|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A célula trotskista de Sorocaba
EM TRECHOS DE UM LIVRO DE MEMÓRIAS EM PREPARAÇÃO, O HISTORIADOR BORIS FAUSTO RELATA SUA CONVERSÃO IDEOLÓGICA, DA ESQUERDA RADICAL,
NOS ANOS 50, À ADESÃO AOS PRINCÍPIOS
DO REGIME DEMOCRÁTICO
Serguei Ilnitsky - 1º.abr.09/Efe
|
|
Homem observa a obra "Lênin Coca-Cola", do artista russo Alexander Kosolapov, em Moscou
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
1. Como fazer chegar a
dirigentes e militantes de esquerda nossa palavra, a palavra
dos trotskistas? O
jornal seria a via privilegiada.
Daí a importância de publicar a
"Frente Operária", que começou a sair em 1952 e cuja vida
foi marcada por frequentes espasmos de irregularidade.
Para fugir ao desconforto,
evitávamos olhar para a pilha
de jornais que ia se amontoando junto às paredes da sala do
[edifício] Martinelli até que alguém tivesse a herética coragem de transformar aquela pilha em papel para embrulhar
peixe, como fazem os feirantes.
Bem que nos esforçávamos
na tarefa, mas esbarrávamos na
falta de recursos, no temor de
tipografias e distribuidores, hesitantes em lidar com um jornal inflamado e nada lucrativo.
Um desses distribuidores, o
baixinho e obviamente gordo
Batata, nada nos dava pelas
vendas, certo de que, ao colocar
o jornal nas bancas, já fazia o
suficiente.
Foi só quando já estava muito distante do trotskismo, aí
por 1985, que tive a confirmação de que os problemas da
"Frente Operária" não eram
marca registrada nossa. Isso
ocorreu ao ler a narrativa de
Mario Vargas Llosa, em "História de Mayta", sobre as desventuras do personagem Mayta e
do Partido Operário Revolucionário peruano.
A pouca relevância da "Frente Operária" não se devia apenas às vicissitudes materiais.
Seu conteúdo, afora um ou outro artigo bem feito sobre um
tema internacional ou uma coluna com um título que era um
achado -"Direto de esquerda"
-, ficava a quilômetros do que
seria razoável, mesmo para um
jornal destinado a uma autointitulada vanguarda.
De qualquer forma, a preocupação com a política internacional teve um efeito muito positivo em mim e em outros militantes daqueles já longínquos
anos da década de 1950, favorecendo a abertura dos nossos
olhos para o mundo e a recusa
de um nacionalismo estreito.
Mas uma coisa era a ampliação do entendimento, outra a
dosagem adequada para levar a
público acontecimentos internacionais, hierarquizados segundo a visão partidária. Lembro minha reação negativa,
saudável na época, a uma das
manchetes de primeira página
do jornal: "Os mineiros bolivianos derrotam o reacionário Siles". Quem estaria interessado
nos mineiros bolivianos?
Quem sabia quem era Siles
Suazo, o presidente boliviano?
Penso, com os olhos de hoje,
que o grupo trotskista tinha recursos intelectuais para publicar uma revista crítica, com um
leque diversificado de colaboradores, capaz de ter alguma
audiência no debate da esquerda. Mas, na época, essa seria
uma ideia "pequeno-burguesa", destinada literal e simbolicamente ao lixo da história.
Estudantes e operários
No correr dos anos, o grupo
ganhou novos aderentes, em
locais diversos: trabalhadores
da Companhia Municipal de
Transportes Coletivos (a extinta CMTC); operários de fábricas como a Metalúrgica Jafet e
a Sofunge; estudantes da USP,
especialmente alunos da faculdade de medicina; e um grupo
em Sorocaba, formado por trabalhadores, ou pessoas da baixa
classe média.
Fui assistente dessa célula de
Sorocaba, como se dizia no jargão da esquerda, viajando num
Ford importado, que meu pai
comprara depois de muita relutância, pois ele não era dado a
essas larguezas.
Embora o carro já tivesse alguns anos, seria uma afronta
percorrer com ele ruas estreitas, cheias de poeira ou de lama,
conforme os caprichos do tempo, uma água fétida do esgoto a
céu aberto escorrendo pelo
meio-fio.
Deixava o carro numa praça
do centro da cidade e fazia uma
longa caminhada até chegar à
modesta casa do camarada
Sampaio, um homem de seus
50 anos, miúdo, careca, sempre
às voltas com uma tosse que interrompia sua fala. Informes,
pretensos avanços, recuos, distribuição de tarefas pontilhavam as conversas, numa sala
sem forro, ora muito quente,
ora muito fria.
Lembro-me nitidamente de
um episódio desvinculado das
discussões ideológicas. No curso de uma das reuniões, o camarada Sampaio pediu licença
para sair por um momento da
sala. Voltou, trazendo nas mãos
uma preciosidade que acarinhava como um filho recém-nascido. Era uma máquina de
escrever portátil, esmaltada de
verde, novinha em folha, insólita naquele ambiente de chão de
cimento e paredes de pintura
descascada.
