São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

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Europa versus EUA

Leia trecho inédito de livro do historiador inglês que será lançado no Brasil em maio

TONY JUDT

Considerem uma caneca de café norte-americano. Pode ser encontrada em qualquer lugar. Pode ser fabricada por qualquer um. É barata -e a reposição, gratuita.
Como não tem quase gosto, pode ser diluída à vontade. O que lhe falta em encanto é compensado pelo tamanho. É o método mais democrático já inventado para introduzir cafeína em seres humanos.
Agora pensem numa xícara de café expresso italiano. Exige equipamento caro.
O preço pelo volume obtido é chocante, sugerindo indiferença ao consumidor e ignorância do mercado. A satisfação estética que acompanha a bebida supera em muito seu impacto metabólico. Não é uma bebida, é um artefato.
Esse contraste ajuda a explicar as diferenças entre os EUA e a Europa -diferenças atualmente destacadas com crescente frequência e alguma aspereza nos dois lados do Atlântico. As críticas mútuas nos são familiares.

Estagnada
Para os comentaristas norte-americanos, a Europa está "estagnada". Seus trabalhadores, empregadores e regulamentos não possuem a flexibilidade e adaptabilidade de seus equivalentes norte-americanos.
O custo do Estado de Bem-Estar Social europeu e dos serviços públicos são "insustentáveis". A população europeia, idosa e "mimada", é complacente e pouco produtiva. Num mundo globalizado, o "modelo social europeu" é uma miragem condenada.
A conclusão é típica inclusive dos observadores "liberais" norte-americanos, que diferem dos críticos conservadores (e neoconservadores) apenas por não sentirem prazer com isso.
Para um número crescente de europeus, contudo, são os EUA que enfrentam problemas, e o "modo americano de vida" é insustentável.
A busca norte-americana de riqueza, crescimento e abundância -como substitutos materiais para a felicidade- é esteticamente revoltante e ecologicamente catastrófica. A economia norte-americana se apoia em areia (mais precisamente, no dinheiro alheio).

Esperança agonizante
Para muitos norte-americanos, a promessa de um futuro melhor é uma esperança agonizante. A cultura de massa contemporânea dos EUA é esquálida e vendida. Não admira que tantos norte-americanos se voltem para a religião, como consolo. Essas percepções constituem a real disparidade atlântica e sugerem que alguma coisa mudou.
Nas últimas décadas, convencionalmente assumia-se -com satisfação ou pesar- que a Europa e os EUA convergiam para um modelo único de capitalismo tardio "ocidental", no qual os EUA, como sempre, assumiam a vanguarda.
A lógica e a escala do mercado, baseado em eficiência e lucro, inelutavelmente atropelariam as variações locais e restrições culturais herdadas.
A americanização (ou globalização -os dois são tratados como sinônimos) era inevitável. A melhor -na verdade, a única- esperança para produtos e práticas locais era serem engolidos no redemoinho global e refeitos para se tornarem commodities "internacionais" para consumo universal.

Lugares muito diferentes
Portanto, um produto arquetipicamente italiano -caffè espresso- viajaria aos EUA, onde sofreria uma metamorfose, passando de preferência da elite a produto popular, para ser depois reelaborado e vendido de volta aos europeus por uma rede de cafés americana.
Mas algo deu errado na história. Não se trata só da inesperada resistência estrangeira que a Starbucks encontrou ao duplo-decaf-moka-latte-com-canela (exceto, reveladoramente, no Reino Unido), nem que europeus politicamente motivados abominem produtos norte-americanos elitistas.
Está ficando claro que os EUA e a Europa não são estações na linha de produção histórica, de modo que os europeus devam herdar ou reproduzir a experiência americana após um período adequado.
Na verdade, são lugares muito diferentes, muito provavelmente evoluindo em sentidos divergentes. Há inclusive pessoas [...] para quem não é a Europa, e sim os EUA, que estão presos ao passado.
As peculiaridades culturais norte-americanas (como são vistas da Europa) estão bem documentadas: a religiosidade marcante do país, seu moralismo seletivo, seu pendor para armas e prisões (A UE tem 87 presos por 100 mil habitantes; os EUA, 685) e a adoção da pena de morte. [...]
Mas são as curiosidades da economia norte-americana e seu custo social que atualmente atraem a atenção.
Os norte-americanos trabalham muito mais que os europeus: segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, um funcionário norte-americano típico trabalhou 1.877 horas em 2000, comparado a 1.562 horas de seu equivalente francês.


