São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FAZENDO A MÍDIA


USO RADICAL DA BLOGOSFERA FEZ DESTA ELEIÇÃO A 1ª A PÔR EM CRISE A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

EUCLIDES SANTOS MENDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Os meios de comunicação deram à campanha norte-americana atenção e espaço poucas vezes vistos numa disputa eleitoral. Mas, para a professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ivana Bentes, a mídia não "elegeu" o democrata Barack Obama. "Mesmo seduzida por ele, a mídia não tem fidelidade a nenhum candidato", diz na entrevista abaixo.

 

FOLHA - Por que a crise financeira e a eleição presidencial nos EUA monopolizaram a mídia mundial por várias semanas, mesmo havendo hoje um acesso inédito a múltiplos meios de informação?
IVANA BENTES
- Os dois "fenômenos" andam juntos. A eleição de Obama e a crise financeira apontam para um cenário de co-dependência global em que as crises, celebrações e lutas explodem as fronteiras nacionais e trazem o vislumbre do que poderia ser, potencialmente, uma mídia e uma democracia globais e também um "presidente das multidões". A eleição do primeiro presidente negro dos EUA foi uma resposta ao Estado militarizado de Bush e ao terrorismo econômico dos mercados financeiros. Só que a mídia não politiza a crise financeira, apresentada na TV como se fosse uma "catástrofe natural". A "resposta Obama", de uma mudança possível, seduz eleitores, a mídia e o imaginário global diante desse terrorismo de Estado e de mercado.

FOLHA - Até que ponto os meios de comunicação contribuíram para alavancar a imagem do candidato democrata?
BENTES
- Não foi a mídia que elegeu Obama, mas, sem dúvida, a sua biografia e a postura "cool", de um afro-americano que, nos discursos de campanha, saudou negros e brancos, gays e héteros, hispânicos, africanos, as mulheres etc. Ao mesmo tempo, a mídia e o próprio Obama apelaram para a imagem do "pós-negro", para um multiculturalismo esvaziado de conflitos. É claro que isso seduz, simbolicamente, num país tão atravessado por clivagens raciais e com uma política tão dura contra os "outros". Mas ninguém foi "manipulado" pela mídia. Mesmo esse multiculturalismo soft, diante da era de intolerância e racismo do governo Bush, tem um poder simbólico grande. Mas, mesmo "seduzida" pela novidade, a mídia não tem "fidelidade" a nenhum candidato. Basta ver o exemplo brasileiro. Lula começou o primeiro mandato na bancada do "Jornal Nacional", com telebiografia celebratória de sua trajetória, tão fabulosa quanto a de Obama, e, quatro anos depois, quase foi destituído na crise político-midiática, antes da reeleição.

FOLHA - As novas mídias, sobretudo a web, tiveram papel central na campanha. Após esta eleição, o que muda na relação da mídia tradicional (jornal, TV, rádio) e das novas mídias com a política?
BENTES
- Os eleitores de Obama mobilizaram a blogosfera. O candidato teve recorde de doações pela internet para sua campanha, sendo financiado pelos próprios eleitores, fato inédito. Respondeu a acusações postando vídeos no YouTube, disseminando imagens no Flickr, mensagens diretas para os celulares dos eleitores e mensagens instantâneas no Twitter, seguidas por milhões na rede. A possibilidade de uma "democracia participativa" (apesar do caráter representativo e indireto do sistema de votação nos EUA) surge nessa forma potencial de uso das redes sociais, de relacionamento e compartilhamento. Por meio delas, o eleitor constrói a informação, intervém nos discursos, reage contra a mídia tradicional, repercute, interage e se mobiliza numa forma de ativismo que coloca em xeque a centralidade da mídia tradicional e da democracia representativa. TVs e jornais tiveram que se associar à internet, ao YouTube, fazer debates on-line com a participação dos internautas. Um dos primeiros fatos midiáticos na campanha de Obama surgiu quando uma eleitora escreveu o nome do candidato no traseiro, criou um jingle divertido e postou esse vídeo de "agitprop" no YouTube, obtendo milhões de cliques de atenção na mídia global. Num só ato, sublinhou a caretice do marketing político tradicional e apontou para uma questão decisiva: cultura política descentralizada, heterogênea e novas formas de ativismo.

FOLHA - Obama seria o "Príncipe Eletrônico" (conceito pautado na relação entre política e mídia) preconizado pelo sociólogo Octavio Ianni?
BENTES
- Obama me parece estar num lugar de passagem, em que está em jogo a crise da democracia representativa, a emergência de uma democracia participativa, a descrença no mercado financeiro, a crise do Estado-nação, dos nacionalismos e "soberanismos", a emergência de uma democracia global.
No que nos diz respeito, ele é o devir-periférico do mundo.


Texto Anterior: Do céu a terra
Próximo Texto: O último messias
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.