São Paulo, domingo, 09 de agosto de 2009

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A célula trotskista de Sorocaba

EM TRECHOS DE UM LIVRO DE MEMÓRIAS EM PREPARAÇÃO, O HISTORIADOR BORIS FAUSTO RELATA SUA CONVERSÃO IDEOLÓGICA, DA ESQUERDA RADICAL, NOS ANOS 50, À ADESÃO AOS PRINCÍPIOS DO REGIME DEMOCRÁTICO

Serguei Ilnitsky - 1º.abr.09/Efe
Homem observa a obra "Lênin Coca-Cola", do artista russo Alexander Kosolapov, em Moscou

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

1. Como fazer chegar a dirigentes e militantes de esquerda nossa palavra, a palavra dos trotskistas? O jornal seria a via privilegiada.
Daí a importância de publicar a "Frente Operária", que começou a sair em 1952 e cuja vida foi marcada por frequentes espasmos de irregularidade.
Para fugir ao desconforto, evitávamos olhar para a pilha de jornais que ia se amontoando junto às paredes da sala do [edifício] Martinelli até que alguém tivesse a herética coragem de transformar aquela pilha em papel para embrulhar peixe, como fazem os feirantes.
Bem que nos esforçávamos na tarefa, mas esbarrávamos na falta de recursos, no temor de tipografias e distribuidores, hesitantes em lidar com um jornal inflamado e nada lucrativo. Um desses distribuidores, o baixinho e obviamente gordo Batata, nada nos dava pelas vendas, certo de que, ao colocar o jornal nas bancas, já fazia o suficiente.
Foi só quando já estava muito distante do trotskismo, aí por 1985, que tive a confirmação de que os problemas da "Frente Operária" não eram marca registrada nossa. Isso ocorreu ao ler a narrativa de Mario Vargas Llosa, em "História de Mayta", sobre as desventuras do personagem Mayta e do Partido Operário Revolucionário peruano.
A pouca relevância da "Frente Operária" não se devia apenas às vicissitudes materiais. Seu conteúdo, afora um ou outro artigo bem feito sobre um tema internacional ou uma coluna com um título que era um achado -"Direto de esquerda" -, ficava a quilômetros do que seria razoável, mesmo para um jornal destinado a uma autointitulada vanguarda.
De qualquer forma, a preocupação com a política internacional teve um efeito muito positivo em mim e em outros militantes daqueles já longínquos anos da década de 1950, favorecendo a abertura dos nossos olhos para o mundo e a recusa de um nacionalismo estreito.
Mas uma coisa era a ampliação do entendimento, outra a dosagem adequada para levar a público acontecimentos internacionais, hierarquizados segundo a visão partidária. Lembro minha reação negativa, saudável na época, a uma das manchetes de primeira página do jornal: "Os mineiros bolivianos derrotam o reacionário Siles". Quem estaria interessado nos mineiros bolivianos? Quem sabia quem era Siles Suazo, o presidente boliviano?
Penso, com os olhos de hoje, que o grupo trotskista tinha recursos intelectuais para publicar uma revista crítica, com um leque diversificado de colaboradores, capaz de ter alguma audiência no debate da esquerda. Mas, na época, essa seria uma ideia "pequeno-burguesa", destinada literal e simbolicamente ao lixo da história.

Estudantes e operários
No correr dos anos, o grupo ganhou novos aderentes, em locais diversos: trabalhadores da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (a extinta CMTC); operários de fábricas como a Metalúrgica Jafet e a Sofunge; estudantes da USP, especialmente alunos da faculdade de medicina; e um grupo em Sorocaba, formado por trabalhadores, ou pessoas da baixa classe média.
Fui assistente dessa célula de Sorocaba, como se dizia no jargão da esquerda, viajando num Ford importado, que meu pai comprara depois de muita relutância, pois ele não era dado a essas larguezas.
Embora o carro já tivesse alguns anos, seria uma afronta percorrer com ele ruas estreitas, cheias de poeira ou de lama, conforme os caprichos do tempo, uma água fétida do esgoto a céu aberto escorrendo pelo meio-fio.
Deixava o carro numa praça do centro da cidade e fazia uma longa caminhada até chegar à modesta casa do camarada Sampaio, um homem de seus 50 anos, miúdo, careca, sempre às voltas com uma tosse que interrompia sua fala. Informes, pretensos avanços, recuos, distribuição de tarefas pontilhavam as conversas, numa sala sem forro, ora muito quente, ora muito fria.
Lembro-me nitidamente de um episódio desvinculado das discussões ideológicas. No curso de uma das reuniões, o camarada Sampaio pediu licença para sair por um momento da sala. Voltou, trazendo nas mãos uma preciosidade que acarinhava como um filho recém-nascido. Era uma máquina de escrever portátil, esmaltada de verde, novinha em folha, insólita naquele ambiente de chão de cimento e paredes de pintura descascada.
"De quem é essa máquina, Sampaio?", indagaram vários camaradas, certos de que ele não tinha recursos para comprá-la. Como não tivessem resposta, me passou pela cabeça, como deve ter passado pela cabeça dos outros, que o camarada Sampaio subtraíra a máquina de alguma loja -um ato inusitado não pelo aspecto moral, pois ela serviria ao partido, mas pelo atrevimento, partindo de quem partia.
Por fim, desfez-se o mistério. Diante da insistência geral, o camarada Sampaio sentenciou: "A máquina? A máquina, camaradas, é da classe operária!".

