São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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PSICANÁLISE
A psicanalista Catherine Millot fala sobre as lutas pela libertação sexual no século
Felicidade e tirania do sexo

BETTY MILAN
especial para a Folha, de Paris

"A satisfação sexual é a mais forte que o ser humano pode ter", afirma a psicanalista francesa Catherine Millot na entrevista a seguir, em que ela fala sobre os processos de afirmação da sexualidade ocorridos ao longo do século.
Membro da Escola Freudiana de Paris -fundada e dissolvida por Jacques Lacan-, Millot publicou vários livros, entre os quais "Gide Genet Mishima - A Inteligência da Perversão" e "A Vocação do Escritor", sua obra mais famosa.
Para a psicanalista, "a sexualidade de certo modo evoca os partidos totalitários, porque passamos sempre do que é interditado para o que é obrigatório".

Folha - Você escreveu um livro de grande sucesso, "Gide, Genet, Mishima", cujo subtítulo é "A Inteligência da Perversão". Qual é o sentido da palavra "perversão" hoje?
Catherine Millot -
O subtítulo foi escolhido pelo meu editor, Philippe Sollers, porque, desde o início do trabalho, eu queria fazer um elogio à perversão, mas não ousava sustentá-lo publicamente. Temia que as pessoas logo se opusessem ao elogio, invocando o "serial killer", que é um perverso. Ninguém pensaria em Gide, que tornou pública a sua homossexualidade para defender o direito dos homossexuais de serem como são. O procedimento dele teve uma grande repercussão social e foi por causa disso que ele recebeu o Prêmio Nobel. Gide foi explicitamente nobelizado por ser um liberador dos costumes e do espírito.
Folha - Seria possível retomar a questão e analisar o sentido da palavra perversão?
Millot -
A palavra perversão é usada na França para designar a manipulação de uns pelos outros. Por isso o termo aparece muito na política. Quanto a mim, uso-o no sentido dos sexólogos, de Kraft Ebing. No século 19, o termo designava todas as formas de desvio sexual, ou seja, toda prática sexual que não estivesse ligada ao primado da reprodução. Em 1895, nos "Três Ensaios sobre a Sexualidade", Freud mostrou que tal desvio era universal, ou seja, que as práticas perversas servem de preliminares para os heterossexuais. Noutros termos, que a sexualidade humana não é determinada pela procriação. Foi uma idéia subversiva, inteiramente nova.
Folha - Que relação existe entre essa idéia de Freud e a liberação que ocorreu no século 20?
Millot -
Por ter mostrado que a sexualidade humana não é redutível à reprodução, Freud induziu a uma tolerância social maior e favoreceu a aceitação dos homossexuais. Mas ela só ocorreu realmente depois de Maio de 68 e, na França, só quando a esquerda tomou o poder em 1982, porque ela modificou as leis. Quanto à liberação das mulheres, ela também está ligada à separação entre a sexualidade e a reprodução, mas só se tornou possível graças à pílula, que é uma arma de dois gumes.
Folha - Por quê?
Millot -
Porque a procriação se tornou complicada, na medida em que depende de uma decisão. A mulher precisa pedir e o homem aceitar. Ora, a paternidade é angustiante e não é fácil o homem assumir. Em certo sentido, a pílula dificultou a vida das mulheres. Ganharam por um lado e, por outro, perderam. Ademais, as pessoas agora resolvem ter filhos quando já é muito tarde, e as mulheres precisam de assistência médica para procriar. A procriação in vitro é a expressão mais clara da disjunção entre sexualidade e procriação.
Folha - Desde quando a perversão sexual deixou de ser considerada um delito?
Millot -
Se considerarmos as diferentes perversões, existe apenas uma que deixou de ser um delito, a homossexualidade. Na França, isto foi um crime até a Revolução Francesa. Ainda no século 18 há gente queimada em praça pública por causa da sodomia. No código penal de 1810, a homossexualidade com menor de 15 anos leva à cadeia e é punida com trabalhos forçados, caso tenha havido violência. Em 1832, mesmo sem violência, é um ato criminoso. Neste século, a idade passa de 15 para 13 anos. Com o governo de Vichy, há um endurecimento. Qualquer um que satisfaça as suas paixões homossexuais com menores de 21 anos é preso. É durante o governo de De Gaulle que as mulheres são consideradas maiores aos 15 anos e os homens aos 21.
Mas a grande mudança ocorre em 1982, porque, a partir de então, a homossexualidade só passa a ser considerada criminosa se praticada com menor de 15 anos. Por um lado, se estabelece a igualdade entre os sexos e, por outro, se considera que o delito não é a homossexualidade, mas a pedofilia.
Folha - Nos anos 70, o homossexualismo foi assumido publicamente por muitos. O que levou a isso?
Millot -