"De quem é essa máquina,
Sampaio?", indagaram vários
camaradas, certos de que ele
não tinha recursos para comprá-la. Como não tivessem resposta, me passou pela cabeça,
como deve ter passado pela cabeça dos outros, que o camarada Sampaio subtraíra a máquina de alguma loja -um ato inusitado não pelo aspecto moral,
pois ela serviria ao partido, mas
pelo atrevimento, partindo de
quem partia.
Por fim, desfez-se o mistério.
Diante da insistência geral, o
camarada Sampaio sentenciou:
"A máquina? A máquina, camaradas, é da classe operária!".
2. Não desejo entrar
na análise, em
profundidade,
dos fatos e processos históricos
que marcaram minha geração.
É trabalho de maior fôlego, que
escapa aos limites da memória.
Prefiro lembrar, num simples esboço, como a autointitulada vanguarda dessa geração,
na qual me incluo, que viveu a
segunda metade do século 20 e
os primeiros anos deste século,
apreendeu a realidade social e
política, principalmente no
plano das ideologias e da sensibilidade.
Na área internacional, vivemos breves anos de "confraternização" das potências que
venceram o nazifascismo. Mas,
em menos de dois anos, por
volta de 1947, o mundo desembocou na Guerra Fria, levando
às opções maniqueístas, tão
atraentes para os jovens.
No interior da "vanguarda",
um traço ligava as diferentes
tendências, fossem elas comunistas, nacionalistas de corte
radical ou trotskistas: a crença
na inevitabilidade e nas benesses da revolução.
Essa crença nasceu de uma
leitura das contradições do regime capitalista, a caminho do
apocalipse -a crise final do capitalismo, se quiserem-, em
que a classe operária, a aliança
operária e camponesa, ou ainda essas duas classes mais a
burguesia nacional, conforme
as variações do espectro ideológico, seriam os agentes portadores da história.
A visão parecia confirmada
pelo processo histórico, lido
mais ou menos assim. A Revolução Francesa abrira em 1789
a era revolucionária -ninguém
lembrava a Revolução Inglesa
de meados do século 17- ao
conduzir a burguesia ao poder.
Vitória instável, pois o episódio fora acompanhado da erupção das massas, cuja presença na arena social e política jamais desapareceria, nas revoluções de 1848 em vários países da Europa ocidental, ou na Comuna de Paris, em 1871.
Na série de episódios revolucionários, cada acontecimento do passado continha referências e lições para o futuro, por seu simbolismo, suas virtualidades e fraquezas. A Comuna de Paris foi sempre lembrada como exemplo das possibilidades de revolta do proletariado urbano, mas sofreu críticas pelo "espontaneísmo" e pela incapacidade de os revoltosos construírem um partido de classe.
Revoluções de referência
Até 1917, a Revolução Francesa foi o grande modelo de referência revolucionária e gerou profundas identificações sociopolíticas e simbólicas. Os nomes das facções preponderantes naquela época -girondinos de um lado, jacobinos de outro- percorreram o tempo, aplicados a outras situações históricas. Se os moderados girondinos foram desprestigiados, o jacobinismo ganhou vulto por associar-se à ideia de revolução e por seu conteúdo nacional-popular autoritário.
"Jacobino negro" foi chamado Toussaint Louverture, líder da revolta de escravos que emancipou o Haiti da França, nos primeiros anos do século 19. Também foi chamada de jacobina a tendência mais radical dos combatentes pela unificação italiana [década de 1860].
No nosso modesto caso, ficou conhecido como jacobino o movimento nacionalista e xenófobo que agitou o Rio de Janeiro, em fins do século 19, tendo como alvo principal a colônia portuguesa.
A "Marselhesa" embalou as greves, os movimentos sociais, as revoluções, antes de ser substituída pelos acordes da "Internacional". No contexto revolucionário que, na Rússia, ganhou contornos nítidos após a revolução de 1905, referências e alusões à Revolução Francesa foram recorrentes.
Depois da revolução de 1917, na década de 1920, quando Trótski tratou de entender os rumos inesperados dos acontecimentos, com a emergência do stalinismo, referiu-se à "reação termidoriana", ou seja, ao período posterior à queda dos jacobinos.
No mundo da academia, no Brasil e fora dele, a Revolução Francesa tinha um lugar central e quase exclusivo ao se estudar a história do mundo contemporâneo. Nos primeiros anos da década de 1960, quando frequentei o curso de história da faculdade de filosofia, uma das poucas coisas atraentes era o vivo debate historiográfico em torno da revolução, personificado, principalmente, pelos integrantes da cadeira de história moderna e contemporânea: o professor catedrático Eduardo de Oliveira França e seus sagazes "tenentes", Fernando Novais e Carlos Guilherme Mota.
