São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2001

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+ cultura

A verdadeira natureza da poesia

O medievalista Segismundo Spina discute a profissão de filólogo, comenta a formação de sua biblioteca e explica por que não lê a literatura brasileira das últimas décadas

Mônica Rodrigues da Costa
Editora da Folhinha

Edilamar Galvão
especial para a Folha

A partir deste fim de semana pesquisadores das letras e da literatura têm à disposição, no Centro Universitário Fieo, em Osasco (Unifieo), a biblioteca do medievalista Segismundo Spina, 80, professor de filologia, autor de várias obras dedicadas aos estudos da poética clássica e medieval, entre eles "A Lírica Trovadoresca", que já se tornou clássico.
Professor emérito da Universidade de São Paulo e aposentado há 16 anos, Segismundo Spina colecionou e pesquisou durante 65 anos obras fundamentais para o pesquisador de língua e literatura. O acervo agora disponível na Unifieo contém obras consideradas raras e raríssimas sobre a lírica trovadoresca, poetas barrocos como Francisco Manoel de Melo e Gregório de Matos, uma extensa bibliografia sobre Luís de Camões, Gil Vicente, além de histórias literárias e gramáticas da língua portuguesa e estudos raros de poética. A biblioteca da Unifieo dispôs os livros exatamente como estavam na casa do filólogo. "Não admito desmembramento deste acervo", diz Spina, "como aconteceu com todas as bibliotecas compradas pela USP".
Em entrevista à Folha, no seu apartamento em São Paulo, Spina falou sobre filologia e a importância de vários livros da biblioteca, mas advertiu que não responderia a questões sobre "literatura moderna".

Por quê o sr. não quer falar sobre literatura moderna?
Porque eu não leio. Poesia contemporânea eu não leio de jeito nenhum. Minha leitura vem desde os clássicos, porque eu fiz curso de greco-latina, até o romantismo, com autores como Guerra Junqueiro, Olavo Bilac, Rodrigues de Abreu, que foi um grande poeta nascido em Capivari. Infelizmente hoje a gente não o encontra nas histórias da literatura brasileira.

O professor Alfredo Bosi não o incluiu na "História Concisa da Literatura Brasileira"?
Não. Eu fiz observações a ele. Não tenho mais nenhum exemplar [do livro". Meus livros de ficção foram queimados num acidente em meu apartamento. É difícil encontrar [o livro de Rodrigues de Abreu], ganhei de um velho professor que despertou em mim o gosto da leitura e o gosto da poesia, principalmente o amor pelo livro, que é uma coisa que está desaparecendo completamente. Mas Saramago e companhia, essa gente eu não leio.

E Guimarães Rosa?
Pior ainda. Porque eu sempre tive um sentimento de amor à vernaculidade e eu detesto esse tipo de linguagem.

João Cabral de Melo Neto?
Também não, o de hoje não.

E Carlos Drummond de Andrade?
Muito menos. Eu não tenho admiração nenhuma por eles. Posso explicar por quê. Isso eu não considero poesia. Porque a natureza da poesia é outra. Minha tese de doutoramento foi um estudo mais antropológico das formas primitivas da poesia. Como é que a poesia nasceu nos povos iletrados, nas tribos primitivas, até o fim da Idade Média, quando ela começa a se tornar uma poesia de valor e de objetivo estético.
Essa tese foi publicada por sugestão de Bosi. Ele pediu que eu transformasse num ensaio e escrevi "Na Madrugada das Formas Poéticas" [ed. Ática].

Por que o senhor acha que não é poesia?
No fundo, a poesia é um mistério, como a música é um mistério. As duas artes nasceram juntas, a letra e a música, nos povos iletrados. Depois que cada uma adquiriu sua liberdade estética, a música passou a ser música e a poesia a ser poesia. Esses poetas modernos atuais para mim não são poetas. Eles não têm a capacidade de criar em poesia. E o que eles fazem? Aproveitaram o desdobramento da atividade poética que morre mais ou menos durante o romantismo e fizeram um desdobramento entre poesia quadrada, poesia oblíqua, poesia, como se diz?, concreta, cúbica, poesia letrista, vocês já ouviram falar?, poesia gráfica, não é [poesia". Isso é uma demonstração de incapacidade. A verdadeira poesia conserva suas características iniciais: ritmo, cadência, é um jogo de imagens e metáforas. Ela possui uma coisa que geralmente os poetas modernos não têm: que é a expressão do inefável, do sonho, daquilo que está na periferia da realidade, não na realidade.

Não gosta de Rilke?
[ri]... Eu gosto do Guerra Junqueiro... Ele sabe criar uma imagem, uma metáfora, sabe modular. Alguns modernos ainda conservam a verdadeira modulação da poesia, mas só a modulação. O vocabulário geralmente cai, ou é satírico ou é pornográfico.

