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O construtor de enigmas
Único brasileiro além de Niemeyer a ganhar o Prêmio Pritzker, o Nobel da arquitetura, Paulo Mendes
da Rocha diz ser ele um dos grandes artistas do século 20, que dialoga com a Antigüidade e a Renascença
GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA
O
scar Niemeyer e
Paulo Mendes da
Rocha são os
maiores arquitetos brasileiros vivos. Significativamente, foram
os únicos a receber, até hoje, o
Prêmio Pritzker (em 1988 e
2006, respectivamente), considerado a condecoração máxima da profissão.
Entrevistado em seu escritório, no edifício do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), no
centro de São Paulo, Mendes
da Rocha falou sobre a importância do colega, 21 anos mais
velho, para a sua geração.
Admirador da inteligência
construtiva de Niemeyer, nunca levou em conta o suposto
antagonismo entre São Paulo e
Rio de Janeiro no campo da arquitetura.
Comentando projetos importantes, como o Museu de
Caracas (1954), a Catedral de
Brasília (1958) e o Memorial da
América Latina (1987), Mendes
da Rocha destaca a relação fundamental entre invenção e experiência histórica na obra de
Niemeyer.
FOLHA - Qual é a importância da
obra de Niemeyer para o sr.?
PAULO MENDES DA ROCHA - Eu
pensei que, para homenagear o
nosso querido Oscar Niemeyer,
seria importante falar primeiro
da importância que ele teve na
formação de uma pessoa da minha geração, que cursou a Faculdade de Arquitetura entre
1949 e 1954, mais de meio século atrás, mas numa época em
que a sua obra já aparecia com
muita clareza.
E se destacava, sobretudo,
quanto à capacidade de estabelecer uma reflexão de caráter
arquitetônico sobre o que se
quer fazer e sobre o grau de liberdade envolvido nisso.
Para mim, comemorar os
cem anos de Niemeyer é quase
dizer o seguinte: "Mas seria impossível não haver Niemeyer",
porque ele amparou a nossa
existência. Todo o prestígio da
arquitetura brasileira se deve a
ele. E é um prestígio advindo da
idéia de imaginação, que, para o
país, sempre representou uma
esperança.
Portanto, é difícil imaginar
uma comemoração formal, já
que nós sempre tivemos Niemeyer como uma comemoração constante: da inteligência,
da coragem, da capacidade técnica etc.
Por outro lado, é preciso comemorar o fato de que Niemeyer é, seguramente, um dos
grandes artistas do século 20,
porque fez com que a arquitetura revelasse sempre soluções
que, além de serem brilhantes,
são expressões de uma suprema liberdade.
FOLHA - Como o sr. vê a questão do
tão falado antagonismo entre São
Paulo e Rio de Janeiro no campo da
arquitetura?
MENDES DA ROCHA - Pois é, costuma-se criar essa oposição entre
as "escolas" paulista e carioca,
filiando a arquitetura de lá às
belas-artes e, a daqui, à politécnica. O que, aliás, procuro sempre corrigir, incluindo a importância da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no caso
da USP. Acho que essa é a chave
que marca a FAU [Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da
USP], pela cabeça de Vilanova
Artigas.
Mas, diante da questão de
uma oposição entre São Paulo e
Rio, acho que tive uma felicidade muito grande, que me impediu de ver as coisas assim.
É que, entre os 14 e os 17 anos
de idade, saí daqui e fui morar
na casa do meu avô, no Rio de
Janeiro, para me enfiar num
curso preparatório para a Escola Naval, dado pelo comandante Barata, na rua da Carioca.
Ou seja, eu freqüentei sem
querer, àquela altura, a colunata do Ministério da Educação,
por exemplo.
E, principalmente, morando
onde o meu avô morava -no
Alto da Tijuca-, eu tinha que
tomar o bonde Águas Férreas e
descer no largo da Carioca. Portanto, acabei freqüentando a cidade do Rio de Janeiro, já adolescente, vivendo a sua densidade, porque aqui em São Paulo nós estudávamos em colégios ainda de bairro.
Logo, acho que desenvolvi
uma visão um tanto "carioca"
da vida urbana, que era diferente daquela que os meus colegas
aqui de São Paulo tinham na
época. O que fez com que eu
nunca conseguisse dividir a
questão da arquitetura entre
arte e técnica, como se houvesse uma arquitetura das belas-artes e outra da politécnica, como se diz.
E Niemeyer atravessa isso
tudo, não só pelo Ministério da
Educação, que freqüentei naquela época, mas também pelo
Ibirapuera, construído um
pouco depois aqui mesmo.
Comemorar os cem anos de Niemeyer é quase dizer o seguinte: "Seria impossível não haver Niemeyer", porque ele amparou a nossa existência; todo o prestígio da arquitetura brasileira se deve a ele
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São Paulo, aliás, é muito feliz,
porque é a cidade do mundo
que possui mais obras de Niemeyer (depois de Brasília, naturalmente).
FOLHA - Diferentemente do que se
diz sobre a gratuidade da forma na
obra do Niemeyer, o sr. sempre valorizou o gênio construtivo que ela
contém, não é?
