São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

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+(L)ivros

O editor das estrelas

Responsável pelo lançamento de Roland Barthes e Michel Houellebecq, Maurice Nadeau, 98, fala sobre o nº 1.000 da "Quinzaine Littéraire", que edita há 43 anos

LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

Maurice Nadeau tem 98 anos e escreve uma coluna na "Quinzaine Littéraire", o mais importante jornal literário francês, que criou e edita há 43 anos. Sem anunciantes e sem mecenas, a "Quinzaine" é feita por colaboradores famosos que trabalham de graça e repousa sobre a reputação de Nadeau, um mito da edição e da crítica francesa.
Além do jornal, com sede em frente ao Centro Georges Pompidou, ele dirige a editora Maurice Nadeau, na qual só publica o que gosta. Sobrevivendo a todas as crises da imprensa, o número 1.000 da publicação saiu no começo de outubro de 2009.
Ele trabalhou como crítico literário no jornal "Combat", em que Albert Camus [1913-60] era editorialista. Fundou revistas e dirigiu coleções em diversas editoras. Foi Nadeau quem lançou o primeiro livro de Michel Houellebecq ["Extensão do Domínio da Luta", em 1994] quando nenhuma editora se interessava pelo autor. Foi ele quem editou o primeiro livro de Roland Barthes ["O Grau Zero da Escrita", 1953] e quem lançou na França Samuel Beckett, Malcolm Lowry e Henry Miller.
E tirou Sade da seção "Inferno" da Biblioteca Nacional da França, ao publicar uma antologia dos textos do marquês. Sua "História do Surrealismo" é uma referência no assunto, seu "Gustave Flaubert -Un Écrivain" [Gustave Flaubert - Um Escritor] recebeu o Prêmio da Crítica Literária em 1969, suas memórias "Grâces Leur Soient Rendues" [Graças Lhes Sejam Rendidas] tratam de mais de meio século da vida literária francesa.
A seguir, a entrevista exclusiva que Nadeau concedeu à Folha na redação da "Quinzaine Littéraire".

 

FOLHA - Em 1986, quando a "Quinzaine Littéraire" comemorou 20 anos, o sr. disse: "Uma coisa é certa, não estarei na festa dos 40 anos da Quinzaine". Em 2006, o sr. recebeu a intelectualidade parisiense para a festa dos 40 anos. Agora, o sr. comemora o número 1.000. O sr. venceu muitas dificuldades, não?
MAURICE NADEAU
- Muitas. Fazemos 23 números por ano há 43 anos. Nunca pude imaginar. Neste especial, conto como contratei Anne Sarraute, recomendada pela mãe, a escritora Nathalie Sarraute. Estávamos no número três e eu não tinha mais dinheiro. Tinha feito empréstimos. Sua mãe me disse: "Ela tem muito boa vontade e vai ser útil a seu jornal". Anne trabalhava no cinema e queria mudar de atividade. Tinha vivido uma história sentimental e não estava bem.

FOLHA - Apesar da conjuntura, o jornal chegou ao número 1.000...
NADEAU
- Sim, significa muito trabalho, muitas alegrias e muita preocupação. Financeiramente, não é nada fácil, pois não há um grupo de imprensa, não há um mecenas, o jornal não tem publicidade. Mas os articulistas, jornalistas, professores universitários, críticos e escritores de fama internacional trabalham de graça. É o único jornal que tem colaboradores voluntários, fora os jornais de partidos ou religiosos.

FOLHA - Mas eles fazem um jornal que goza de um prestígio especial.
NADEAU
- No número 1.000, eles falam desse trabalho. Em geral, estão satisfeitos com o trabalho aqui. Tudo vai bem, menos as finanças. Estamos sempre no limite. Quando estamos estrangulados, faço um apelo aos leitores e eles respondem. Os assinantes e os leitores são sempre generosos.

FOLHA - Fazem doações?
NADEAU
- Sempre. Há dois anos, recebemos 38 mil em doações para pagar dívidas do jornal. Em 1975, fizemos uma exposição para a "Quinzaine": Miró enviou um quadro de Barcelona, Michaux e Beckett doaram manuscritos. Isso nos permite continuar fazendo o jornal.

FOLHA - A "Quinzaine Littéraire" se inspirou no "Times Literary Supplement" e no "New York Review of Books". Mas ela não tem publicidade e vive das vendas em bancas e de assinaturas. Recebem alguma subvenção do Estado para a cultura?
NADEAU
- Recebemos uma subvenção do Centro Nacional das Letras. Essa subvenção paga um número dos 23 que fazemos por ano. No mês de férias, fazemos apenas um.

FOLHA - Não ter publicidade é uma escolha do jornal ?
NADEAU
- Não, gostaríamos de ter, mas queríamos escolher. A publicidade é sempre uma mentira. Se os pequenos editores quisessem, poderíamos facilitar. Mas não nos procuram. Quanto aos grandes, a "Quinzaine" não lhes interessa por causa da tiragem, não se compara à do "Le Monde" ou à das revistas. Preferem anunciar no "Le Monde", claro, mas também pagam muito mais... No número 1.000, tivemos quatro ou cinco anunciantes.

FOLHA - Qual é a tiragem da "Quinzaine"?
NADEAU
- Temos cerca de 5.000 assinantes e, em bancas, vendemos 10 mil exemplares.

FOLHA - Essa tiragem é constante desde a fundação ou já foi maior?
NADEAU
- Há uma erosão lenta, como na imprensa em geral. Tive colaboradores que hoje estão na internet. Tenho propostas de me associar à internet. É curioso, eles têm necessidade do jornal impresso, de qualquer forma.