2. Não desejo entrar na análise, em profundidade, dos fatos e processos históricos que marcaram minha geração. É trabalho de maior fôlego, que escapa aos limites da memória.
Prefiro lembrar, num simples esboço, como a autointitulada vanguarda dessa geração, na qual me incluo, que viveu a segunda metade do século 20 e os primeiros anos deste século, apreendeu a realidade social e política, principalmente no plano das ideologias e da sensibilidade.
Na área internacional, vivemos breves anos de "confraternização" das potências que venceram o nazifascismo. Mas, em menos de dois anos, por volta de 1947, o mundo desembocou na Guerra Fria, levando às opções maniqueístas, tão atraentes para os jovens.
No interior da "vanguarda", um traço ligava as diferentes tendências, fossem elas comunistas, nacionalistas de corte radical ou trotskistas: a crença na inevitabilidade e nas benesses da revolução.
Essa crença nasceu de uma leitura das contradições do regime capitalista, a caminho do apocalipse -a crise final do capitalismo, se quiserem-, em que a classe operária, a aliança operária e camponesa, ou ainda essas duas classes mais a burguesia nacional, conforme as variações do espectro ideológico, seriam os agentes portadores da história.
A visão parecia confirmada pelo processo histórico, lido mais ou menos assim. A Revolução Francesa abrira em 1789 a era revolucionária -ninguém lembrava a Revolução Inglesa de meados do século 17- ao conduzir a burguesia ao poder.
Vitória instável, pois o episódio fora acompanhado da erupção das massas, cuja presença na arena social e política jamais desapareceria, nas revoluções de 1848 em vários países da Europa ocidental, ou na Comuna de Paris, em 1871.
Na série de episódios revolucionários, cada acontecimento do passado continha referências e lições para o futuro, por seu simbolismo, suas virtualidades e fraquezas. A Comuna de Paris foi sempre lembrada como exemplo das possibilidades de revolta do proletariado urbano, mas sofreu críticas pelo "espontaneísmo" e pela incapacidade de os revoltosos construírem um partido de classe.

Revoluções de referência
Até 1917, a Revolução Francesa foi o grande modelo de referência revolucionária e gerou profundas identificações sociopolíticas e simbólicas. Os nomes das facções preponderantes naquela época -girondinos de um lado, jacobinos de outro- percorreram o tempo, aplicados a outras situações históricas. Se os moderados girondinos foram desprestigiados, o jacobinismo ganhou vulto por associar-se à ideia de revolução e por seu conteúdo nacional-popular autoritário.
"Jacobino negro" foi chamado Toussaint Louverture, líder da revolta de escravos que emancipou o Haiti da França, nos primeiros anos do século 19. Também foi chamada de jacobina a tendência mais radical dos combatentes pela unificação italiana [década de 1860].
No nosso modesto caso, ficou conhecido como jacobino o movimento nacionalista e xenófobo que agitou o Rio de Janeiro, em fins do século 19, tendo como alvo principal a colônia portuguesa.
A "Marselhesa" embalou as greves, os movimentos sociais, as revoluções, antes de ser substituída pelos acordes da "Internacional". No contexto revolucionário que, na Rússia, ganhou contornos nítidos após a revolução de 1905, referências e alusões à Revolução Francesa foram recorrentes.
Depois da revolução de 1917, na década de 1920, quando Trótski tratou de entender os rumos inesperados dos acontecimentos, com a emergência do stalinismo, referiu-se à "reação termidoriana", ou seja, ao período posterior à queda dos jacobinos.
No mundo da academia, no Brasil e fora dele, a Revolução Francesa tinha um lugar central e quase exclusivo ao se estudar a história do mundo contemporâneo. Nos primeiros anos da década de 1960, quando frequentei o curso de história da faculdade de filosofia, uma das poucas coisas atraentes era o vivo debate historiográfico em torno da revolução, personificado, principalmente, pelos integrantes da cadeira de história moderna e contemporânea: o professor catedrático Eduardo de Oliveira França e seus sagazes "tenentes", Fernando Novais e Carlos Guilherme Mota.
Não sei bem qual era a interpretação do professor França, mas acredito que simpatizasse com a figura de Danton e os girondinos, por ser um coerente liberal conservador. Os assistentes assumiam a versão jacobina da revolução e seu ícone: Robespierre, o incorruptível.
O então prestigioso Partido Comunista francês referendara essa linha, dando-lhe maior legitimidade. Um historiador comunista muito representativo foi Albert Soboul [1914-82], autor de vários livros sobre a Revolução Francesa, que veio várias vezes ao Brasil e aqui fez boas relações.
Era uma figura simpática de camponês vermelhão, pescoço grosso, na aparência um típico representante da pequena-burguesia rural. Lembro-me de que ele surpreendeu, a mim e a Cynira, minha mulher, quando, antes de um jantar que lhe oferecemos, ergueu a taça de vinho e saudou, solenemente: "À la prospérité de cette maison!" [à prosperidade desta casa].
O interesse pela Revolução Francesa tinha como contrapartida o desinteresse pela Revolução Americana (1776) por parte de professores e alunos, embora por razões distintas. Os professores de história da América nem sequer sabiam inglês e se dedicavam aos temas da época colonial no mundo ibérico.
Quanto aos alunos, questões sobre o modelo da República, da competência legislativa do governo central e dos Estados, da separação de Poderes, do papel exercido pela Suprema Corte, quando afloradas, eram vistas como filigranas da superestrutura de um país imperialista. Com isso, o processo de construção de instituições democráticas, tema hoje tão presente e tão importante, era simplesmente ignorado.

