São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2001

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Golpistas no laboratório

A RESSURREIÇÃO TRIUNFAL DA CRENÇA NO PROGRESSO NAS CIÊNCIAS

[por Hans Magnus Enzensberger]

Não faz muito tempo, muitos lamentavam a perda das utopias que, desde sua invenção, foram um maná celestial para a parcela pensante da humanidade. Por sua configuração racional, tais planos para o completo aperfeiçoamento do nosso destino se diferenciavam dos meros devaneios de contos de fada. As utopias eram, sem exceção, plantas européias para a edificação de sociedades ideais, em que não mais o antigo Adão mandava, mas o Novo Homem. Todas as tentativas terminaram, mais cedo ou mais tarde, em ressaca; vide o recente "anno mirabili" de 1989. A psiquiatria nos ensina que uma fase depressiva facilmente reverte para um quadro de mania e vice-versa. Algo nos faz supor que tal reviravolta repentina pode ser observada não só em pacientes individuais como também em grandes coletividades. Nos anos 70 e 80 do século passado, a depressão parecia preponderante. Por toda parte ensaiavam-se roteiros de decadência. A Guerra Fria, com seus bloqueios e conflitos envolvendo nações-fantoche, havia causado a paralisia da política internacional. Esboçaram-se catástrofes ambientais de todo tipo. O Clube de Roma profetizou o esgotamento de todos os recursos finitos a curtíssimo prazo. Falava-se no inverno nuclear. Estados de espírito apocalípticos espalhavam-se além das telas hollywoodianas e das de TV. É evidente que as sociedades ocidentais haviam ficado afoitas cedo demais com a idéia de decadência. Bem antes da virada do milênio já se anunciava o quadro de mania. Dessa vez não era a filosofia da história que aguardava com promessas de redenção; nenhum partido, nenhuma ideologia política com um novo projeto humano despontavam no horizonte, pelo contrário: o colapso do comunismo deixou atrás de si um vácuo ideológico que nenhuma antiga ou nova esquerda conseguiu preencher.

