências mundanas -as que simbolizam hoje o índice de audiência e que os escritores do século passado visavam expressamente quando se insurgiam contra a idéia de que a arte (poderíamos dizer a mesma coisa da ciência) pode estar submetida ao veredicto do sufrágio universal. Diante dessa ameaça, são possíveis duas estratégias, mais ou menos frequentes segundo os campos e o grau de autonomia delas: marcar firmemente os limites do campo e tentar restaurar as fronteiras ameaçadas pela intrusão do modo de pensar e agir jornalísticos; ou sair da torre de marfim (segundo o modelo inaugurado por Zola) para impor os valores resultantes do refúgio na torre de marfim e servir-se de todos os meios disponíveis, nos campos especializados ou fora dele, e no seio do próprio campo jornalístico, para tentar impor ao exterior as aquisições e as conquistas tornadas possíveis pela autonomia.
Há condições econômicas e sociais de acesso a um julgamento científico esclarecido, e não se poderia pedir ao sufrágio universal (ou à sondagem) para destrinchar problemas de ciência (embora isso se faça por vezes, indiretamente, e sem o saber) sem aniquilar, de um só golpe, as próprias condições da produção científica, isto é, a barreira à entrada que protege a cidadela científica (ou artística) contra a irrupção destruidora de princípios de produção e de avaliação externos e, portanto, impróprios e deslocados. Mas não se deve concluir disso que a barreira não possa ser transposta no sentido oposto e que seja intrinsecamente impossível trabalhar em prol de uma redistribuição democrática das conquistas tornadas possíveis pela autonomia.
Isto, contanto que se perceba claramente que toda ação voltada a divulgar as conquistas mais raras da pesquisa científica ou artística mais avançada supõe o questionamento do monopólio dos instrumentos de difusão desta informação (científica ou artística) que o campo jornalístico detém de fato e também a crítica da representação das expectativas da maioria que constrói a demagogia comercial daqueles que têm meios de se interpor entre os produtores culturais (dentre os quais se pode incluir, neste caso, os homens políticos) e a grande massa dos consumidores.
A distância entre os produtores profissionais (ou seus produtos) e os simples consumidores (leitores, ouvintes, espectadores e também eleitores), que encontra seu fundamento na autonomia dos campos de produção especializados, é maior ou menor, mais ou menos difícil de superar e mais ou menos inaceitável do ponto de vista dos princípios democráticos, segundo os campos. E, ao contrário das aparências, ela se observa também na ordem da política, da qual contradiz os princípios declarados. Embora os agentes engajados no campo jornalístico e no campo político estejam numa relação de concorrência e de luta permanentes e o campo jornalístico esteja, de certo modo, englobado no campo político, no seio do qual ele exerce efeitos bastante potentes, estes dois campos têm em comum estarem, muito direta e estreitamente, situados sob o império da sanção do mercado e do plebiscito.
Segue-se que o império do campo jornalístico reforça as tendências dos agentes engajados no campo político a se submeterem à pressão das expectativas e das exigências da maioria, por vezes apaixonadas e irrefletidas, e frequentemente erigidas em reivindicações mobilizadoras pela expressão que recebem na imprensa.
Salvo quando ela usa de liberdades e poderes críticos que lhe asseguram a autonomia, a imprensa, sobretudo televisada (e comercial), age no mesmo sentido que a sondagem com que ela própria deve contar: embora possa servir também de instrumento de demagogia racional, tendente a reforçar o fechamento sobre si do campo político, a sondagem instaura com os eleitores uma relação direta, sem mediação, que põe de lado todos os agentes individuais ou coletivos (tais como os partidos ou os sindicatos), socialmente delegados, para elaborar e propor opiniões constituídas; ela despoja todos os mandatários e todos os porta-vozes de sua pretensão (partilhada pelos grandes editorialistas do passado) ao monopólio da expressão legítima da ``opinião pública'' e, ao mesmo tempo, de sua capacidade de trabalhar por uma elaboração crítica (e talvez coletiva, como nas assembléias legislativas) das opiniões reais ou supostas de seus mandantes.
