|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Europa versus EUA
Leia trecho inédito de livro do historiador inglês que será lançado no Brasil em maio
TONY JUDT
Considerem uma caneca de café norte-americano. Pode ser
encontrada em qualquer lugar. Pode ser
fabricada por qualquer um. É
barata -e a reposição, gratuita.
Como não tem quase gosto,
pode ser diluída à vontade. O
que lhe falta em encanto é
compensado pelo tamanho. É o
método mais democrático já
inventado para introduzir cafeína em seres humanos.
Agora pensem numa xícara
de café expresso italiano. Exige
equipamento caro.
O preço pelo volume obtido é
chocante, sugerindo indiferença ao consumidor e ignorância
do mercado. A satisfação estética que acompanha a bebida
supera em muito seu impacto
metabólico. Não é uma bebida,
é um artefato.
Esse contraste ajuda a explicar as diferenças entre os EUA
e a Europa -diferenças atualmente destacadas com crescente frequência e alguma aspereza nos dois lados do Atlântico. As críticas mútuas nos são
familiares.
Estagnada
Para os comentaristas norte-americanos, a Europa está "estagnada". Seus trabalhadores,
empregadores e regulamentos
não possuem a flexibilidade e
adaptabilidade de seus equivalentes norte-americanos.
O custo do Estado de Bem-Estar Social europeu e dos serviços públicos são "insustentáveis". A população europeia,
idosa e "mimada", é complacente e pouco produtiva. Num
mundo globalizado, o "modelo
social europeu" é uma miragem
condenada.
A conclusão é típica inclusive
dos observadores "liberais"
norte-americanos, que diferem
dos críticos conservadores (e
neoconservadores) apenas por
não sentirem prazer com isso.
Para um número crescente
de europeus, contudo, são os
EUA que enfrentam problemas, e o "modo americano de
vida" é insustentável.
A busca norte-americana de
riqueza, crescimento e abundância -como substitutos materiais para a felicidade- é esteticamente revoltante e ecologicamente catastrófica. A economia norte-americana se
apoia em areia (mais precisamente, no dinheiro alheio).
Esperança agonizante
Para muitos norte-americanos, a promessa de um futuro
melhor é uma esperança agonizante. A cultura de massa contemporânea dos EUA é esquálida e vendida. Não admira que
tantos norte-americanos se
voltem para a religião, como
consolo. Essas percepções
constituem a real disparidade
atlântica e sugerem que alguma
coisa mudou.
Nas últimas décadas, convencionalmente assumia-se
-com satisfação ou pesar- que
a Europa e os EUA convergiam
para um modelo único de capitalismo tardio "ocidental", no
qual os EUA, como sempre, assumiam a vanguarda.
A lógica e a escala do mercado, baseado em eficiência e lucro, inelutavelmente atropelariam as variações locais e restrições culturais herdadas.
A americanização (ou globalização -os dois são tratados
como sinônimos) era inevitável. A melhor -na verdade, a
única- esperança para produtos e práticas locais era serem
engolidos no redemoinho global e refeitos para se tornarem
commodities "internacionais"
para consumo universal.
Lugares muito diferentes
Portanto, um produto arquetipicamente italiano -caffè espresso- viajaria aos EUA, onde
sofreria uma metamorfose,
passando de preferência da elite a produto popular, para ser
depois reelaborado e vendido
de volta aos europeus por uma
rede de cafés americana.
Mas algo deu errado na história. Não se trata só da inesperada resistência estrangeira que a
Starbucks encontrou ao duplo-decaf-moka-latte-com-canela
(exceto, reveladoramente, no
Reino Unido), nem que europeus politicamente motivados
abominem produtos norte-americanos elitistas.
Está ficando claro que os
EUA e a Europa não são estações na linha de produção histórica, de modo que os europeus devam herdar ou reproduzir a experiência americana
após um período adequado.
Na verdade, são lugares muito diferentes, muito provavelmente evoluindo em sentidos
divergentes. Há inclusive pessoas [...] para quem não é a Europa, e sim os EUA, que estão
presos ao passado.