Promessas utópicas
As novas promessas utópicas vieram dos institutos de pesquisa e dos laboratórios das ciências naturais. E não demorou muito até que um otimismo fantástico dominasse a cena. Quase da noite para o dia ressurgiram todos os motivos do pensamento utópico: a vitória sobre todas as imperfeições e carências da espécie, sobre a estupidez, sobre a dor e a morte.
De repente, muitos proclamaram que seria apenas uma questão de tempo até que se atingisse o aperfeiçoamento genético do homem, até que a antiga forma de geração, nascimento e morte fosse abolida, até que robôs varressem da Terra a bíblica praga do trabalho e a evolução da inteligência artificial (IA) pusesse um fim ao sofrimento da existência imperfeita. Assim, fantasias de onipotência vindas de tempos imemoriais encontraram um novo refúgio no sistema das ciências.
Isso não se aplica, de modo nenhum, à totalidade da produção de conhecimento. Mostra-se cada vez mais clara a posição hegemônica de poucas disciplinas, que dispõem dos recursos decisivos, como dinheiro e notoriedade, enquanto outras, como a teologia, a teoria literária, a arqueologia e, infelizmente, mesmo a filosofia continuam a desempenhar um papel secundário, para não dizer decorativo. Elas são toleradas, estimadas até, justamente por causa da inofensividade que o Estado e a economia lhes atribuem. Esperar delas promessas utópicas, nesse contexto, está fora de cogitação.
Mesmo certas disciplinas das ciências naturais, como a geofísica e a meteorologia, vivem uma existência modesta, à sombra das chamadas ciências dominantes. Esse papel cabia, no século 20, à física teórica. De lá para cá, foi a biologia, ao lado das ciências da computação e da cognição, que lhe tomou o lugar.
Ela "não só suspendeu a divisão entre pesquisa de base e pesquisa aplicada como também é a ciência ao mesmo tempo capitalista e revolucionária "par excellence". A biotecnologia é a tecnologia de base do próximo grande ciclo econômico" (Claus Koch).
O fato de que uma mudança tão profunda do sistema científico não possa se efetuar sem pretensões ideológicas é revelador. Se outrora eram os xamãs e curandeiros os responsáveis pelo extermínio de todos os sofrimentos, hoje são os biólogos moleculares e os geneticistas; e a imortalidade não é mais assunto para sacerdotes, e sim para pesquisadores.
As novas utopias são levadas a público em campanhas sem igual. Não é por acaso que frequentemente são cientistas americanos que dominam o discurso. O otimismo endêmico, a consciência missionária e a posição hegemônica dos superpoderosos EUA lhes dão o pano de fundo ideológico. A boa e velha crença no progresso, da qual ainda havia pouco ninguém mais queria saber, experimenta assim uma ressurreição triunfal.
Nem todos os cientistas podem e querem se contentar com seu novo papel de redentores. Esse papel contraria todas as tradições do "ceticismo organizado" (Robert Merton), da teoria da demonstração e da precaução sensata. Certamente a condição objetiva das instituições científicas se alterou fundamentalmente nos últimos tempos. A distância entre a pesquisa e a sua avaliação econômica se reduziu de tal maneira que pouco restou da independência de que a ciência se vangloria.
Os investimentos maciços nos trabalhos de pesquisa têm de trazer rendimentos o mais rápido possível. Autoridades da ciência tornam-se, assim, proprietárias e empreendedoras do complexo científico-industrial em crescimento vertiginoso, dando emprego a advogados especializados em patentes, bancos de investimento, gurus da Bolsa e agências de relações públicas. O fluxo de capital, seja ele na forma de títulos ou subvenções, acentua a luta pela concorrência e a pressão da mídia. Quem não quiser ficar por baixo tem de prometer mais do que é capaz de cumprir.
Na psicose maníaco-depressiva, é sabido que a mania se caracteriza por sistemáticas perdas de realidade. Assim, não é de admirar que experiências históricas com a utopia sejam recalcadas e que casos de fracasso fiquem ignorados. Não é fato que na União Soviética se via no materialismo dialético um fundamento científico inalterável, para não falar nas fantasias eugenistas do Prêmio Nobel Hermann J. Muller? Quem ainda se lembra das promessas de felicidade da indústria atômica dos anos 50 e 60? A energia nuclear era vista como chave para o país das maravilhas energético; não se previa nenhuma complicação. E o que se dá com a inteligência artificial, cujos profetas já prometiam 30 anos atrás, para a virada do milênio, máquinas que deveriam ultrapassar em muito todas as funções e competências de nosso cérebro? Ninguém compara aquelas previsões com os fracos resultados de investimentos bilionários, com aquelas tartarugas eletrônicas que sofrem para se mover por uma escada. E enquanto a mídia saúda com suas manchetes cada progresso, sobretudo na pesquisa medicinal, os riscos e efeitos colaterais para os negócios, enquanto não se levam em conta as dimensões catastróficas que isso pode atingir, se reduzem a uma notinha de canto de página na seção do jornal dedicada às ciências.
Insuperáveis parecem, depois de tudo isso, a credulidade do público e a indomabilidade dos desejos. É cada vez mais difícil distinguir a "grande ciência" da ficção científica. Certamente não é por acaso que parte da atual geração de pesquisadores, sobretudo nos Estados Unidos, define seu horizonte cultural por meio de séries de TV como "Jornada nas Estrelas".
Seria uma injustiça com o gênero querer subordiná-lo ao frio otimismo da linha Frankenstein, pois na história da ficção científica predomina há tempos a presença das utopias negativas, que pintam para o futuro um quadro com todos os horrores imagináveis. Não é de surpreender que os evangelistas da inteligência artificial, da tecnologia genética e da nanotecnologia privilegiem uma leitura caolha dessas quimeras.
Só que num quadro de mania, que afinal se destaca por sua ausência de reflexão, protestos e objeções não podem, por sua natureza, ter efeito duradouro. Também a política se revela atônita e impotente perante o complexo científico-industrial. A estratégia deste é simples: aponta, rotineiramente, para o fato consumado, com o qual a sociedade bem ou mal há de se acostumar, independentemente do que sejam os fatos consumados. Também de modo rotineiro qualquer contestação é refutada como agressão à liberdade de pesquisa, como aversão à ciência e à tecnologia por gente não-esclarecida, como temor supersticioso em relação ao futuro. São subterfúgios e mentiras bem calculadas, como aquelas a que políticos de partido e lobistas estão acostumados. Numa discussão racional eles não querem se envolver. E colocam em descrédito todo aquele que a proponha.
Na verdade, não são de modo nenhum somente os ignorantes e aqueles que desprezam a ciência que enfrentam com desconfiança as promessas-sensação da utopia. Quem quer se convencer delas só precisa de uma conversa durante um jantar com pesquisadores competentes de outras disciplinas para notar que, ao cristalógrafo, ao astrofísico, ao topógrafo, a arrogância presunçosa de seus colegas desagrada profundamente.
Também nas ciências biológicas há uma maioria silenciosa que vê suas idéias e seus paradigmas postos em perigo. De todo modo, esses cientistas fazem suas objeções de modo tão decoroso que a mídia mal lhes ouve.
Nessa dinâmica vertiginosa, nunca se deixam de apontar intenções filantrópicas das quais se vangloriou todo o projeto utópico, de Campanella a Stálin. A criação de depósitos de próteses humanas é vista como imperativo terapêutico, o disco rígido garante a imortalidade da consciência, a vontade de ter filhos se apresenta como absoluto direito humano etc. etc.


