São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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O herói de duas faces

"Jorge Amado da prancheta", arquiteto reúne em sua obra a utopia e o fracasso da integração social

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil já foi o "paraíso dos arquitetos", e nele Niemeyer era o nosso serafim. E, mesmo quando o paraíso virou inferno, pois no Brasil ambos habitam o mesmo espaço, ele continuou a pontificar. Se os manuais de história da arquitetura de hoje falam em "estilo internacional brasileiro", é a Niemeyer -esse Jorge Amado da prancheta- que devemos a deferência, assim como a contradição (uma obra de apreciação universal definida por sua regionalidade como um "estilo" entre outros).
A arquitetura moderna, desde seu início com o racionalismo radical do vienense Adolf Loos ("o ornamento é um delito"), passando pela Bauhaus e por Le Corbusier, voltava-se contra a história -entendida como continuidade da tradição. Os símbolos do passado, a fantasia barroca do decorativismo, deveriam sumir da construção. O espaço moderno era universalista, racionalista e funcionalista. Suas formas, seus materiais e a agilidade da construção serviriam para antecipar a sociabilidade que viria com a revolução (primeiro burguesa e depois socialista).
A arquitetura era a obra de arte total, a síntese da emancipação social e cultural que o modernismo imaginou e que o cinismo do pós-modernismo, com sua grotesca racionalização de Las Vegas, aderindo à lógica do capitalismo-cassino, iria substituir. Mas é mesmo de adesões complicadas que a história da arquitetura é feita.
Veja-se o caso nacional. O triunfo espetacular da arquitetura moderna brasileira tem dois momentos decisivos. O primeiro se localiza na época da Semana de Arte Moderna, quando a vanguarda modernista, surfando na onda decadente da aristocracia do café, ataca a mentalidade colonial e propõe dois projetos: um para o futuro do país (baseado em racionalidade, ordem e integração com a modernidade e, ao mesmo tempo, na redescoberta do passado nacional e de sua vocação) e outro para o país do futuro (criar os novos espaços para a revolução que nos daria uma nova cultura, de preferência socialista).

Novo Estado
Em 1929, quando Le Corbusier veio ao Brasil pela primeira vez, a quebra da Bolsa de Nova York e o rearranjo do capitalismo em frangalhos mudara os quadros mundial e local. Tanto o New Deal nos EUA quanto o nazifascismo na Europa ou os planos quinqüenais soviéticos fazem com que o capital industrial deixe de ser o "interlocutor" privilegiado da nova arquitetura. Agora é o Estado, no nosso caso o Estado Novo, que assume esse papel.
Pois, sem o Estado ditatorial, a introdução da nova arquitetura teria sido feita pelos canais privados, de modo esporádico, gradual e anárquico. Pronto o arranjo, com o retorno de Le Corbusier em 1936, a régua para a aventura de Niemeyer estava dada. O compasso quem lhe deu foi o planejamento histórico-nacional de Lucio Costa. De um lado, a adequação ao "projeto moderno" e às novas tecnologias. De outro, a curva da linha, a busca do capítulo brasileiro da arquitetura moderna, que foi o seu grande gesto. Daí chegaria Brasília, a "síntese das artes". Depois do acordo entre modernistas, socialistas e o Estado autoritário, os democráticos anos 50 trariam os bons ventos do nacional-desenvolvimentismo, calcado no crédito fácil que a banca internacional, em tempos de Guerra Fria, dava aos populistas de centro-direita com os quais os esquerdistas modernistas iriam se acertar.
Oferecer ao mundo um projeto inteiro de cidade contrário à centralização militar da época barroca, ao espírito de subúrbio pequeno-burguês do "american way of life" e à selvageria do "laissez-faire" liberal. Uma utopia baseada na constituição de uma coesão social conciliadora, mas plena de calor humano "como na época da Comuna", diria Mário Pedrosa. As formas de Niemeyer decoraram espetacularmente essa utopia até que o golpe militar transformasse a paisagem.
O projeto modernista esquerdizante sai de cena. Mas Niemeyer não. Ele permanece como ornamento do passado ou como lembrança de uma promessa de felicidade, moderna, que não se realizou. Em resumo: um artista do "estilo" sensual brasileiro.

Gesto abstrato O comunismo humanista de Niemeyer (que não deixa de ser um formalismo imagético tão poderoso e ornamental quanto a retórica do espaço público que Brasília consumiu), que jamais refutou o acordo com a burguesia atrasada, permaneceu como gesto abstrato mesmo depois que as condições históricas que possibilitaram seu sucesso desapareceram. Se é certo, como já disse sem meias palavras Otília Arantes, que "nossa festejada tradição moderna em arquitetura sempre alimentou a fantasia de estar na vanguarda da integração das classes", no momento em que essa fantasia se desfez, primeiro em 1964 e, depois, com o processo de globalização, a obra do grande arquiteto passou a girar em falso, como de resto todo o país.
No máximo, lhe restou completar obras que a falência do desenvolvimentismo deixou para trás -como o belo teatro do Ibirapuera, dentro do qual os pobres não são bem-vindos, ou o estupendo projeto do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (RJ). Tomara que o anfiteatro que está sendo construído na Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), traga um novo ponto de início à obra desse centenário herói do melhor e do pior do Brasil.


FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na Universidade de São Paulo.


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