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O herói de duas faces
"Jorge Amado da prancheta", arquiteto reúne em sua obra a utopia e o fracasso da integração social
FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
Brasil já foi o "paraíso dos arquitetos", e nele Niemeyer era o nosso
serafim. E, mesmo quando o paraíso virou inferno, pois no Brasil ambos
habitam o mesmo espaço, ele
continuou a pontificar.
Se os manuais de história da
arquitetura de hoje falam em
"estilo internacional brasileiro", é a Niemeyer -esse Jorge
Amado da prancheta- que
devemos a deferência, assim
como a contradição (uma obra
de apreciação universal definida por sua regionalidade como um "estilo" entre outros).
A arquitetura moderna,
desde seu início com o racionalismo radical do vienense
Adolf Loos ("o ornamento é
um delito"), passando pela
Bauhaus e por Le Corbusier,
voltava-se contra a história
-entendida como continuidade da tradição. Os símbolos do
passado, a fantasia barroca do
decorativismo, deveriam sumir da construção.
O espaço moderno era universalista, racionalista e funcionalista. Suas formas, seus
materiais e a agilidade da
construção serviriam para antecipar a sociabilidade que viria com a revolução (primeiro
burguesa e depois socialista).
A arquitetura era a obra de
arte total, a síntese da emancipação social e cultural que o
modernismo imaginou e que o
cinismo do pós-modernismo,
com sua grotesca racionalização de Las Vegas, aderindo à
lógica do capitalismo-cassino,
iria substituir.
Mas é mesmo de adesões
complicadas que a história da
arquitetura é feita.
Veja-se o caso nacional. O
triunfo espetacular da arquitetura moderna brasileira tem
dois momentos decisivos.
O primeiro se localiza na
época da Semana de Arte Moderna, quando a vanguarda
modernista, surfando na onda
decadente da aristocracia do
café, ataca a mentalidade colonial e propõe dois projetos:
um para o futuro do país (baseado em racionalidade, ordem e integração com a modernidade e, ao mesmo tempo, na redescoberta do passado nacional e de sua vocação)
e outro para o país do futuro
(criar os novos espaços para a
revolução que nos daria uma
nova cultura, de preferência
socialista).
Novo Estado
Em 1929, quando Le Corbusier veio ao Brasil pela primeira vez, a quebra da Bolsa de
Nova York e o rearranjo do capitalismo em frangalhos mudara os quadros mundial e local. Tanto o New Deal nos
EUA quanto o nazifascismo na
Europa ou os planos quinqüenais soviéticos fazem com que
o capital industrial deixe de
ser o "interlocutor" privilegiado da nova arquitetura.
Agora é o Estado, no nosso
caso o Estado Novo, que assume esse papel.
Pois, sem o Estado ditatorial, a introdução da nova arquitetura teria sido feita pelos
canais privados, de modo esporádico, gradual e anárquico.
Pronto o arranjo, com o retorno de Le Corbusier em
1936, a régua para a aventura
de Niemeyer estava dada.
O compasso quem lhe deu
foi o planejamento histórico-nacional de Lucio Costa. De
um lado, a adequação ao "projeto moderno" e às novas tecnologias. De outro, a curva da
linha, a busca do capítulo brasileiro da arquitetura moderna, que foi o seu grande gesto.
Daí chegaria Brasília, a "síntese das artes".
Depois do acordo entre modernistas, socialistas e o Estado autoritário, os democráticos anos 50 trariam os bons
ventos do nacional-desenvolvimentismo, calcado no crédito fácil que a banca internacional, em tempos de Guerra
Fria, dava aos populistas de
centro-direita com os quais os
esquerdistas modernistas
iriam se acertar.
Oferecer ao mundo um projeto inteiro de cidade contrário à centralização militar da
época barroca, ao espírito de
subúrbio pequeno-burguês do
"american way of life" e à selvageria do "laissez-faire" liberal. Uma utopia baseada na
constituição de uma coesão
social conciliadora, mas plena
de calor humano "como na
época da Comuna", diria Mário Pedrosa.
As formas de Niemeyer decoraram espetacularmente essa utopia até que o golpe militar transformasse a paisagem.
O projeto modernista esquerdizante sai de cena. Mas
Niemeyer não. Ele permanece
como ornamento do passado
ou como lembrança de uma
promessa de felicidade, moderna, que não se realizou. Em
resumo: um artista do "estilo"
sensual brasileiro.
Gesto abstrato
O comunismo humanista de
Niemeyer (que não deixa de
ser um formalismo imagético
tão poderoso e ornamental
quanto a retórica do espaço
público que Brasília consumiu), que jamais refutou o
acordo com a burguesia atrasada, permaneceu como gesto
abstrato mesmo depois que as
condições históricas que possibilitaram seu sucesso desapareceram.
Se é certo, como já disse sem
meias palavras Otília Arantes,
que "nossa festejada tradição
moderna em arquitetura sempre alimentou a fantasia de estar na vanguarda da integração das classes", no momento
em que essa fantasia se desfez,
primeiro em 1964 e, depois,
com o processo de globalização, a obra do grande arquiteto
passou a girar em falso, como
de resto todo o país.
No máximo, lhe restou completar obras que a falência do
desenvolvimentismo deixou
para trás -como o belo teatro
do Ibirapuera, dentro do qual
os pobres não são bem-vindos,
ou o estupendo projeto do
Museu de Arte Contemporânea de Niterói (RJ).
Tomara que o anfiteatro que
está sendo construído na Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), traga um novo
ponto de início à obra desse
centenário herói do melhor e
do pior do Brasil.
FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na
Universidade de São Paulo.
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