TÃO LOGO COMECEM A SE MOSTRAR OS PRIMEIROS EFEITOS COLATERAIS DO PROCESSO CIENTÍFICO E OS GRANDES RISCOS ATÉ ENTÃO IMPREVISTOS, UMA MAIORIA CALADA SE DEFENDERÁ


O interesse dos pais em filhos perfeitos, até bem compreensível, deve promover a evolução da espécie; e mesmo a extinção do homem, sonhada pelos expoentes da inteligência artificial, serve ainda a um mais elevado fim evolutivo -uma versão do darwinismo que nem o próprio Darwin teria achado divertida. Em todo caso, não há limites para a fantasia. Só se revelará a verdade quando tais justificativas derem lugar à preocupação com as sagradas vagas no mercado de trabalho e com a capacidade de concorrência do "posto" -conceito que, não à toa, remete à esfera militar. De modo geral, trata-se de uma série de frias tentativas de golpe, com o objetivo de catapultar todos os processos democráticos de decisão. A ciência amalgamada à indústria surge como força maior, que dispõe do futuro da sociedade. Ela está produzindo uma terceira natureza, um procedimento que transcorre essencialmente como um processo natural, com a diferença de que a necessária energia a ser aplicada não provém do meio ambiente, mas do capital desencadeado. Os mais petulantes de seus protagonistas declaram aos quatro ventos que não estão nada dispostos a aceitar limitações legais. Eles proclamam abertamente que têm a intenção de, se necessário, prosseguir suas atividades sob o exemplo dos lavadores de dinheiro e traficantes de armas, em regiões onde não se conheçam escrúpulos e não precisem temer sanções. Dessa ofensiva fazem parte a queixa habitual sobre a baixa receptividade justamente por aquele público que não é consultado em todas as decisões relevantes e a queixa contra a fúria sensacionalista da mídia como se não fosse exatamente o inverso, com os fomentadores da tecnologia do futuro apregoando seu produto aos brados, eles, que aprenderam a utilizar a mídia como instrumento para atingir os seus propósitos. Assim, toda vez que um parlamento está para tratar de questões biopolíticas, são mostrados antes, na televisão, pacientes dignos de compaixão, vítimas de doenças genéticas raras. Quem haveria de lhes negar a ajuda necessária? Quem deixará de admirar uma indústria pronta para investir bilhões a fim de aliviar o destino desses doentes, ainda que apenas num futuro distante?