As peculiaridades culturais
norte-americanas (como são
vistas da Europa) estão bem
documentadas: a religiosidade
marcante do país, seu moralismo seletivo, seu pendor para
armas e prisões (A UE tem 87
presos por 100 mil habitantes;
os EUA, 685) e a adoção da pena
de morte. [...]
Mas são as curiosidades da
economia norte-americana e
seu custo social que atualmente atraem a atenção.
Os norte-americanos trabalham muito mais que os europeus: segundo a Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, um
funcionário norte-americano
típico trabalhou 1.877 horas em
2000, comparado a 1.562 horas
de seu equivalente francês.
Mas algo deu errado; está ficando claro que os EUA e a Europa não são estações na linha de produção histórica
|
Minoria privilegiada
Um americano em três trabalha mais de 50 horas semanais e tira menos férias pagas
que um europeu. [...]
O desemprego nos EUA é
menor do que em muitos países
europeus (como os norte-americanos desempregados perdem logo seus direitos aos benefícios para desempregados e
são retirados dos registros, essa
estatística pode ser enganosa).
Os EUA, ao que parece, são
melhores para criar empregos
que a Europa. Portanto, mais
norte-americanos adultos estão trabalhando, e trabalham
mais do que os europeus. O que
conseguem com seu esforço?
Não muito, a não ser que estejam bem de vida. Os EUA são
um lugar excelente para enriquecer. Nos anos 1980, o executivo-chefe típico americano recebia 40 vezes mais que o operário manufatureiro típico.
Para a faixa mais alta dos
CEOs americanos a proporção
de agora é 475 para 1 [...]. A proporção na Grã-Bretanha é de
24 para 1, na França, 15 para 1 e,
na Suécia, 13 para 1.
Uma minoria privilegiada
tem acesso ao melhor tratamento médico do mundo. Mas
45 milhões de norte-americanos não têm nenhum seguro de
saúde (dos países desenvolvidos, somente os EUA e a África
do Sul não oferecem cobertura
médica universal).
Segundo a Organização
Mundial da Saúde, os EUA são
os primeiros em gastos per capita com saúde -e estão em 37º
na qualidade do serviço.
Como consequência, os norte-americanos têm vida mais
curta do que os europeus ocidentais. A probabilidade de
seus filhos morrerem na infância é maior: os EUA ocupam a
26º posição no ranking dos países industriais, em termos de
mortalidade infantil, com uma
taxa duas vezes maior do que a
da Suécia, maior do que a da Eslovênia e só um pouco à frente
da Lituânia.
E isso ocorre apesar do gasto
de 15% do PIB dos EUA em
"saúde" (em parte sugados pelos custos administrativos de
redes privadas voltadas ao lucro). A Suécia destina apenas
8% de seu PIB à saúde.
O quadro é similar em matéria de educação. [...]
Muito bem, pode-se concluir.
Os europeus são melhores -e
mais justos- na distribuição
dos benefícios sociais. Não chega a ser novidade. Mas não pode haver bens e serviços sem
geração de riqueza, e certamente o capitalismo norte-americano é bom nisso.
E, se há um ponto no qual os
europeus autoindulgentes e
voltados ao lazer precisam melhorar, é a geração dinâmica de
riquezas.
Mas isso deixou de ser tão
óbvio atualmente. Os europeus
trabalham menos: mas, quando
trabalham, usam melhor seu
tempo. Em 1970 a produtividade nos países da atual União
Europeia era 35% mais baixa
do que nos EUA; hoje, a diferença é inferior a 7% e continua
diminuindo rapidamente. [...]
Como modelo econômico,
não há como imitar os EUA.
Como modelo social, ele oferece poucas características redentoras.
Segundo a OMS, os EUA são os primeiros em gastos per capita com saúde -e estão em 37º
na qualidade do serviço
|
A íntegra deste ensaio, que se propõe a discutir
o governo George W. Bush (2001-2009), faz parte do livro "Reflexões sobre um Século Esquecido - 1901-2000", de Tony Judt, que será lançado
pela editora Objetiva em maio deste ano.
Texto Anterior: Físico Stephen Hawking também sofre da doença Próximo Texto: +(a)utores: Aviso aos navegantes Índice
|