São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2001 |
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O direito à espontaneidade
SÓ UMA ESFERA PÚBLICA
DEGRADADA PODE
ACEITAR, COM
REGOZIJO OU
COMPLACÊNCIA,
A PRÁTICA
INDISCRIMINADA
DA ESCUTA TELEFÔNICA
CLANDESTINA
A sociedade brasileira, nos últimos tempos, foi
surpreendida por uma avalanche de denúncias
de infrações cometidas por políticos e administradores de serviços públicos. Nos episódios
duas coisas chamam a atenção: primeira, a importância
que a imprensa e o Judiciário assumiram na divulgação
dos crimes e na punição dos criminosos; segunda, o papel das escutas telefônicas clandestinas no processo de
incriminação dos infratores.
Detenho-me no último aspecto. A impressão que se
tem é a de que muitos políticos e servidores públicos hesitam em punir com firmeza os delinquentes no poder
com receio do próprio telhado de vidro. Resultado: a
omissão deu lugar a medidas de força escoradas, muitas
vezes, em métodos de apuração de crimes de natureza
moralmente duvidosa.
Ora, assim como a crescente intervenção da Justiça na
vida pública parece ser um sinal da decadência da política, o grampeamento de telefones como meio usual de
investigação de suspeitos mostra a decadência da moral
privada.
Antes de tudo, demos a César o que é de César. Punir
quem merece é uma forma de a sociedade defender, sobretudo, os interesses dos mais frágeis, ou seja, a maioria da população. A má-fé de políticos e burocratas corruptos precipitou, de forma entendível, o recurso a soluções exasperadas. Não podemos, porém, fazer de atitudes de emergência receitas da vida cotidiana.
O direito à privacidade se tornou um dos pilares éticos da cultura ocidental, pelo menos desde as revoluções Americana e Francesa. A intimidade, nas origens
burguesas, era um domínio da vida de relação protegido pelos ideais de honra, vergonha e pudor. O íntimo só
vinha a público em circunstâncias excepcionais e por
motivos de força maior. Preservar a intimidade do escrutínio público significava defender o espaço privado
das demandas impessoais da coletividade e o espaço
público de interesses irrelevantes para o bem comum.
O costume nocivo da escuta clandestina corrói o sentido moral dos dois. Do espaço público, porque somos
obrigados, querendo ou não, a partilhar idiossincrasias,
obsessões ou desatinos que não nos concernem; do espaço íntimo, porque gera um clima de terrorismo no
qual o pavor da espionagem começa a exigir dos indivíduos um autocontrole na intimidade próximo da sandice persecutória.
Não é preciso muito esforço para imaginar o que seria
uma sociedade totalmente vigiada com os instrumentos tecnológicos de hoje. Com muito menos, Orwell e
Huxley fabricaram os pesadelos ficcionais que conhecemos, e Marcuse e Foucault despertaram a indignação de
várias gerações de rebeldes ou revolucionários.
Comprometer publicamente os indivíduos pelo que
dizem ou fazem no segredo da intimidade é uma insensatez. Só uma esfera pública degradada pode aceitar,
com regozijo ou complacência, a prática indiscriminada da escuta telefônica clandestina.
Ninguém de bom senso contesta a legítima aspiração
social a punir bandidos ou fraudadores das riquezas
públicas. O problema é curar a doença matando o
doente. Ao banalizar a invasão ilegal da privacidade estamos abrindo mão de uma das mais nobres aquisições
éticas de nossa cultura, o direito à espontaneidade.
Espontaneidade é a capacidade de manifestar fluência
emocional à autenticidade de propósitos para agir livremente e criar, sem cessar, formas inéditas de interação
conosco, com os outros e com o mundo. Essa habilidade tem como requisito a liberdade da experimentação
moral sem a qual nada de novo pode surgir. Mas justamente por ser um experimento inédito, a ação espontânea não tem precedente causal nem fins previsíveis. O
efeito do ato livre, em consequência, pode ser algo meritório ou reprovável.
A condição para o início da ação é, portanto, a confiança na disposição do outro para aceitar o inusitado,
inclusive o que incomoda, sem represálias imediatas,
até que o sujeito possa corrigir eventuais malogros do
que se propôs a fazer.
O estímulo cultural à devassa da privacidade destrói
tudo isso. A desconfiança inibe a ação, já que poucos
ousam apostar no imprevisto sem contar, de modo tácito, com a tolerância do outro em caso de insucesso. É
nisso que insistiram pensadores tão distintos quanto
Bergson, Dewey, William James, Hannah Arendt, Otto
Rank ou Winnicott. Sem um ambiente favorável à experiência da criatividade, estancamos o fluxo da cultura
e do desenvolvimento pessoal.
Pode-se objetar que o raciocínio é impertinente, pois
não se trata de impedir espíritos criativos de produzir
experiências emocionais e culturais enriquecedoras. O
que se traz a público não é "qualquer" fato da vida privada, e sim conluios criminosos que lesam o interesse
de todos. Mas aí mora o perigo. Quem vigia os vigilantes? Quem pode dizer onde termina o uso e começa o
abuso? Quem garante a moderação e a sensatez de
olheiros, alcaguetes e demais "profissionais do ramo"?
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 502 d.C.". E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br Texto Anterior: José Arthur Giannotti: O militante abandonado Próximo Texto: + poema - Décio Pgnatari: mais dentro Índice |
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