Mas algo deu errado; está ficando claro que os EUA e a Europa não são estações na linha de produção histórica


Minoria privilegiada
Um americano em três trabalha mais de 50 horas semanais e tira menos férias pagas que um europeu. [...]
O desemprego nos EUA é menor do que em muitos países europeus (como os norte-americanos desempregados perdem logo seus direitos aos benefícios para desempregados e são retirados dos registros, essa estatística pode ser enganosa).
Os EUA, ao que parece, são melhores para criar empregos que a Europa. Portanto, mais norte-americanos adultos estão trabalhando, e trabalham mais do que os europeus. O que conseguem com seu esforço?
Não muito, a não ser que estejam bem de vida. Os EUA são um lugar excelente para enriquecer. Nos anos 1980, o executivo-chefe típico americano recebia 40 vezes mais que o operário manufatureiro típico.
Para a faixa mais alta dos CEOs americanos a proporção de agora é 475 para 1 [...]. A proporção na Grã-Bretanha é de 24 para 1, na França, 15 para 1 e, na Suécia, 13 para 1.
Uma minoria privilegiada tem acesso ao melhor tratamento médico do mundo. Mas 45 milhões de norte-americanos não têm nenhum seguro de saúde (dos países desenvolvidos, somente os EUA e a África do Sul não oferecem cobertura médica universal).
Segundo a Organização Mundial da Saúde, os EUA são os primeiros em gastos per capita com saúde -e estão em 37º na qualidade do serviço.
Como consequência, os norte-americanos têm vida mais curta do que os europeus ocidentais. A probabilidade de seus filhos morrerem na infância é maior: os EUA ocupam a 26º posição no ranking dos países industriais, em termos de mortalidade infantil, com uma taxa duas vezes maior do que a da Suécia, maior do que a da Eslovênia e só um pouco à frente da Lituânia.
E isso ocorre apesar do gasto de 15% do PIB dos EUA em "saúde" (em parte sugados pelos custos administrativos de redes privadas voltadas ao lucro). A Suécia destina apenas 8% de seu PIB à saúde.
O quadro é similar em matéria de educação. [...]
Muito bem, pode-se concluir. Os europeus são melhores -e mais justos- na distribuição dos benefícios sociais. Não chega a ser novidade. Mas não pode haver bens e serviços sem geração de riqueza, e certamente o capitalismo norte-americano é bom nisso.
E, se há um ponto no qual os europeus autoindulgentes e voltados ao lazer precisam melhorar, é a geração dinâmica de riquezas.
Mas isso deixou de ser tão óbvio atualmente. Os europeus trabalham menos: mas, quando trabalham, usam melhor seu tempo. Em 1970 a produtividade nos países da atual União Europeia era 35% mais baixa do que nos EUA; hoje, a diferença é inferior a 7% e continua diminuindo rapidamente. [...]
Como modelo econômico, não há como imitar os EUA. Como modelo social, ele oferece poucas características redentoras.


Segundo a OMS, os EUA são os primeiros em gastos per capita com saúde -e estão em 37º na qualidade do serviço


A íntegra deste ensaio, que se propõe a discutir o governo George W. Bush (2001-2009), faz parte do livro "Reflexões sobre um Século Esquecido - 1901-2000", de Tony Judt, que será lançado pela editora Objetiva em maio deste ano.


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