Tudo isso faz com que o império de crescimento ininterrupto de um campo jornalístico, ele próprio submetido a um império crescente da lógica comercial sobre um campo político sempre perseguido pela tentação da demagogia (especialmente num momento em que a sondagem lhe oferece o meio de exercê-la de maneira racionalizada), contribua a enfraquecer a autonomia do campo político e, ao mesmo tempo, a capacidade conferida aos representantes (políticos ou outros) de invocar sua competência de peritos ou sua autoridade de guardiães dos valores coletivos.
Como não evocar, para concluir, o caso dos juristas que, ao preço de uma ``devota hipocrisia'', são capazes de perpetuar a crença de que seus veredictos encontram seus princípios não nas coerções externas, notadamente econômicas, mas nas normas transcendentes de que são os guardiães? O campo jurídico não é o que acredita ser, isto é, um universo depurado de todo compromisso com as necessidades da política ou da economia. Mas o fato de que ele logre fazer-se reconhecer como tal contribui para produzir efeitos sociais absolutamente reais, sobretudo sobre os que têm por profissão dizer o direito. Mas o que será dos juristas, encarnações mais ou menos sinceras da hipocrisia coletiva, caso se torne de notoriedade pública que, longe de obedecer a verdades e valores transcendentes e universais, eles são atravessados, como todos os outros agentes sociais, por coerções como aquelas que fazem pesar sobre eles, transtornando os procedimentos ou as hierarquias, a pressão das necessidades econômicas ou a sedução dos sucessos jornalísticos?
Pequeno posfácio normativo
Desvelar as coerções ocultas que pesam sobre os jornalistas e que eles fazem pesar, por sua vez, sobre todos os produtores culturais não é -precisa dizer?- denunciar os responsáveis, apontar o dedo aos culpados (9). É tentar oferecer a uns e outros uma possibilidade de se libertar, pela tomada de consciência, do império destes mecanismos e propor, talvez, o programa de uma ação conjunta entre os artistas, os escritores, os letrados e os jornalistas, detentores do (quase) monopólio dos instrumentos de difusão. Somente uma tal colaboração permitiria trabalhar com eficácia pela divulgação das conquistas mais universais da pesquisa e também, por outro lado, pela universalização prática das condições de acesso ao universal.


Notas: 1. Poderemos nos convencer disso, por exemplo, ao ler a obra de Jean-Marie Goulemot e Daniel Oster, ``Gens de Lettres, Ecrivains et Bohèmes'' (``Gente de Letras, Escritores e Boêmios'', Minerve, Paris, 1992), em que encontraremos inúmeros exemplos das observações e notações constitutivas da sociologia espontânea do meio literário que os escritores produzem, sem, para tanto, lhes guardar o princípio, notadamente em seus esforços para objetivar os seus adversários ou o conjunto do que lhes desagrada no mundo literário (ver ``Gens de Lettres, Ecrivains et Bohèmes''). Mas a intuição das homologias pode também ler, nas entrelinhas de uma análise do funcionamento do campo literário no século passado, a descrição dos funcionamentos ocultos do campo literário de hoje (como o fez Philippe Murray, ``Des Règles de l'Art aux Coulisses de Sa Misère'' (``Das Regras da Arte aos Bastidores da Miséria''), ``Art Press'', nş 186, junho de 1993, págs. 55-67.