3. Diante de nossos olhos, ocorreu uma profunda transformação histórica: a era das revoluções esgotou suas possibilidades e deu lugar à revalorização da democracia. Democracia de origem liberal, mas cuja definição e cujo alcance se ampliaram além das eleições, da liberdade de expressão, para abranger também objetivos de proteção social, de segurança dos cidadãos, de defesa do ambiente e do clima etc., a serem alcançados pela ação do Estado, sob várias formas e sem exclusividade.
Como a "vanguarda" da minha geração reagiu a tudo isso? Houve quem se tornasse cético e lamentasse as ilusões perdidas, a transparência de uma época em que éramos portadores da história, em que sabíamos onde estava o mal e onde estava o bem. Houve quem se aferrasse ao stalinismo, com a fé inabalável dos crentes; houve quem continuasse a acreditar na revolução, depurada dos erros evidenciados pela história, como se estivéssemos apenas diante de uma correção de rumos.
E houve quem tratasse de rever posições, assumindo integralmente a perspectiva de uma democracia substantiva. Eu me incluo nessa última opção. De fato, a partir de meados da década de 1970, minha convicção democrática tornou-se cada vez mais sólida. Posso dizer então que, há cerca de 35 anos, firmei essa convicção, o que não é pouco.
A perspectiva democrática é algo que não se limita ao espaço público, por maior que seja a sua importância, mas abrange características pessoais mais difíceis de alcançar.
Passar da intolerância a ter o ouvido aberto para as opiniões divergentes (não gosto da palavra "tolerância", pois ela traz embutida uma atitude superior), combater a dialética amigo-inimigo, acreditar que nenhum avanço social, maior ou menor, justifica a supressão das liberdades não é algo que se possa interiorizar da noite para o dia, e sim um processo em contínua elaboração.

Clima de época
Não sinto, nem de longe, decepção pelas ideias passadas, nem as repudio como um absurdo. Elas refletiram o clima de uma época, os sonhos de pessoas empenhadas em mudar o mundo, por mais que fossem equivocadas. Ressalvando a constatação de que as sucessivas gerações vivem a ideologia de seu tempo, creio haver razões para cauteloso otimismo.
Não falo de um progresso necessário e inevitável, pois o destino do mundo continua incerto e sempre sujeito a avanços, fracassos e misérias, mas principalmente de maior consciência dos problemas deste mundo. Do outro, aliás, não trato. Pessoalmente, estou convencido de ter hoje convicções menos utópicas, menos ambiciosas, mais realistas. A pretensão de conhecer as leis da história, a crença na luta política centrada na dialética amigo-inimigo deram lugar ao respeito -não sem esforço- pelas opiniões divergentes e a um certo ceticismo em relação à maneira de ver os acontecimentos, sem relativizar a sólida rocha dos princípios básicos.
Revejo a expressão "menos utópicas" e me pergunto se não é, afinal de contas, uma grande utopia, talvez possível, esperar que as sociedades alcancem níveis materiais de vida decentes, sejam menos desiguais e que as pessoas possam desenvolver seus talentos sem sofrer as pressões de uma vida penosa?

BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras), entre outros livros.



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