São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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DOIS DE OURO

Parceria com Lucio Costa foi momento-chave da cultura brasileira, ao implantar o modernismo e preservar os monumentos históricos

LAURO CAVALCANTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O scar Niemeyer e Lucio Costa formaram uma das mais felizes parcerias da cultura brasileira. Juntos enfrentaram os concorrentes conservadores, deram traços próprios ao modernismo brasileiro e constituíram uma nova visualidade para o país. Os acadêmicos defendiam a aplicação de elementos colhidos nos estilos europeus do passado.
Os neocoloniais trocaram a geografia de sua nostalgia: devia-se buscar inspiração nas construções ibéricas do período colonial nas Américas. O movimento agradou aos governantes: Washington Luís plantou monumentos neocoloniais ao longo das estradas paulistas para celebrar o centenário da Independência e, na área federal, o presidente Epitácio Pessoa decretou a sua obrigatoriedade em prédios que representassem o país no exterior.
O modernismo propunha uma nova estética, compatível com os avanços técnicos da época. Poderia ter sido apenas uma das muitas importações, não fosse a genialidade criativa de Niemeyer e a solidez teórica de Lucio Costa, ao articular vanguarda e tradição.
A conquista do mercado público era fundamental, pois as elites e empresas privadas apenas adotavam um estilo depois que tivesse sido experimentado e aprovado em obras estatais. Uma das frestas progressistas do Estado Novo era o Ministério da Educação e Saúde, responsável pela construção do homem futuro. O mesmo governo que prendia Graciliano Ramos aceitava, naquele setor, intelectuais progressistas como Mário de Andrade, Sérgio Buarque, Heitor Villa-Lobos. Manuel Bandeira e Gilberto Freyre.
Em longo e conhecido processo, os acadêmicos e neocoloniais se uniram e venceram o concurso para a nova sede da Educação, com um projeto marajoara, fruto do pretenso legado de uma ocupação grega da Amazônia. Não foi difícil para Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do ministro Capanema, convencê-lo da inadequação do projeto, assimilado ao cenário de um musical da Metro, para abrigar o ministério do futuro do país.

Arranha-céu em vidro
Um grupo chefiado por Lucio Costa, com a consultoria de Le Corbusier e participação decisiva de Oscar Niemeyer, definiu as formas do prédio, cuja importância transcendeu o ambiente brasileiro: foi o primeiro arranha-céu em vidro no mundo, provou a adequação do moderno fora do clima temperado e o libertou dos restritos programas de fábricas, galpões e estações ferroviárias. Era de esperar que adeptos de estilos passadistas fossem encarregados de criar um Serviço de Patrimônio. Não foi o que aconteceu: os modernos conseguiram provar que a sua concepção de arte e história era muito melhor do que a panóplia de pastiches neocoloniais.
Conquistaram os direitos de escolher a produção que passaria a constituir o patrimônio nacional e de criar uma legislação especial para impedir o seu desaparecimento ou descaracterização. Adquiriram, também, a prerrogativa de opinar em construções nos centros históricos e na vizinhança de bens tombados. Na prática, a atuação no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), cujo setor de arquitetura era chefiado por Lucio Costa, lhes conferiu o papel de planejadores não só das cidades antigas mas da área central da maior parte das capitais brasileiras. A idéia de que a boa arquitetura de uma época se coadunava com a boa arquitetura de outra foi um argumento central na defesa que Lucio Costa fez do hotel de Niemeyer em Ouro Preto (MG). O texto do futuro urbanista de Brasília equiparou o modernismo ao barroco, tornando-o adequado, portanto, para preencher vazios em cidades antigas.
Em 1947, o Iphan tombou a igreja da Pampulha, apenas quatro anos depois de seu término, livrando-a da sanha demolidora de campanha liderada pelo arcebispo mineiro, que, em suas curvas e abstrações, via a materialização de coisas do demônio. A única séria derrota dos modernos cariocas foi no ensino. O jovem Lucio Costa ficou apenas um ano à frente da direção da Escola de Belas Artes, graças à violenta oposição dos conservadores. Posteriormente, o seu projeto arquitetônico para a Universidade do Brasil foi recusado, e os conservadores se cristalizaram nos postos da Faculdade de Arquitetura.

Declínio do ensino
O sucesso do movimento moderno não os abalou: sua aulas passaram a difundir um modernismo mal-compreendido, enquanto os verdadeiros eram expelidos: Affonso Reidy foi professor por um brevíssimo período, Sergio Bernardes foi afastado por "falta de didatismo" e Mario Pedrosa teve a sua titularidade negada, com um trabalho internacionalmente reconhecido como uma das mais sólidas e originais contribuições ao estudo da psicologia das formas.
Diferentemente de São Paulo, onde os modernos firmaram uma verdadeira escola na USP, a qualidade da arquitetura produzida pela geração seguinte no Rio de Janeiro muito sofreu com a ausência de um veículo contínuo de transmissão e reprodução dos conhecimentos. A proposta que hoje mais encanta Niemeyer é a da formação de uma escola de arquitetura que, além de tratar dos conhecimentos específicos da construção, propicie uma formação geral e humanista, de modo a melhor qualificar o profissional e libertá-lo das garras de uma excessiva especialização. Será uma correção da história. E o resto será arquitetura...


LAURO CAVALCANTI é arquiteto e professor da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


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