Essa é uma condição da poesia e da prosa contemporâneas ou, do ponto de vista do senhor, no panorama mundial da literatura, há esse quadro? Não haveria mais criatividade?
Eu não creio. Bom, depende, não conheço todas as gerações estrangeiras. Mas minha vida foi praticamente dedicada quase que 90 % à poesia medieval e à poesia clássica. Eu dava curso sobre Camões, tanto é que eu tenho algumas poesias publicadas e dizem que aquilo cheira a Camões. Mas cheira porque eu só lia e dava curso sobre Camões. Eu criei uma disciplina sobre Camões na faculdade [FFLCH-USP], que só existia em Lisboa. A disciplina existe até hoje no departamento de vernáculas junto com uma revista de caráter internacional ["Revista Camoniana"], com publicações de ensaios, monografias de professores estrangeiros. Hoje ela está na mão de Maria Helena Ribeiro da Cunha, que foi minha assistente na faculdade.

O senhor considera que não há possibilidade de fazer poesia ou isso é responsabilidade dos poetas?
Eu não dou responsabilidade a eles porque naturalmente a literatura evolui. Mas a poesia não evoluiu, ela se desdobrou em formas que eu detesto. Mas isso é coisa pessoal. Porque [a poesia"] não conserva o ritmo, não conserva o jogo da imagens, das metáforas. Não conserva aquele halo milagroso e inefável que para mim é a essência da poesia. A [Cecília] Meireles, por exemplo, para mim, é poeta. E ela é praticamente atual.

Alguns jovens poetas não procuram o senhor para lhe dar livros?
Não. Graças a Deus.

E a música popular?
A que eu gosto e toco no violão quando eu posso é o choro. Tanto é que, à noite, naqueles canais [TV Senado", quando felizmente não são ocupados pelos políticos lá de Brasília, vêm conjuntos simplesmente extraordinários na execução de violão de guitarra. Mas [a música de que eu gosto] é choro, é só o choro.

No prefácio de um livro do senhor, Haroldo de Campos destaca a importância de sua leitura sobre Gregório de Matos. É importante ler Gregório de Matos hoje?
Para quem queira estudar, por exemplo, o desenvolvimento do gênero barroco na literatura brasileira. O próprio Antonio Candido passou por cima [desse estudo] na "Formação da Literatura Brasileira".
A bibliografia que se escreveu sobre Gregório de Matos é grande. Do ponto de vista satírico, o melhor trabalho ainda é do Araripe Júnior, que também é raro e está na Unifieo. Mas o mais erudito, mais profundo, mais bem escrito, não em todos os sentidos, é do professor baiano João Carlos Teixeira Gomes.
Ele acabou de publicar um livro em que destrói o Antônio Carlos Magalhães ["Memória das Trevas", Geração Editorial]. Ele escreveu uma obra que eu considero a melhor obra sobre Gregório de Matos, pena que não numa visão de conjunto, e numa linguagem que eu ainda não vi em ninguém, a pureza de linguagem dele: "Gregório de Matos - o Boca de Brasa". Ele estuda a interdisciplinaridade do Gregório de Matos e parte das fontes do Gregório, o que não é fácil.

O que despertou seu interesse pela literatura medieval?
É fácil dizer. Quando entrei para o curso de letras clássicas, latim, português, meu professor [de filologia" era meu inimigo desde o vestibular. Eu vim do mato, do interior, à custa de uma família de farmacêuticos que procurou me ajudar a estudar. Desde os 13 anos tenho uma vida solitária, sempre vivendo na casa dos outros.
Minha paixão era medicina, mas eu não podia cursar porque não tinha emprego. Medicina exigia dedicação integral e livros caros e eu resolvi fazer um outro curso. Acontece que desde o primeiro ano eu tive uma disciplina de filologia, que era regida pelo professor Silveira Bueno. Foi ele quem me reprovou no vestibular dizendo: "O senhor é um burro". Nesse tempo fazia-se um exame oral também. Ele pediu que eu lesse um texto e me deu justamente um poema romântico do Garrett. Então comecei a ler [com voz de declamação]: "Saudades gosto amargo de infelizes...". Ele disse: "Pára! Por que o senhor fala "ãmargo'?". Eu tinha de fato uma pronunciazinha...
O Silveira não dava filologia. A disciplina era filologia e língua portuguesa, mas ele só dava história da língua portuguesa, e isso não é filologia, filologia é uma coisa completamente diferente.

