São Paulo, domingo, 9 de agosto de 1998

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MEMÓRIA
Faz hoje exatamente um ano que morreu Herbert de Souza, o Betinho, criador da Campanha Nacional Contra a Fome
Do Brasil solidário ao Brasil solitário

Otávio Dias de Oliveira/Folha Imagem
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, no lançamento da Campanha Nacional contra a Fome em 1993


EMIR SADER
especial para a Folha

A vida de Herbert de Souza, o Betinho, transcorreu durante os anos mais importantes da vida brasileira, dos quais ele foi protagonista, analista, crítico e de alguma forma vítima. Falar dessa trajetória é tomar parte no acerto de contas de uma geração com o seu passado.
Betinho participou da geração que aderiu à militância política ainda nos anos 50, militou ativamente ao longo da década seguinte no país, saiu para o exílio -onde viveu nos anos 70- e retornou ao Brasil com a anistia (em 1979), para participar do processo de transição do ditadura militar para a democracia, vivendo dentro desta suas contradições, incertezas, esperanças e limitações.
Pode-se distinguir três perfis políticos diferenciados do Betinho ao longo dessa trajetória: o de militante e dirigente da Ação Popular, o de participante -ainda que brevemente- na experiência de governo de João Goulart, já próximo do golpe militar de 1964, e o do dirigente de organizações não-governamentais, que marcou mais profundamente sua projeção política na sociedade brasileira.
A geração do Betinho foi a primeira sobre a qual o Partido Comunista perdeu o monopólio da luta anticapitalista no Brasil. Até ali o PCB ocupava o centro da luta anticapitalista, tendo à sua direita o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro ) -partido popular do getulismo- e à sua esquerda distintas formas de crítica ao stalinismo -desde grupos trotskistas organizados até a intelectualidade marxista libertária. Os primeiros anos da década de 60 viram surgir um complemento desse quadro, com a fundação da primeira cisão chinesa no mundo, a do Partido Comunista do Brasil (PC do B), tendo ainda o PCB como referência, apesar da sua crítica a esse partido.
A maior novidade na esquerda daqueles anos, no entanto, foi o surgimento de novas organizações, dentre elas as Ligas Camponesas, movimento social de novo tipo no campo do Nordeste, assim como o grupo marxista Política Operária (Polop) e a Ação Popular, originária da Juventude Estudantil Católica (JEC) e da Juventude Universitária Católica (JUC), da qual Betinho participou desde a fundação como dirigente. As mobilizações populares durante o governo de Jango (1961-64) e aquelas de resistência à ditadura militar (pós-64) viram, pela primeira vez no Brasil, a generalização do fenômeno da militância política revolucionária em amplas camadas da população.
Betinho foi um representante significativo daquela geração que, desde sua primeira juventude, aderiu à idéia mesma de militância política, naquele momento intrinsecamente associada a duas outras características: militância revolucionária e militância partidária (ver, a propósito, "No Fio da Navalha", de Betinho, Ed. Revan). Era uma adesão voluntária, generosa, a entrega do que se tinha de melhor -as melhores energias intelectuais e práticas- à luta contra a exploração, a dominação e a alienação.
Não preocupava aquela geração o destino individual, porque a certeza da vitória fazia com que outros -se não nós mesmos- gozassem os frutos de uma luta que buscava dar acesso para a grande maioria àquilo que nós mesmos em parte dispúnhamos. Não se buscavam vantagens pessoais; ao contrário, se sacrificavam bens materiais, conforto, vínculos familiares e futuro profissional pela luta política emancipadora.
Foi o momento mais generoso de parte significativa da geração que hoje representa um segmento da elite brasileira e olha de diferentes maneiras para o seu passado. Uma parte deles foi perfeitamente enfocada num artigo de Francisco de Oliveira, em seu texto "Aves de Arribação", assim que o fim da ditadura abriu caminho para a ascensão individual dos que até ali estavam nas filas da oposição. Nesse artigo se constatava a facilidade com que parte daquela intelectualidade se dessolidarizava com os destinos do povo brasileiro e buscava um lugar nas elites dominantes em processo de reconstituição -em postos estatais ou em grandes empresas privadas. Se considerarmos o caráter conservador que assumiu a transição política originada na ditadura militar, podemos ter idéia da reinserção social desses elementos da intelectualidade brasileira.
Eles constituem um dos padrões de comportamento originários da geração dos anos 60: os que tomam sua militância como um "idealismo de juventude", um período que consideram com um sorriso piedoso nos lábios. Alguns nomes são óbvios, foram até companheiros de Betinho em sua trajetória militante. Eles são apenas a ponta do iceberg de uma fração que sobreviveu à militância, se reciclou -de cabeça e de identificação social- e hoje constitui uma franja de quadros inseridos na elite executiva e política dirigente do país.
Seu passado não lhes pesa, porque romperam com ele, teórica e praticamente, mesmo se, com essa ruptura, mudaram radicalmente sua relação com as classes populares. Sentem-se, da mesma forma que antes, na direção do que acreditam ser o norte do progresso, com um economicismo reciclado, sempre rumo à "modernidade", só que desta vez a serviço do grande capital financeiro.
Outros fizeram do exercício memorialístico seu exorcismo. Um olhar dos anos 70, com todo seu narcisismo, projetado sobre o passado, construiu com essa ótica retrospectiva uma visão que tirou todo conteúdo político da década de 60. Teria sido apenas uma "aventura de liberdade individual", uma "incessante descoberta de outras dimensões da vida".
