São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2001

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+ poema

Rainer Maria Rilke e a morte

[por Ferreira Gullar]

Ela é sumo e perfume na folhagem
é relâmpago
e açúcar
na polpa fendida
e em todo o bosque
é rumor verde que de copa em copa se propaga
entre estalos e chilreios
a morte
presença e ocultação
circula luminosa
dentro dos caules
e se estende em ramos
abre-se em cores
nas flores nos
insetos (veja
este verde metálico este
azul de metileno) e inspira
o mover mecânico
dos mínimos robôs
da floresta
E ele a ouvia desatento
no próprio corpo
voz contraditória
que vertiginosamente o arrasta através da água
até o fundo da cisterna e
no intenso silêncio
Pensou ver-lhe num susto
o rosto
que se desfez no líquido espelho
(era aquele
o rosto da morte?)
De fato o entrevira ali no
tanque do jardim?
Suspeita que era dela já aquele
olho que o espiava
do cálice da açucena ou a abelha que zumbia
enfiada na corola a sujar-se de
dourado. Ou vida seria?
Nada mais vida (e morte) que esse zunir de luz solar e pólem
na manhã
Era de certo ela, o lampejo
naqueles olhos de um cão
numa pousada em Wursburg.
Mas a morte (a sua) pensava-a como
o clarão lunar
sobre a cordilheira da noite
na radiante solidão
mãe do poema
Sentia-a contornar-lhe o sorriso
esplender-lhe
na boca
pois convive com sua alegria
nesta tarde banal

Sabe que somente os cães ouvem-lhe
o estridente grito
e tentam quem sabe avisá-lo.
Mas adiantaria? Evitaria ferir-se no espinho?
Na verdade
era a morte (não brisa
que aquela tarde
moveus os ramos da roseira)
O futuro não está fora de nós
mas dentro
como a morte
que só nos vem ao encontro
depois de amadurecida
em nosso coração.
E no entanto
ainda que unicamente nossa
assusta-nos.

Por isso finge que não a pressente,
que não a adivinha nos pequenos ruídos
e diz a si mesmo que aquele grito que ouviu
ainda não era ela
terá sido talvez a voz de algum pássaro
novo no bosque
A verdade, porém, é que a mão inflama
todo ele
queima em febre
Que se passa? Está incômodo em seu próprio corpo
este corpo em que sempre
coube como numa luva
macio, e afável, tão próprio que jamais poderia imaginar-se noutro.
E agora o estranha. Olha-se
no espelho: sim são seus
estes olhos azuis,
o olhar porém
esconde algo, talvez
um medo novo. Mira
as mãos de longos dedos: são suas
estas mãos, as unhas, reconhece-as, mas
já não está nelas como antes.

Com estas mãos tocava o mundo
na sua pele
decifrou-se o frescor da água, a veludez
do musgo como
com estes olhos conheceu
a vertigem dos céus matinais
neste corpo
o mar e as ventanias vindas
dos confins do espaço ressoavam
e os inumeráveis barulhos da existência: era ele seu corpo
que agora
ao mundo se fecha
infectado de um sono
que pouco a pouco o anestesia
e anula.
Como sentir de novo na boca (no caldo
da laranja)
o alarido do sol tropical?
Se meu corpo sou eu
como distinguir entre meu corpo e eu?
Quem ouviu por mim
o jorro da carranca
a dizer sempre a mesma água clara?
Agora, porém, este corpo é como uma roupa de fogo
que o veste
e o fecha
aos apelos do dia
Com fastio
vê o pássaro pousar no ramo em frente
já não é alegria
o sopro da tarde em seu rosto
na varanda.
Alguma coisa ocorre
que nada tem a ver com o nascer do poema
quando ainda sussurro sob a pele
prometendo a maravilha
(abafado clamor de vozes
ainda por se ouvir
a girar nas flores
e nas constelações)
Alguma coisa ocorre
e se traduz em febre
e faz
a vida ruim
É desagradável estar ali
num corpo doente
que queima
de um fogo enfermo
que cala o mundo
e turva-lhe
o esplendente olhar.

Que se passa afinal?
Será isto
morrer?
Terá sido um aviso
o uivo que ouviu
naquela noite prateada em Ullsgraad.
Assim se acaba um homem
que sem resposta iluminou
o indecifrável processo da vida.
e em cuja carne sabores e rumores se convertiam
em fala, clarão vocabular,
a acessibilidade do indizivel.
E quem dirá
por ele
o que jamais sem ele será dito
e jamais se saberá?
Verdade é que cada um morre sua própria morte
que é única porque
feita do que cada um viveu
e tem os mesmos olhos azuis
que ele
se azuis os teve;
única
porque tudo o que acontece
acontece uma única vez
uma vez
que
infinita é a tessitura
do real: nunca os mesmos cheiros os mesmos
sons os mesmos tons as mesmas
conversas ouvidas no quarto ao lado
nunca
serão as mesmas a diferentes ouvidos
a diferentes vidas
vividas até o momento em que as vozes foram ouvidas ou
o cheiro da fruta se desatou na sala; infinita
é a mistura de carne e delírio
que somos e
por isso
ao morrermos
não perdemos todos as mesmas
coisas já que
não possuimos todos a mesma
quantidade de sol na pele a mesma vertigem na alma
a mesma necessidade de amor
e permanência

E quando enfim se apagar
no curso dos fenômenos este pulsar de vida
quando enfim deixar
de existir
este que se chamou Rainer Maria Rilke
desfeito o corpo em que surgira
e que era ele, Rilke,
desfeita a garganta e a mão e a mente
findo aquele que
de modo próprio
dizia a vida
resta-nos buscá-lo nos poemas
onde nossa leitura
de algum modo
acenderá outra vez sua voz

porque
desde aquele amanhecer em Muzot
quando ao lado do dr.Hammerli
subitamente seu olhar se congelou
iniciou-se o caminho ao revés
em direção à desordem
Hoje, tanto tempo depois
quando não é mais possível encontrá-lo
em nenhuma parte
- nem mesmo no áspero chão de Rarogne
onde o enterraram -
melhor é imaginar
se vemos uma rosa
que o nada em que se convertera
pode ser agora, ali, contraditoriamente,
para nosso consolo,
um sono,
ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras



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