FOLHA - No futuro, a imprensa vai se modificar ou vai desaparecer?
NADEAU
- Acho que não vai desaparecer. É estranho ver que o ex-diretor do "Le Monde" fundou um jornal na internet, "Médiapart", que agora quer criar uma versão em papel.
Penso que se descobre que o impresso é mais prático de ler do que uma tela de computador. A primeira experiência do e-book foi um fracasso. Tentam agora algo diferente.
Antes de vir para a redação hoje, recebi uma proposta de um jornalista que tem um programa de rádio e um site e que me propôs uma associação com a "Quinzaine", para tratar de livros seriamente.

FOLHA - Como ele quer se associar à "Quinzaine"?
NADEAU
- Ainda não sei. Acabamos de conversar.

FOLHA - Um leitor que mora fora da França não pode ler o jornal na web?
NADEAU
- Não. Podemos vir a fazer. Pode ser uma coisa boa.

FOLHA - O sr. criou a "Quinzaine" há 43 anos. O que mudou no mundo literário e no mundo da edição?
NADEAU
- No da edição é evidente: no mundo inteiro as pequenas editoras desaparecem, compradas pelos grandes grupos. Ainda existem as pequenas porque é menos caro fazer um livro hoje, com a informática. Mas elas nascem, duram um ano ou dois e desaparecem.

FOLHA - O sr. acha que os franceses leem menos que antes?
NADEAU
- Não sei. Os jovens leem menos. No liceu, têm o celular, o computador. Uma pessoa me contou de alguém que fazia uma tese sobre Montaigne [1533-92] e que leu um dos "Ensaios", entre os 12. Não tinha lido os outros. Mas tenho uma amiga que tem uma livraria que me diz que os jovens compram livros.
Há ainda os que leem, mas há os que ficam grudados nos jogos eletrônicos. Estes estão perdidos para a literatura e os livros.

FOLHA - Como são escolhidos os livros a serem resenhados?
NADEAU
- Recebemos os "press releases". Pedimos os que queremos receber. Eles são expostos numa mesa grande. Toda semana, me reúno com um dos dois grupos de resenhadores: o primeiro inclui historiador, psicanalista, filósofo, crítico de arte. Na semana seguinte, é o grupo que escreve sobre literatura, ensaios literários, poesia, correspondência. Duas vezes por ano, esses dois comitês de redação se encontram para se conhecerem melhor.

FOLHA - É o sr. quem escolhe os livros que serão analisados?
NADEAU
- Sim, mas cada responsável por uma seção dá sua opinião, diz o que pensa, se vale a pena resenhar. Não pergunto sobre as ideias políticas deles, se são judeus, católicos ou protestantes. São pessoas que se encontram aqui, e o jornal é o ponto em comum. Eles são voluntários, como na guerra.

FOLHA - Um jornal revelou que o sr. copiou à mão os livros de Sade, que ficavam bem protegidos no "Inferno" da Biblioteca Nacional da França, para publicá-los logo em seguida. O sr. pode contar essa aventura?
NADEAU
- Foi em 1948. Queria fazer uma antologia e escolhi [os textos] nas obras de Sade da BNF, totalmente proibidas. Quando publiquei, a antologia foi retirada das livrarias na França. A Suíça nem sequer quis receber. E olhe que eu tinha escolhido o que era mais filosófico e menos escandaloso na obra de Sade. Depois disso, Sade se tornou um autor lido e conhecido.

FOLHA - O sr. trabalha muito. Como é o seu dia entre a "Quinzaine" e as edições Maurice Nadeau?
NADEAU
- Trabalho muito, é o que digo a mim mesmo diariamente. De manhã, trabalho para mim, leio e escrevo. À tarde, venho à redação do jornal, onde também fica a editora. Aqui é tudo urgente.

FOLHA - O sr. disse numa entrevista: "Para mim, ler, editar, escrever sobre os livros são o mesmo prazer e o mesmo dever. Não sou um crítico, sou um leitor". Quais são seus outros prazeres?
NADEAU
- Cultivei esses prazeres quando era mais jovem. À noite, assisto na televisão aos programas literários. Só vou ao cinema ver os filmes de amigos que trabalham em cinema.

FOLHA - E os passeios a pé?
NADEAU
- Sim, tento viver sem ter necessidade de uma cadeira de rodas. Vou andar no Jardim de Luxemburgo. Aos domingos, caminho 45 minutos.

FOLHA - Que autores o sr. gosta de reler?
NADEAU
- Tenho alguns desejos que nem sempre posso satisfazer. Releio Montaigne. Sade conheço bem demais, não preciso reler. Releio Flaubert. Cada releitura é diferente. Mas sou obrigado a ler os artigos para publicar na "Quinzaine". Minhas releituras são na casa de campo, durante as férias de verão. Li Tácito neste ano. Tenho uma biblioteca enorme no campo. Durante um mês de férias, mergulho em outras leituras. E caminho também.

FOLHA - O sr. foi comunista e depois trotskista. Qual é o lugar da política em sua vida?
NADEAU
- Não posso mais dizer que sou trotskista. Isso é um modo de vida. Era a militância, distribuir jornais. Não faço mais isso. Não tenho mais o direito de dizer que sou trotskista. Mas fiquei fiel aos fundamentos, Engels e Marx, que releio. Mas sei que era o século 19, o começo da era industrial. Sei que tudo isso acabou, é o econômico que prevalece sobre o político hoje. Vejo a supremacia das finanças sobre tudo o mais. Estamos agora em plena crise financeira.

FOLHA - O sr. acha que Marx está superado?
NADEAU
- Ao mesmo tempo, vemos que tudo é como ele havia dito. Isso é verdade, mas é preciso adaptá-lo a um mundo que mudou.


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