São Paulo, domingo, 9 de agosto de 1998

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AUTORES
A nova era da ciência



Lobbies econômicos ameaçam pôr em xeque evidências científicas
BRUNO LATOUR
especial para a Folha

A edição do "The New York Times" de 26 de abril anunciava em sua primeira página que uma coalizão de cientistas quer combater, ao custo de milhões de dólares, os resultados falsos apresentados pela chamada "ciência oficial" com relação à influência do desenvolvimento industrial sobre o aquecimento global. Um abaixo-assinado circula, relatórios ainda não publicados são transmitidos na World Wide Web, o dinheiro corre a rodo (especialmente o dinheiro das companhias petrolíferas...).
Os cientistas, políticos, lobistas e industriais mobilizados pelo problema querem mostrar que a "ciência oficial", sancionada primeiramente no Rio e depois em Kyoto, em 1997, na verdade não passa de um artefato que não corresponde à verdade: segundo eles, não existe alteração climática, ou, em todo caso, se existir, ela é incerta demais para ser medida e, mesmo que tenha ocorrido, ela é, em última análise, benéfica.
O interessante dessa nova campanha contra o enorme trabalho da ecologia é que ela nos obriga a pensarmos a política científica, nós mesmos. Há pouco tempo, era conhecida por esse termo obscuro a atividade pela qual estudiosos, políticos e administradores da pesquisa decidiam que pesquisas conduzir e quais seriam os financiamentos prioritários, assim como a avaliação dos resultados, das disciplinas e dos laboratórios.
Ora, depois de 20 anos essa atividade periférica e confidencial passou a ser obrigação de todos os cidadãos, que, cada vez mais, são levados -muitas vezes em defesa própria- a arbitrar disputas científicas e decidir ações de pesquisa sobre todos os temas possíveis, desde tratamentos do câncer até a inocuidade da carne bovina, e, hoje, a influência da combustão de hidrocarbonetos sobre o aquecimento global do planeta.
Ainda há pouco tempo era possível se apoiar na comunidade científica para determinar os fatos que, a seguir, permitiriam aos políticos assumir "suas responsabilidades", conforme se diz, estabelecendo prioridades e decidindo o que fazer. Como mostrei em outra crônica, essa divisão de tarefas nunca chegou a funcionar muito bem, já que os políticos frequentemente se baseavam no consenso científico a fim de evitarem tomar decisões dolorosas, e os cientistas, por sua vez, alegremente se desviavam do processo político para decidirem eles mesmos as ações a serem empreendidas, sob o pretexto de um consenso referente aos fatos puros e simples. Apesar disso, mesmo que não fosse muito firme, esse edifício transmitia a impressão de se manter em pé.
Acontece que essa antiga divisão entre ciência, de um lado, e política, do outro, só pode ter a aparência de solidez sob a condição de que a ciência seja unânime no que afirma. É preciso que a contestação do consenso em torno dos fatos seja objeto apenas de algumas figuras "marginais" (como são o caso relativo ao vírus da Aids, algumas curas do câncer ou, ainda, o criacionismo). Para poder permanecer unida, a ciência deve poder definir o que temos em comum, o que sabemos em comum, para que, a seguir, a política se encarregue daquilo que nos divide, da multidão de interesses contraditórios que ela precisa hierarquizar -mais frequentemente pelo recurso à força.
O novo episódio ao qual estamos assistindo na luta pelo futuro do planeta mostra até que ponto mudamos de época. De fato, a coalizão que procura se estabelecer não é feita apenas de cientistas "marginais": pelo contrário, ela pretende afirmar que o conjunto de dados sobre os quais se procurou fundamentar o compromisso de Kyoto é um artefato, uma manipulação dos fatos ou, digamos as palavras, uma construção social que representaria nada mais que interesses políticos periféricos disfarçados sob uma fina camada de pseudociência.


Coalizão de cientistas quer combater, ao custo de milhões de dólares, dados sobre aquecimento da Terra


Evidentemente, essa grave acusação é simétrica: devemos desconfiar, dizem os atacados, de uma coalizão financiada pela Exxon e outros grupos petrolíferos que falam de ciência para melhor disfarçar seus grandes e oleosos interesses financeiros (1). Em outras palavras, cada um dos campos afirma que o outro é uma construção social que é preciso "desconstruir" para melhor esclarecer a opinião pública. Mais ainda, cada campo afirma que não existem dois campos, mas apenas um, aquele da ciência verdadeira, exata e objetiva.
Percebe-se que o tema da construção social da ciência não ocupa apenas os campos engajados naquilo a que, nos Estados Unidos, se dá o nome de "science wars" (guerras da ciência), e que obrigaria os "verdadeiros cientistas" a se oporem a seus colegas humanistas, sociólogos, filósofos, para defenderem os valores indiscutíveis do método científico. As "science wars" estão no mundo, também -e, em breve, provavelmente estarão nas ruas. Elas constituem a forma contemporânea de consciência política.
A partir do momento em que se decide gastar milhões de dólares para "desconstruir" a "ciência oficial" a propósito de um problema tão importante quanto o do aquecimento global (mas, justamente, será que ele é tão importante quanto se diz? É isso que negam seus adversários), é preciso mudar de método científico, de filosofia das ciências e, provavelmente, de política.
Aqueles que não são especialistas em climatologia -ou seja, todo o mundo, ou quase- devem, todavia, arbitrar as disputas sobre um tema que concerne a todos. Eles não precisam apenas escolher sua política, uma vez garantidos os fatos; agora se vêem na obrigação de escolher os fatos, ou, o que é ainda mais arriscado, escolher as teorias científicas que explicam esses fatos. A natureza não tem mais a bela unidade que, ainda no passado recente, lhe permitia definir o que temos em comum. Decididamente, o fim do milênio promete ser apaixonante no que diz respeito à renovação da vida pública: depois da era do multiculturalismo, estamos entrando, devagarinho, na do multinaturalismo.

Nota
1. Ver Paul R. Ehrlich e Anne H. Ehrlich, "Betrayal of Science and Reason - How Anti-Environmental Rhetoric Threatens Our Future", Island Press, Washington, DC (1997).


Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da ciência francês, autor entre outros de "A Vida de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Tão Modernos" (Ed. 34).
Tradução de Clara Allain.



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