Betinho teve uma trajetória diferente. Militou na clandestinidade depois de 1964. No exílio, compartilhou o clima de derrota e de balanço, de solidariedade e de reiteração da disposição de dar continuidade à luta contra as injustiças, ainda que por outros meios. Depois da passagem pelo processo de fundação daquele que posteriormente seria o PDT, logo Betinho passou a personificar outro enfoque da luta social e política.
É como se sua visão dos anos 60 tivesse sido outra: além de seu caráter indissociavelmente político, havia a ampliação do sentido da luta política. Tratava-se de uma redefinição da mobilização social e ética, com vista à socialização da política e do poder, para a realização de transformações não menos radicais do que aquelas pregadas nos anos 60.
Se o tema inicial de reinserção do Betinho no cenário político brasileiro foi a luta contra a fome, e com ela a defesa da solidariedade, logo se acrescentaram os temas da terra e do emprego. Resgatava-se uma parte substancial do que o Brasil tinha como dívida histórica acumulada com a grande maioria da sua população.
O enterro do Betinho, há exatamente um ano, se constituiu numa comoção nacional. O presidente da República não se fez presente, numa espécie de represália pelas críticas de Betinho ao projeto Comunidade Solidária e à política econômica do governo.
Betinho deixava de incomodar os responsáveis pelas políticas econômicas -e pela produção e reprodução em massa da miséria e do abandono. Deixava de incomodar aqueles que pretendem, com políticas focalizadas e emergenciais, diminuir a expropriação de direitos da política econômica -alma (financeira) de um governo sem alma social-, como se fosse possível atacar o imenso estoque de pobreza acumulada e reproduzida no país pelas políticas das elites ao longo das décadas.
Por que o Betinho incomoda tanto? Por que ele se transformou num personagem central do Brasil neste final de século? O que, em sua trajetória, permitiu que ele ocupasse esse lugar? O que significou e significa?
A cordialidade brasileira já foi analisada e criticada em prosa e verso. O próprio Chico Buarque -que passou de "maior gênio da música popular brasileira" a autor "repetitivo", conforme passou de apoiador a crítico de FHC- já falou do Brasil como "o país da cordialidade perdida". Um país que, apenas saído da repressão, teve seus problemas sociais agudizados, seus sentimentos egoístas aprofundados, aumentando a fragmentação social que tende a fazer da vida de cada um a luta individualizada pela sobrevivência. Como foi possível isso, ao mesmo tempo em que se constituía um consenso nacional jamais obtido antes em torno das eleições diretas e do déficit social como os problemas centrais do país?
A passagem da década de 80 para a de 90 representou simultaneamente uma virada no consenso nacional, tal como ele foi fabricado no país. Do déficit social passou-se ao déficit fiscal, como aquele que seria o nó a ser cortado para resolver os problemas pendentes do Brasil. Foi uma operação ideológica iniciada ainda no governo Sarney e consolidada no governo FHC, passando pelo de Fernando Collor. Sarney inaugurou a criminalização dos direitos, ao afirmar que a Constituição de 1988 -chamada por Ulysses Guimarães de "constituição-cidadã"- garantia direitos excessivos, tornando o Estado brasileiro ingovernável.
Ao mesmo tempo, sua política econômica se autoproclamou de "feijão-com-arroz", isto é, uma forma pouco inspirada de tentar enraizar no Brasil o "laissez faire" do neoliberalismo. Fernando Collor encarnou esse projeto da forma mais acabada até então, porém seu fracasso atrasou a concretização do novo consenso, retomado por FHC ainda em 1994, quando ministro da Economia. O diagnóstico apontava o déficit público como a fonte de todos os males do país, que seriam debelados com a desregulamentação geral e irrestrita da economia que se seguiu.
Essa política representou o mais radical processo de destituição de direitos da história brasileira, jogando a maioria da população na economia informal, excluindo-a dos direitos elementares e assestando um golpe profundo nos mecanismos de solidariedade social. Ao mesmo tempo, o diagnóstico do governo criminalizava as reivindicações populares, qualificadas de "privilégios", enquanto privilegiava as necessidades do capital financeiro para fechar as contas deficitárias e manter a moeda estabilizada.
Paralelamente, difundiu-se um discurso que hoje convida a deixar ao mercado a "alocação de recursos", a abandonar qualquer veleidade de transformação do mundo, conforme aos melhores valores humanos, a conviver com milhões de "inimpregáveis", a limitar as urgentes necessidades ao equilíbrio monetário, a deixar-se governar por leis supostamente inelutáveis, que mal escondem o reinado do capital especulativo.
Convida-se ao abandono dos sonhos, da utopia, da justiça social, da solidariedade. Convida-se ao esquecimento do Betinho, para que o desemprego, a fome, a exclusão apareçam como um destino, e não como o resultado de políticas fundadas em interesses minoritários. Busca-se a consolidação de um tipo de sociedade contra a qual o Betinho elevou suas forças gigantescas, ao gritar que quem tem fome -e não tem emprego, nem terra- tem pressa.


Emir Sader é professor do departamento de sociologia da USP e autor de "O Poder, Cadê o Poder?" (Ed. Boitempo), entre outros. O artigo acima é uma versão resumida de um texto maior apresentado no seminário "Brasil: País do Passado?", na Universidade Livre de Berlim, em junho de 1998.



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