São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

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Tentativa de atentado terrorista em voo entre Amsterdã e Detroit, no Natal, faz ressurgir nos EUA tese do "choque de civilizações"

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

A tentativa de atentado terrorista no Natal, no voo da Northwest Airlines entre Amsterdã e Detroit, foi seguida de outro desastre que expôs a grande vulnerabilidade do sistema de contraespionagem americano.
Cinco dias depois do Natal, agentes secretos do primeiro escalão da guerra contra a Al Qaeda foram mortos num atentado suicida na base de Khost, no Afeganistão. No caso do voo da Northwest, ficou provado, como reconheceu publicamente o presidente Obama, que o controle de suspeitos na validação de vistos, venda de passagens e embarque de passageiros para os EUA não funcionou.
Apesar de ter sido denunciado por seu pai a diplomatas americanos na Nigéria, Umar Farouk Abdulmutallab pôde viajar sem embaraços para Detroit. A custosa parafernália de bancos de dados e de equipamentos de segurança instalada nos consulados americanos e nos aeroportos desde o ataque ao World Trade Center precisará ser modernizada.

Agente triplo
Menos espetacular do que o incidente no voo de Detroit, o atentado de Khost revelou que a elite da contraespionagem americana se deixara engrupir por um jordaniano da Al Qaeda, Humam Khalil Abu Mulal Al Balawi, pretenso alcaguete a serviço dos americanos.
"Agente triplo" suicida, na expressão do jornal londrino "The Times", Al Balawi explodiu junto com quatro agentes da CIA -duas mulheres e dois homens-, assim como três agentes da mal-afamada firma de mercenários Blackwater, atualmente denominada Xe.
Na circunstância, a perda americana consistiu na destruição de considerável capital intelectual.
De fato, os agentes assassinados da CIA pertenciam ao primeiro time de especialistas sobre o terrorismo islâmico. Uma das mulheres, cujo nome é mantido em segredo pela imprensa americana, era considerada a maior conhecedora ocidental das redes da Al Qaeda.
Guardando quase tudo na memória, avessos ao trabalho burocrático de redação de relatórios e de fichamento, tais agentes levaram para o túmulo todo um conhecimento prático que levará anos para ser reconstituído pela CIA.
Postos lado a lado, os dois dramas mostram que a segurança americana falhou nas duas pontas: na infiltração das redes terroristas externas e na defesa da segurança interna do país.
A dimensão dos reveses obrigou Obama a voltar mais uma vez à televisão para assumir sua responsabilidade e anunciar novas medidas que intensificam a segurança interna e externa americanas. "Estamos em guerra!", declarou.
Não se trata de simples retórica. Ao lado do envio de mais 30 mil soldados para a guerra aberta no Afeganistão, a CIA intensifica os bombardeios na guerra oculta que seus "drones" (aviões teleguiados) fazem aos redutos da Al Qaeda no Afeganistão, no Paquistão e, talvez, no Iêmen. Os documentos oficiais liberados pela Casa Branca nesta semana e o memorando anexo assinado pelo presidente Obama não mencionam o atentado de Khost, mas sublinham as carências da segurança interna e externa que facilitaram a ação do nigeriano Abdulmutallab.
De imediato, os passageiros dos voos internacionais para os EUA já sofrem as consequências do arrocho das medidas de segurança nos aeroportos.
Atrasos de voos, perdas de correspondência nos percursos domésticos americanos, desconforto e mal-estar para os velhos, as crianças e as pessoas com problemas de locomoção.

Segregação
Aparecem com nitidez os limites da segregação organizada pela clivagem social: tanto na primeira classe como na turística, as viagens aéreas internacionais estão se tornando um estropício.
Obama assumiu seu mandato decidido a virar a página das tensões e das arbitrariedades praticadas pelo governo George W. Bush após o 11 de Setembro. Os acontecimentos das últimas semanas trouxeram de volta a sinistrose que reinava nos EUA naquela época.
Na TV, comentaristas mais exaltados criticam os discursos de apreço aos muçulmanos que o presidente americano fez, no ano passado, em Ancara e no Cairo. De novo, aparecem as teses do "choque de civilizações", do antagonismo frontal entre o Ocidente e o islã. Como será o governo Obama no pós-25 de dezembro?


LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador, professor na Universidade de Paris 4 e autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras). Escreveu este texto quando participava da reunião da American Historical Association, em San Diego, após uma viagem atribulada entre Paris e Califórnia e às vésperas da viagem de retorno.


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