Não sei bem qual era a interpretação do professor França, mas acredito que simpatizasse com a figura de Danton e os girondinos, por ser um coerente liberal conservador. Os assistentes assumiam a versão jacobina da revolução e seu ícone: Robespierre, o incorruptível.
O então prestigioso Partido Comunista francês referendara essa linha, dando-lhe maior legitimidade. Um historiador comunista muito representativo foi Albert Soboul [1914-82], autor de vários livros sobre a Revolução Francesa, que veio várias vezes ao Brasil e aqui fez boas relações.
Era uma figura simpática de camponês vermelhão, pescoço grosso, na aparência um típico representante da pequena-burguesia rural. Lembro-me de que ele surpreendeu, a mim e a Cynira, minha mulher, quando, antes de um jantar que lhe oferecemos, ergueu a taça de vinho e saudou, solenemente: "À la prospérité de cette maison!" [à prosperidade desta casa].
O interesse pela Revolução Francesa tinha como contrapartida o desinteresse pela Revolução Americana (1776) por parte de professores e alunos, embora por razões distintas. Os professores de história da América nem sequer sabiam inglês e se dedicavam aos temas da época colonial no mundo ibérico.
Quanto aos alunos, questões sobre o modelo da República, da competência legislativa do governo central e dos Estados, da separação de Poderes, do papel exercido pela Suprema Corte, quando afloradas, eram vistas como filigranas da superestrutura de um país imperialista. Com isso, o processo de construção de instituições democráticas, tema hoje tão presente e tão importante, era simplesmente ignorado.
3. Diante de nossos
olhos, ocorreu
uma profunda
transformação
histórica: a era das
revoluções esgotou suas possibilidades e deu lugar à revalorização da democracia.
Democracia de origem liberal, mas cuja definição e cujo
alcance se ampliaram além das
eleições, da liberdade de expressão, para abranger também objetivos de proteção social, de segurança dos cidadãos,
de defesa do ambiente e do clima etc., a serem alcançados pela ação do Estado, sob várias
formas e sem exclusividade.
Como a "vanguarda" da minha geração reagiu a tudo isso?
Houve quem se tornasse cético
e lamentasse as ilusões perdidas, a transparência de uma
época em que éramos portadores da história, em que sabíamos onde estava o mal e onde
estava o bem.
Houve quem se aferrasse ao
stalinismo, com a fé inabalável
dos crentes; houve quem continuasse a acreditar na revolução, depurada dos erros evidenciados pela história, como
se estivéssemos apenas diante
de uma correção de rumos.
E
houve quem tratasse de rever
posições, assumindo integralmente a perspectiva de uma
democracia substantiva.
Eu me incluo nessa última
opção. De fato, a partir de meados da década de 1970, minha
convicção democrática tornou-se cada vez mais sólida. Posso
dizer então que, há cerca de 35
anos, firmei essa convicção, o
que não é pouco.
A perspectiva democrática é
algo que não se limita ao espaço público, por maior que seja a
sua importância, mas abrange
características pessoais mais
difíceis de alcançar.
Passar da intolerância a ter o
ouvido aberto para as opiniões
divergentes (não gosto da palavra "tolerância", pois ela traz
embutida uma atitude superior), combater a dialética amigo-inimigo, acreditar que nenhum avanço social, maior ou
menor, justifica a supressão
das liberdades não é algo que se
possa interiorizar da noite para
o dia, e sim um processo em
contínua elaboração.
Clima de época
Não sinto, nem de longe, decepção pelas ideias passadas,
nem as repudio como um absurdo. Elas refletiram o clima
de uma época, os sonhos de
pessoas empenhadas em mudar o mundo, por mais que fossem equivocadas.
Ressalvando a constatação
de que as sucessivas gerações
vivem a ideologia de seu tempo,
creio haver razões para cauteloso otimismo.
Não falo de um progresso necessário e inevitável, pois o destino do mundo continua incerto e sempre sujeito a avanços,
fracassos e misérias, mas principalmente de maior consciência dos problemas deste mundo. Do outro, aliás, não trato.
Pessoalmente, estou convencido de ter hoje convicções menos utópicas, menos ambiciosas, mais realistas.
A pretensão de conhecer as
leis da história, a crença na luta
política centrada na dialética
amigo-inimigo deram lugar ao
respeito -não sem esforço-
pelas opiniões divergentes e a
um certo ceticismo em relação
à maneira de ver os acontecimentos, sem relativizar a sólida
rocha dos princípios básicos.
Revejo a expressão "menos
utópicas" e me pergunto se não
é, afinal de contas, uma grande
utopia, talvez possível, esperar
que as sociedades alcancem níveis materiais de vida decentes,
sejam menos desiguais e que as
pessoas possam desenvolver
seus talentos sem sofrer as
pressões de uma vida penosa?
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras), entre
outros livros.
Texto Anterior: +Quem foi Dmitri Chostakóvitch Próximo Texto: Relatos ligam casos pessoais à história Índice
|