MENDES DA ROCHA - Pois é, Niemeyer tem uma sabedoria
enorme em não ficar exibindo
isso. A curva do Copan, por
exemplo, é uma resolução técnica exemplar quanto à questão do esforço de vento, num
prédio que se quis esbelto por
razão da qualidade das plantas
dos apartamentos.
O Copan também é um modelo quanto à relação entre habitação e cidade, situado em
plena praça da República.
É, por excelência, o símbolo
da habitação popular de uma
metrópole.
FOLHA - E em que outros projetos
dele essa inteligência construtiva
aparece com nitidez?
MENDES DA ROCHA - O Museu de
Caracas, por exemplo, é um
projeto extraordinário. Se pensarmos na história da pirâmide,
veremos que ela tem três capítulos: as pirâmides do Cairo, a
pirâmide invertida do Museu
de Caracas e a pirâmide de cristal do Louvre.
Sim, pois a pirâmide de
Quéops tem uma fresta muito
precisa pela qual se pode ver, de
dentro da cripta do faraó, em
certo momento, a estrela de Sírio, da constelação do Cão
Maior. Ou seja, aquela pirâmide de pedra já sonhava em ser
cristalina, como a de Pei [arquiteto chinês].
E o raciocínio de Niemeyer
em Caracas, ao inverter a pirâmide e concentrar as cargas, é
uma coisa extraordinária, porque é algo que a mecânica dos
solos hoje permite. E também
por usar as paredes, que nesse
caso tendem a cair, como um
recurso de autoprotensão das
lajes horizontais.
Tudo isso faz com que o Museu de Caracas transmita uma
visão construtiva fantástica,
porque tem uma estrutura belíssima e totalmente factível,
que praticamente se faz por si
mesma.
Nesse sentido, é como as pirâmides antigas, que eram máquinas da sua própria construção: o plano inclinado. Esse
museu é uma nova expressão
da mesma coisa. Não como
mesmice, é claro, mas como
uma reflexão que se prolonga.
FOLHA - O sr. acha, então, que o
sentido de "invenção" em sua obra
tem uma relação com a história da
construção?
MENDES DA ROCHA - Se você tomar a catedral de Brasília, por
exemplo, pode considerar que é
uma inversão da cúpula da igreja em Florença, de Brunelleschi
[1377-1446]. Principalmente
porque o princípio estrutural
de que partem ambas é a indeformabilidade do círculo, uma
vez submetido à ação de forças
homogêneas.
A base da cúpula de Florença
é um círculo que recebe os esforços de tração, sobre o qual se
apóiam aquelas nervuras feitas
com pedra, que se juntam lá em
cima num outro círculo menor,
que trabalha a compressão.
Mas, se você inverter o desenho, vai ver que a Catedral de
Brasília tem no chão (ainda que
falso, porque há um subsolo escavado), um grande cilindro:
um anel também submetido a
tração de modo uniforme.
Mas, hoje, aquelas pedras
que antes eram arcos podem
ganhar, com o concreto armado, uma forma invertida, tendo
outro anel em cima que vai receber o conjunto do feixe desses arcos convexos, trabalhando fortemente a compressão.
Como se vê, Brunelleschi e
Niemeyer fizeram uma catedral só. Quer dizer, se divertiram. Essa é uma grande lição de
Niemeyer: sua reflexão está
centrada na experiência. Portanto, ele é um fabricante, um
construtor, assim como se diz
que Mies van der Rohe [1886-1969] era um carpinteiro.
Mesmo a idéia do grande espaço coberto com o homem
dentro, que Niemeyer desenvolve, pode ser vista assim.
Porque, se você tomar uma
cúpula romana toda de pedra e
já com os seus anexos laterais,
como o Panteão de Agrippa, vai
perceber que é formada por um
anel contínuo e uma sucessão
de arcos. O que nos dá a percepção, para quem está numa dessas capelas laterais, de uma pequena abóbada seguida por
uma grande cúpula, com outra
abóbada no fundo.
Agora, se você pegar esse anel
com os pequenos arcos e o retificar, terá uma grande viga com
inúmeros apoios.
E, se ainda puder fazer essa
viga protendida e resolver tudo
em apenas dois apoios extremos, com cascas de concreto
armado repousando nela, terá
os protótipos dos pavilhões que
Niemeyer criou no Memorial
da América Latina.
O Memorial, portanto, é um
exercício de construção, como
se juntasse uma pedrinha aqui,
outra ali, e pegasse os templos
astecas e incas para dizer que
agora nós vamos arrumar as
pedras de outro modo.
Sim, porque o concreto é pedra líquida. Assim, não vem ao
caso se aquele prédio é um auditório ou uma biblioteca. O
que Niemeyer está fazendo ali é
um protótipo construtivo. O
projeto do Memorial da América Latina é uma reflexão sobre
a história da construção, sem a
qual não haveria cidades nem
haveria nós.
Então, a motivação do projeto é procurar, na história da
técnica, o maior elogio possível
para construir aquilo. A FAU
[projeto de Vilanova Artigas]
também é um prédio assim,
com essa força histórica. A
construção é uma espécie de
enigma que impõe uma reflexão sobre como e por que aquilo foi feito daquele modo.
Não como um mistério insondável, mas algo a ser decifrado com um teor educativo
fundamental.
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