2. Sobre a emergência da idéia de ``objetividade'' no jornalismo americano, como produto do esforço de jornais ciosos de sua respeitabilidade ao distinguir a informação do simples relato da imprensa popular, ver M. Schudson, ``Discovering the News'' (``Descobrindo as Notícias'', Basic Books, Nova York, 1978). Sobre a contribuição que, no caso da França, a oposição entre os jornalistas voltados ao campo literário e ciosos do estilo e os jornalistas próximos ao campo político pôde trazer a este processo de diferenciação e à invenção de uma ``profissão'' própria (com, notadamente, o repórter), pode-se ler T. Ferenczi, ``L'Invention du Journalisme en France: Naissance de la Presse Moderne à la Fin du 19ème. Siècle'' (``A Invenção do Jornalismo na França: Nascimento da Imprensa Moderna no Fim do Século 19'', Plon, 1993). Sobre a forma que toma esta oposição entre o campo dos jornais e semanários franceses e sobre a sua relação com as diferentes categorias de escritores, ver P. Bourdieu, ``La Distinction - Critique Sociale du Jugement de Goût'' (``A Distinção - Crítica Social do Julgamento de Gosto'', Éd. de Minuit, Paris, 1979, págs. 517-526.
3. Como no campo literário, a hierarquia segundo o critério externo -o sucesso de vendas- é mais ou menos o inverso da hierarquia segundo o critério interno -a ``gravidade'' jornalística. E a complexidade desta distribuição segundo uma estrutura quiasmática (que é também a dos campos literário, artístico ou jurídico) é redobrada pelo fato de que se reencontra, no seio de cada órgão de imprensa, escrita, radiofônica ou televisada, funcionando ele mesmo como um subcampo, a oposição entre um pólo ``cultural'' e um pólo ``comercial'' que organiza o conjunto do campo, de modo que se tem uma série de estruturas encaixotadas (do tipo a:b::b1:b2).
4. É por meios das coerções temporais, impostas muitas vezes de maneira puramente arbitrária, que se exerce a censura estrutural, praticamente despercebida, que pesa sobre as conversas dos convidados na televisão.
5. Se a afirmação ``está ultrapassado'' pode hoje substituir com tanta frequência, e para muito além do campo jornalístico, toda argumentação crítica, é que também os pretendentes apressados têm um interesse evidente em pôr em movimento este princípio de avaliação que confere uma vantagem indiscutível ao que vem por último, isto é, ao mais jovem, e que, sendo redutível a algo como a oposição quase vazia entre o anterior e o posterior, os dispensa das provas.
6. Basta para tanto enunciar os problemas do jornalista numa linguagem que poderia ser aquela do jornalismo: ``Culture et Télévision: Entre la Cohabitation et l'Apartheid'' (D. Wolton, ``Eloge du Grand Public''/``Elogio do Grande Público'', Flammarion, Paris, 1990, pág. 163). Que seja permitido dizer de passagem, para tentar justificar o que a análise científica pode ter de áspero, de laborioso mesmo, a que ponto a ruptura com as pré-construções e os pressupostos da linguagem comum, e particularmente jornalística, impõe-se como condição da construção adequada do objeto.
7. Caberia pôr de lado, no interior dessa categoria de fronteiras lábeis, os produtores culturais que, segundo uma tradição instaurada desde o surgimento de uma produção ``industrial'' em matéria de cultura, demandam das profissões do jornalismo meios de existência e não poderes (de controle ou de consagração, notadamente) suscetíveis de se exercer sobre os campos especializados (efeito Jdánov).
8. Inúmeras contestações recentes da arte moderna não se distinguem, senão talvez pela pretensão de seus motivos, dos veredictos que obteríamos se submetêssemos a arte de vanguarda ao plebiscito ou, o que redunda no mesmo, à sondagem de opinião.
9. Para evitar produzir o efeito de ``alfinetada'' ou de caricatura que se arrisca suscitar no instante em que se publica, tais e quais, as conversas gravadas ou os textos impressos, tivemos muitas vezes de renunciar à reprodução de documentos que teriam dado toda sua força a nossas demonstrações e que, além disso, teriam recordado ao leitor, pelo efeito de explicação que desbanaliza ao arrancar do contexto familiar, todos os exemplos equivalentes que a rotina do olhar cotidiano deixa escapar.

Pierre Bourdieu é sociólogo, professor do Collège de France; publicou no Brasil, entre outros, ``Economia das Trocas Simbólicas'' e ``As Regras da Arte''.
Copyright Liber - Raisons d'agir, 1996
Tradução de José Marcos Macedo.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã