São Paulo, domingo, 9 de agosto de 1998

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LIVROS
"Introdução ao Método de Leonardo da Vinci", de Paul Valéry, tem nova tradução
Rigor obstinado

JORGE COLI
especial para a Folha

Desde sua adolescência, Paul Valéry (1871-1945) tomou para si esta divisa de Leonardo da Vinci: "Hostinato Rigore". Ela adquire maior sentido depois de 1892, do episódio da "noite de Gênova", ocorrido durante uma viagem do poeta à Itália. Noite tempestuosa, paradoxalmente romântica, atravessada sem dormir -noite branca de raios e de insônia-, durante a qual Valéry rompe com seus "ídolos", decidindo abandonar as exaltações, a inspiração descontrolada, o domínio das paixões, do amor, esse amor que Leonardo considerava como uma espécie de doença.
Durante toda sua vida, Valéry não cessou de evocar a conversão dramática e brusca. "Tudo era alta frequência -na minha cabeça como no céu. Tratava-se de decompor todas as minhas primeiras idéias ou ídolos, e romper com um eu que não sabia poder aquilo que queria, nem querer aquilo que podia", escreve numa página de seus "Cahiers", em 1934. Há, nesta última frase, um princípio de consciência nuclear, ponto definitivo de onde se irradia, mais do que o pensamento ou a poesia, o ser completo de Paul Valéry.
Tomar o criador -para ele alguém que pensa no interior do próprio ato de criar- enquanto ser é uma posição valeriana. Em "A Alma e a Dança" (1923) surge a pergunta, feita por Sócrates: "Quem és e como conheces?", solicitação imediata da consciência de si e dos meios dessa consciência. É o modo como conhecemos, são os mecanismos desse conhecimento que oferecem a natureza de nosso ser, ele próprio formado pelo ato de conhecer e por aquilo que conhecemos. Pensar ou criar -verbos aqui os mesmos- não separam sujeito e objeto.
A quebra dos ídolos não significou o abandono daqueles que foram intuídos como exemplares, desde a juventude de Valéry: Baudelaire e Mallarmé, Poe e Leonardo. O "Hostinato Rigore" se impõe não em regras inflexíveis, aplicadas de fora, dentro de um procedimento claramente tratado, mas na consciência da criação. Há algo de vertiginoso neste ser que faz da vigilância cognitiva a construção de si e do mundo. Porém as palavras mais essenciais, como consciência ou conhecimento, nunca possuem, dentro do universo de Valéry, o falso sentido transparente que, com frequência, atribuímos a elas. São cristalinas, mas atravessadas por uma descômoda lucidez, além da transparência conceitual. Ela concentra o rigor obstinado do mote.
"Introdução ao Método de Leonardo da Vinci", que acaba de ser bem traduzida e publicada em edição bilíngue pela Editora 34, é a primeira obra em prosa de Valéry. Ela foi escrita dois anos depois da "noite de Gênova" e concentra as preocupações determinantes do autor sobre a natureza da criação artística e do pensamento reflexivo.
A atual edição brasileira peca por uma ausência completa de informações, deixando o leitor ignorar que a primeira versão, de 1895, foi refeita em 1919; que ela continha, desde o início, além da "Introdução", a sequência "Nota e Digressão"; que ela seria reeditada em 1931, acrescentada do texto "Leonardo e os Filósofos" e das notas marginais que comentam o texto, mais de 30 anos depois da primeira redação. Esta última e definitiva configuração é a que nos chega agora. Não se trata aqui de exigências eruditas; trata-se de dados que se mostram essenciais, sintomáticos da interrogação incessante que escreve, refaz, comenta e acrescenta anotações nas margens daquilo que escreveu.
Não seria ainda muito custoso, para a atual edição, acrescentar as duas cartas que Valéry escreveu a Gide no momento da primeira redação, insatisfeito com seu próprio estilo, parecendo-lhe insuficiente diante da grandeza de Leonardo, mas aderindo ao "grande homem-voador" como parte de si próprio: "Ele fazia suas experiências -no ar, em sua máquina que se tornou inseparável-, mas, em realidade, sobre "mim'. Era isso ensinar-me a ler? Que alfabeto! Uma coisa que, se atola, é nas copas das árvores. Adeus. Volto a mergulhar no magma de palavras mortas, de peles de idéia, de gordura retórica".
A "Introdução", tal como está, isolada e meteórica, não revela facilmente os seus segredos. Eles só se explicam ligando-se ao resto da obra de Paul Valéry. Sem um estudo de acompanhamento não percebemos, de imediato, que essa "Introdução" não é uma introdução, no sentido de que, em verdade, nos atira diretamente dentro de uma postura intelectual; que esse "método" não é um método -palavra excessiva, como assinala o próprio Valéry-, mas um estimulante à reflexão; e que, enfim, possui pouco de Leonardo e muito de Valéry.
Um Leonardo que não se entrega às "facilidades" das abstrações e das inteligências "puras", para dividi-la com uma compreensão intuitiva e criadora, parente daquelas inventadas por Poe e Baudelaire; um Leonardo que faz da pintura filosofia, e que indica a natureza artística do pensamento teórico; um Leonardo universalista, não apenas porque se interessa por todas as facetas do conhecimento, mas também, de maneira fundamental, porque emprega, dentro de si, todos os instrumentos do conhecer: os do pensar, os do intuir, os do fazer.

A OBRA
Introdução ao Método de Leonardo da Vinci - Paul Valéry. Tradução de Geraldo Gérson de Souza. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/816-6777). 256 págs., R$ 25,00.


Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de, entre outros, "Música Final" (Ed. da Unicamp).



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