São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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+ sociedade

por Francis Fukuyama

O cientista político contesta idéia do ensaísta Samuel Huntington e afirma que é preciso desvincular da tradição ocidental a noção de direitos humanos

O choque entre Islã e modernização

Dez anos atrás, Samuel Huntington afirmou que as linhas falhas da política mundial na era pós-Guerra Fria são principalmente culturais -um "choque de civilizações" definido por cinco ou seis grandes regiões culturais que podem às vezes coexistir, mas nunca convergirão, porque carecem de valores comuns. Uma aplicação desse argumento é que os atentados terroristas de 11 de setembro e a resposta liderada pelos EUA devem ser considerados parte de uma grande luta civilizacional entre o islã e o Ocidente. Outra é que o que nós, ocidentais, consideramos que direitos humanos universais são simplesmente um produto da cultura européia e não se aplicam aos que não compartilham essa tradição particular. Acredito que Huntington está errado em ambos os casos. V.S. Naipaul, recentemente premiado com o Nobel de literatura, certa vez escreveu um artigo intitulado "Nossa Civilização Universal". Muito apropriado. Afinal, Naipaul é um autor de origem indiana que cresceu em Trinidad e Tobago. Ele afirmou não apenas que os valores ocidentais são aplicáveis entre as culturas mas que ele deve suas conquistas literárias exatamente a essa universalidade permitida pelo cruzamento dos supostos limites civilizacionais de Huntington. A universalidade é igualmente possível em termos mais amplos, porque a força básica da história humana e da política mundial não é a pluralidade cultural, mas o progresso geral da modernização, cujas expressões institucionais são a democracia liberal e a economia orientada pelo mercado.

Ação de resistência
O atual conflito não faz parte de um choque de civilizações no sentido de que estamos lidando com regiões culturais de posição equivalente; sobretudo é sintomático de uma ação de resistência dos que são ameaçados pela modernização e, portanto, por seu componente moral, o respeito aos direitos humanos. Virtualmente todo direito que é ou foi afirmado historicamente depende de uma de três autoridades: Deus, o homem ou a natureza. A fonte original dos direitos, Deus ou a religião, foi rejeitada no Ocidente desde o início do Iluminismo. O "Segundo Discurso sobre o Governo", do filósofo inglês John Locke (1632-1704), começa com uma longa polêmica contra a defesa do direito divino dos reis por Robert Filmer. Em outras palavras, o secularismo da concepção ocidental dos direitos está na raiz da tradição liberal. Hoje essa parece ser a principal linha divisória entre o islã e o Ocidente, porque muitos muçulmanos rejeitam o Estado secular. Mas, antes de endossarmos a idéia de um choque de civilizações irredutível, devemos considerar por que o liberalismo secular moderno surgiu no Ocidente. Não é por acaso que as idéias liberais surgiram nos séculos 16 e 17, quando sangrentas lutas entre seitas cristãs em toda a Europa demonstraram a impossibilidade de um consenso religioso sobre o qual basear o governo político. Hobbes, Locke e Montesquieu reagiram a horrores como a Guerra dos 30 Anos afirmando que a religião e a política deveriam ser separadas, principalmente para garantir a paz civil.

O dilema islâmico
O islamismo hoje enfrenta um dilema semelhante. Iniciativas para unir política e religião estão dividindo os muçulmanos assim como dividiram os cristãos na Europa. Nossos políticos têm razão (e não apenas senso de oportunidade) quando insistem que o atual conflito não é com o islã -uma fé extremamente heterogênea, que não reconhece uma fonte autorizada de interpretação doutrinária. A intolerância e o fundamentalismo são uma opção para os muçulmanos, mas o islã sempre teve de lutar com a questão do secularismo e a necessidade de tolerância religiosa, como fica evidente na atual fermentação reformista no Irã teocrático.
A segunda fonte de direitos -a visão essencialmente positivista de que toda coisa que uma sociedade declare como direito por meio de um dispositivo constitucional torna-se de fato um direito- tampouco fornece garantias para tendências liberalizantes, pois leva ao relativismo cultural. Se, como afirma Huntington, os direitos que afirmamos no Ocidente surgiram unicamente da crise política do cristianismo europeu depois da Reforma protestante, o que significa impedir outras sociedades de apelar a suas próprias tradições locais para negar esses direitos? O governo chinês é muito adepto da manipulação dessa questão.
A última fonte de direitos é a natureza. Na verdade, a linguagem dos direitos naturais -defendida enfaticamente nos Estados Unidos no século 18- continua moldando nosso discurso moral. Quando dizemos, por exemplo, que a raça, a etnia, a riqueza e o gênero são características não-essenciais, isso obviamente implica que acreditamos na existência de um substrato de "humanidade" que nos habilita à proteção igual contra certos tipos de comportamento de outros grupos ou Estados. Essa crença é o motivo último para rejeitar argumentos culturais que subordinariam algumas pessoas de uma sociedade -as mulheres, por exemplo.
Além disso, a disseminação das instituições democráticas em contextos não-europeus durante as últimas décadas do século 20 sugere que nós, ocidentais, não estamos sós nessa crença. Mas, se os direitos humanos são de fato universais, deveríamos exigir sua implementação em toda parte e em qualquer momento? Aristóteles afirma em sua "Ética a Nicômaco" que as regras naturais da justiça existem, mas sua aplicação exige flexibilidade e prudência. Essa visão permanece válida hoje. Devemos distinguir entre uma crença teórica na universalidade dos direitos humanos e a prática real da defesa dos direitos humanos em todo o mundo, pois nossa "humanidade" comum é moldada em diversos ambientes sociais, de modo que temos diferentes percepções dos direitos.
Em muitas sociedades tradicionais, onde as opções e oportunidades de vida são limitadas, a visão ocidental individualista dos direitos é muito perturbadora. Isso ocorre porque a concepção ocidental não pode ser abstraída do processo maior da modernização. Argumentar de outro modo é colocar o carro na frente dos bois, pois nosso comprometimento com a universalidade dos direitos humanos constitui apenas uma parte do complexo contexto de uma civilização universal, da qual não se pode excluir uma compreensão dos outros elementos das sociedades modernas -justiça econômica e democracia política.


Francis Fukuyama é professor de economia política internacional na Universidade Johns Hopkins (EUA) e autor de, entre outros, "O Fim da História e o Último Homem" (ed. Rocco).
Copyright: Project Syndicate/Forum 2000.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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