Milhões de mortes
O imperativo terapêutico mereceria de fato mais credibilidade se assumisse doenças como a malária e a tuberculose, que ano após ano continuam causando milhões de mortes e cujo combate anda a passos tão lentos. Ali, a muito lembrada ponderação parece pouco importar. É de suspeitar que, muito mais do que cumprir o juramento hipocrático, o que agora está em jogo é um projeto essencialmente de futuro promissor: a recriação da espécie.
O conceito de responsabilidade, já altamente desgastado na política, torna-se, com isso, mero espalhafato. O que vale não apenas para os charlatães e impostores do ramo -estes de qualquer modo se mostram alheios à idéia de que teriam algo a justificar ou por que se responsabilizar. O problema não pode ser reduzido às tão citadas ovelhas negras. Mesmo aqueles cientistas que se agarram às rígidas normas de sua corporação se encontram incapazes de responder pelas consequências de seus atos. Isso porque tais consequências são, em princípio, imprevisíveis.
Ainda que hoje ninguém mais possa questionar a histórica inocência do monge agostiniano Gregor Mendel, qualquer matemático da atualidade refutaria com razão o atrevimento de lhe exigirem, antes da publicação dos resultados de suas pesquisas, que se certificasse quanto a possíveis aplicações destes pelos serviços secretos, pelos militares ou organizações criminosas. Enquanto as civilizações atuais existirem, mesmo a menor descoberta científica será irrevogável; e ela produz uma quantidade incontrolável de implicações. De modo inverso, com o mesmo direito os defensores do complexo científico-industrial se referem à total dependência dessas civilizações em relação aos frutos de pesquisas do passado e do presente. A impossibilidade de abrir mão de helicópteros de resgate, dos tomógrafos computadorizados e de antibióticos, a menos em casos de sectarismo, é o outro lado da moeda dessas inevitabilidades.
Já por todos esses motivos as discussões correntes sobre biopolítica e política tecnológica, apesar de suas qualidades escolásticas, causam uma forte impressão de ingenuidade e desamparo. Por toda parte, nos grêmios, comissões e conselhos de especialistas que se proliferam, chama a atenção que sejam quase incapazes de opor à força dos fatos, que dia a dia estabelecem suas próprias normas, algo diferente de suas opiniões de sempre. Enquanto uns se apresentam como meros lobistas de seu grupo de interesses, outros tentam, com justificativas variadas, salvar o que ainda é possível.
Mesmo a legislação, hesitante entre reservas fortemente estabelecidas e os imperativos da concorrência global, só é capaz de tomar decisões "ad hoc", que já no momento de sua publicação são esmagadas pelas novas possibilidades de intervenção da ciência.
O fato é que não há mais consenso ético nas questões fundamentais da existência humana. Os debates acerca da chamada morte assistida e das possibilidades de seleção genética deveriam ter feito até mesmo o sujeito de mais boa-fé se convencer desse diagnóstico. Com isso o indivíduo se vê acuado a uma condição para a qual não há mais nenhum conforto moral. Esse indivíduo não pode mais delegar uma série de decisões existenciais a nenhuma instância obrigatória. Para tratar de seus interesses vitais mais elementares, não pode contar nem com a política nem com as religiões estabelecidas. É uma sobrecarga para a qual a maioria dos homens pode não estar preparada.
Mas, enquanto o indivíduo ainda tiver a liberdade de abrir mão das conquistas que o complexo científico-industrial promete numa fase de transição, ele ainda terá a possibilidade de dizer "comigo não". De todo modo, até agora tem sido permitido se arranjar sem as mães de aluguel, sem órgãos transplantados de outros indivíduos, sem clones e a seleção pré-natal. Quem opta por essa via de legítima defesa deve, no entanto, estar ciente do preço de sua recusa -e também isso, presume-se, é mais fácil falar do que fazer.
Entretanto, imaginar que essas decisões aconteçam por consentimento mútuo, acreditar que as idéias utópicas de muitos cientistas e seus aliados na economia aconteçam sem maiores conflitos ou sem violência, é ceder a uma ilusão. Qualquer experiência histórica afirma o contrário.
Não são só as inevitáveis decepções que seguem a euforia de um quadro qualquer de mania que colocarão limites ao fatalismo do progresso. Também nos casos em que a pesquisa industrial de fato consegue sucessos se devem esperar graves conflitos. Tão logo comecem a se mostrar os primeiros efeitos colaterais do processo científico e os grandes riscos até então imprevistos, uma maioria calada haverá de se defender. É curioso que os protagonistas do processo não estejam absolutamente contando com isso. Não é fantasiar demais prever que as primeiras recaídas deverão levar a uma mobilização militante, fazendo sombra aos casos de Wackersdorf e Wendland. Se até os protetores de animais se mostram capazes de reações terroristas, que formas haverá de assumir a resistência quando não se tratar mais de riscos abstratos ou lutas entre fantoches, mas estiver em jogo a própria pele, geração, nascimento e morte? É de pensar mesmo que certas pesquisas só serão possíveis em celas de segurança máxima e que haverá um considerável número de cientistas que, refugiados em suas fortificações armadas, terão de temer pela própria vida.
Com isso não se está dizendo, naturalmente, que uma minoria disposta a tudo estaria em condições de deter o processo ou fazê-lo retroceder. Afinal de contas, a utopia do domínio total da natureza e do ser humano, como todas as utopias até hoje, haverá de ceder não a seus opositores, mas a suas próprias contradições e à sua própria megalomania. A humanidade nunca abandonou por vontade própria suas fantasias de onipotência. Só quando a hybris tiver assumido seu curso é que, provavelmente ao preço de uma catástrofe, irá se impor a visão de seus próprios limites. Então também terá nova chance uma ciência que prezamos e com a qual podemos viver.


Hans Magnus Enzensberger é ensaísta, poeta e dramaturgo alemão, autor de, entre outros, "Mediocridade e Loucura" (ed. Ática) e "O Naufrágio do Titanic" (Companhia das Letras).
Tradução de Marcelo Rondinelli.




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