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LIVROS
"Introdução ao Método de Leonardo da Vinci", de Paul Valéry, tem nova tradução
Rigor obstinado
JORGE COLI
especial para a Folha
Desde sua adolescência, Paul
Valéry (1871-1945) tomou para si
esta divisa de Leonardo da Vinci:
"Hostinato Rigore". Ela adquire
maior sentido depois de 1892, do
episódio da "noite de Gênova",
ocorrido durante uma viagem do
poeta à Itália. Noite tempestuosa,
paradoxalmente romântica, atravessada sem dormir -noite branca de raios e de insônia-, durante
a qual Valéry rompe com seus
"ídolos", decidindo abandonar
as exaltações, a inspiração descontrolada, o domínio das paixões, do
amor, esse amor que Leonardo
considerava como uma espécie de
doença.
Durante toda sua vida, Valéry
não cessou de evocar a conversão
dramática e brusca. "Tudo era alta frequência -na minha cabeça
como no céu. Tratava-se de decompor todas as minhas primeiras
idéias ou ídolos, e romper com um
eu que não sabia poder aquilo que
queria, nem querer aquilo que podia", escreve numa página de seus
"Cahiers", em 1934. Há, nesta última frase, um princípio de consciência nuclear, ponto definitivo
de onde se irradia, mais do que o
pensamento ou a poesia, o ser
completo de Paul Valéry.
Tomar o criador -para ele alguém que pensa no interior do
próprio ato de criar- enquanto
ser é uma posição valeriana. Em
"A Alma e a Dança" (1923) surge
a pergunta, feita por Sócrates:
"Quem és e como conheces?",
solicitação imediata da consciência de si e dos meios dessa consciência. É o modo como conhecemos, são os mecanismos desse conhecimento que oferecem a natureza de nosso ser, ele próprio formado pelo ato de conhecer e por
aquilo que conhecemos. Pensar ou
criar -verbos aqui os mesmos-
não separam sujeito e objeto.
A quebra dos ídolos não significou o abandono daqueles que foram intuídos como exemplares,
desde a juventude de Valéry: Baudelaire e Mallarmé, Poe e Leonardo. O "Hostinato Rigore" se impõe não em regras inflexíveis, aplicadas de fora, dentro de um procedimento claramente tratado,
mas na consciência da criação. Há
algo de vertiginoso neste ser que
faz da vigilância cognitiva a construção de si e do mundo. Porém as
palavras mais essenciais, como
consciência ou conhecimento,
nunca possuem, dentro do universo de Valéry, o falso sentido
transparente que, com frequência,
atribuímos a elas. São cristalinas,
mas atravessadas por uma descômoda lucidez, além da transparência conceitual. Ela concentra o
rigor obstinado do mote.
"Introdução ao Método de Leonardo da Vinci", que acaba de ser
bem traduzida e publicada em edição bilíngue pela Editora 34, é a
primeira obra em prosa de Valéry.
Ela foi escrita dois anos depois da
"noite de Gênova" e concentra as
preocupações determinantes do
autor sobre a natureza da criação
artística e do pensamento reflexivo.
A atual edição brasileira peca
por uma ausência completa de informações, deixando o leitor ignorar que a primeira versão, de 1895,
foi refeita em 1919; que ela continha, desde o início, além da "Introdução", a sequência "Nota e
Digressão"; que ela seria reeditada em 1931, acrescentada do texto
"Leonardo e os Filósofos" e das
notas marginais que comentam o
texto, mais de 30 anos depois da
primeira redação. Esta última e
definitiva configuração é a que nos
chega agora. Não se trata aqui de
exigências eruditas; trata-se de dados que se mostram essenciais,
sintomáticos da interrogação incessante que escreve, refaz, comenta e acrescenta anotações nas
margens daquilo que escreveu.
Não seria ainda muito custoso,
para a atual edição, acrescentar as
duas cartas que Valéry escreveu a
Gide no momento da primeira redação, insatisfeito com seu próprio estilo, parecendo-lhe insuficiente diante da grandeza de Leonardo, mas aderindo ao "grande
homem-voador" como parte de si
próprio: "Ele fazia suas experiências -no ar, em sua máquina que
se tornou inseparável-, mas, em
realidade, sobre "mim'. Era isso
ensinar-me a ler? Que alfabeto!
Uma coisa que, se atola, é nas copas das árvores. Adeus. Volto a
mergulhar no magma de palavras
mortas, de peles de idéia, de gordura retórica".
A "Introdução", tal como está,
isolada e meteórica, não revela facilmente os seus segredos. Eles só
se explicam ligando-se ao resto da
obra de Paul Valéry. Sem um estudo de acompanhamento não percebemos, de imediato, que essa
"Introdução" não é uma introdução, no sentido de que, em verdade, nos atira diretamente dentro
de uma postura intelectual; que
esse "método" não é um método
-palavra excessiva, como assinala o próprio Valéry-, mas um estimulante à reflexão; e que, enfim,
possui pouco de Leonardo e muito
de Valéry.
Um Leonardo que não se entrega
às "facilidades" das abstrações e
das inteligências "puras", para
dividi-la com uma compreensão
intuitiva e criadora, parente daquelas inventadas por Poe e Baudelaire; um Leonardo que faz da
pintura filosofia, e que indica a natureza artística do pensamento
teórico; um Leonardo universalista, não apenas porque se interessa
por todas as facetas do conhecimento, mas também, de maneira
fundamental, porque emprega,
dentro de si, todos os instrumentos do conhecer: os do pensar, os
do intuir, os do fazer.
A OBRA
Introdução ao Método de
Leonardo da Vinci - Paul Valéry. Tradução de Geraldo Gérson de Souza. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel.
011/816-6777). 256 págs., R$
25,00.
Jorge Coli é professor de história da arte na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
autor de, entre outros, "Música Final" (Ed. da
Unicamp).
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