Mas e o interesse pelo período medieval?
Estudando a filologia na parte histórica, principalmente a dada pelo professor de filologia românica, nem foi filologia portuguesa, foi a românica, que é mais ampla, eu me encantei com a poesia da Idade Média, tanto que o meu maior livro e o mais luxuoso é "Lírica Trovadoresca" (Edusp). Eu tenho um livro de versificação românica medieval pioneiro.

Seu interesse pela filologia tem relação com a história do senhor com o professor Silveira Bueno?
Aí é que está. Ele era professor de filologia, mas só dava gramática histórica e eu, como aluno, já sabia que ele não dava filologia como eu a entendo.

E o desenvolvimento da filologia hoje?
Tentei formar alguns filólogos. Eu queria que os meus assistentes aprendessem o que era filologia. E eu não consegui. Só dois, Osvaldo Ceschin, que escreveu uma tese de doutoramento baseada em cantigas trovadorescas satíricas, que devia ser publicada, e o professor Heitor Megale. Ele está ainda na cadeira, já é titular. Publicou recentemente uma obra que é um monumento até do ponto de vista do luxo, sobre o Santo Graal ["A Demanda do Santo Graal - Das Origens ao Códice", ed. Ateliê".

O senhor destaca a obra de Ernst Robert Curtius [Literatura Européia e Idade Média Latina, Edusp] como fundamental e diz que "o livro de Curtius constitui a defesa mais penetrante, mais séria e mais fundamental que se fez até hoje da filologia".
Existe uma última etapa da filologia que ninguém estuda, que é a transposição do texto, não é a fixação. É aquilo que não está no texto. A ela pertencem, por exemplo, a autoria, a adaptação, a época. É a valorização da obra perante as obras do mesmo gênero. Eu faço do texto um instrumento para o estudo da alma, do espírito de uma época, de uma comunidade. Não é preciso mostrar o Curtius, é só ler, por exemplo, John Huizinga em "O Declínio da Idade Média". É um monumento da filologia porque ele partiu das crônicas, da memória, da poesia da época e, com isso, reconstruiu a mentalidade borgonhesa no fim da Idade Média. É uma parte ensaística [da filologia], mas partindo do texto. Isso é o aspecto transcendente da filologia. É transcender o texto, é superar o texto mesmo aproveitando o texto.
Ninguém estuda filologia assim. O Curtius não só estuda os textos, mas tudo que tem relação com o texto, como o nascimento das universidades. Infelizmente ele estuda apenas até Goethe. Ele escreveu longe da biblioteca dele, o que é espetacular. Ele fez como [Erich] Auerbach com "Mimesis" [editora Perspectiva], que estava na Turquia, não tinha biblioteca e escreveu uma obra que é também uma obra de filologia.
Huizinga se apoiou em textos de fundo oriental. Porque na Espanha, até certo ponto, principalmente no sul da Espanha, aquilo tudo cheira a árabe. Uma coisa curiosa que ninguém aponta, e o Américo de Castro escreveu em "La Realidad Histórica de España". É um monumento também de filologia. Ele estudou os textos da Idade Média da Espanha e os textos orientais e conseguiu estabelecer o caráter orientalista da literatura espanhola em relação às literaturas latinas. Isso é um grande achado.
E o Curtius, depois desse estudo, chegou à conclusão de que existe uma absoluta unidade da civilização ocidental.

Como foi a formação de sua biblioteca?
Pois é. O meu hobby mesmo era possuir aquilo que era muito difícil: os cancioneiros medievais. E isso não existem mais em parte nenhuma. E eu consegui adquirir ao longo dos meus 40 e tanto anos de docência. Só de Horácio eu devia ter umas seis ou sete traduções. A melhor tradução é "Poética de Horácio", de Jerônimo Soares Barbosa. Ele foi um dos primeiros que conseguiram elaborar uma gramática filosófica. Eu tenho um trabalho sobre poética clássica ["Introdução à Poética Clássica", ed. Martins Fontes] e tive de consultar todas as artes poéticas. Só de Aristóteles eu deveria ter 12 ou 13 edições diferentes.
O Horácio eu aproveitei [para estudar] os princípios da estética clássica e eu me prevaleci dessa edição porque é a melhor edição feita da poética de Horácio. Sobretudo aproveitei uma novidade, que foi a verdadeira conceituação do que é ficção, está aí [nessa edição] e está reproduzida no meu trabalho. O que é uma coisa muito importante, mas nunca ninguém tratou disso.


Edilamar Galvão é mestre em comunicação e semiótica com a dissertação "Nelson Ascher - Poesia em Tradução".


Onde: Biblioteca Segismundo Spina - Unifieo, bloco Marrom, subsolo; av. Franz Voegele, 300, Vila Yara. De segunda a sábado, das 7h às 22h, tel. 0/xx/11/3651-9909).


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