O militantismo apareceu em 1971. Foucault apoiou a luta dos homossexuais pela igualdade entre eles e os heterossexuais. Folha - E o que você acha do fato de se assumir em público a opção sexual?
Millot -
Há grupos que até fazem propaganda da homossexualidade e outros que são mais reservados. Foucault, por exemplo, nunca declarou que era homossexual, até porque ele considerava que se trataria de uma confissão forçada. A tendência que obriga os homossexuais a tornarem pública a sua preferência sexual é uma tendência tirânica. Muitas pessoas precisam viver a própria sexualidade de forma secreta, a dissimulação pode fazer parte do gozo.
Folha - A liberdade, portanto, consiste em ter o direito de mostrar ou de esconder e nós estamos bem longe disso.
Millot -
Sim.
Folha - Nós falamos da liberação dos homossexuais que precedeu a das mulheres. Gostaria que você falasse da revolução sexual dos anos 60, que diz respeito sobretudo a elas.
Millot -
Passamos da idéia de que as mulheres não tinham vocação para o gozo para a de que têm o direito e o dever do gozo. A revolução sexual dos anos 60 foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que nos liberou do medo da sífilis, e a pílula, que nos liberou do medo da gravidez. Antes da pílula, as mulheres não tinham sossego. A gente corria o risco de ficar grávida e precisava ficar atenta o tempo todo. A pílula apareceu na França em 1965, mas só foi legalizada em 1967. O grande boom da sexualidade foi mesmo em 1968.
Folha - A homossexualidade deixou de ser incriminada e as mulheres foram liberadas para o gozo, mas passamos a estar sujeitas a dois imperativos, o de ter que falar de sexo e o de ter que transar, o que não deixa de ser opressivo. Você diria que nós passamos da repressão para a obrigação?
Millot -
Quem focalizou mais claramente a questão foi Michel Foucault. Na "História da Sexualidade" ele se opôs à idéia que vigorava nos anos 70 de que a sexualidade sempre foi reprimida e de que graças à psicanálise a repressão deixou de existir. Mostrou que a psicanálise nos incitou a falar de sexo continuamente e isso só favoreceu o controle da sexualidade pela Igreja. Para Foucault, a cura analítica não passa de um prolongamento da religião...
A sexualidade de certo modo evoca os partidos totalitários, porque passamos sempre do que é interditado para o que é obrigatório. Nos anos 60 escapamos da repressão imposta às gerações anteriores, mas para ser liberada era preciso dizer sim a todas as propostas masculinas. Do contrário, éramos consideradas retrógradas. As mulheres tinham que dizer sim e, os homens, que responder ao imperativo de ter uma atividade sexual intensa, ao imperativo do gozo. A liberdade sexual na verdade não existe. Ou estamos sujeitos à interdição ou ao imperativo.
Folha - O turismo sexual data dos anos 70 e é decorrente da democratização da viagem. Gostaria de saber se ele tem antecedentes.
Millot -
O turismo de massa começou nos anos 70, mas o turismo sexual já existia antes. Sempre houve gente indo nas férias para países do Sul a fim de ter relações sexuais facilmente. A tradição do turismo sexual existe desde o século 19. Os jovens da burguesia de então costumavam dar uma volta pela Europa. As viagens para a Itália fazem parte dessa tradição. Freud fez até um trocadilho, pois, em alemão, ir para a Itália é "gehen Italien", que lembra "genitalien" -genitália. Gide, por exemplo, partiu com um amigo para a África para perder a virgindade.
Folha - Gide foi um pioneiro da liberação dos homossexuais. Entre as mulheres quem foi?
Millot -
Colette. Uma das personagens dela, Clodine, tinha relações sexuais com a professora e com uma colega. A obra de Colette é atravessada por histórias de homossexualidade feminina. Nunca declarou que era homossexual, mas isso não a impediu de viver a sua homossexualidade e de fazer alusão a isso sob o modo da ficção. Folha - Quais foram os meios pelos quais a sexualidade pôde ser vivida abertamente neste século?
Millot -
Os meios intelectuais e artísticos. Isso se torna evidente quando a gente lê, por exemplo, o "Cahiers de la Petite Dame" (Cadernos da Pequena Senhora), de Maria van Rysselbergh. A "Petite Dame" era uma amiga de Gide, mais velha, com a qual ele coabitou durante muito tempo e que todo dia tomava nota do que ele dizia. Foi testemunha das atividades de sedução de Gide, sobretudo de jovens adolescentes. Ela era de uma tolerância absoluta. Gide seduzia meninos de 13, 14 anos, e ela se divertia com isso.
Outro exemplo é Jean Genet. Logo depois da guerra, esteve ameaçado de prisão perpétua, porque era ladrão e reincidente. Eram pequenos roubos, que hoje seriam considerados insignificantes, como o roubo de um livro, de um lenço... Mas, como ele fazia isso o tempo todo, foi parar na cadeia, e a pena para os reincidentes era a prisão perpétua. Genet foi salvo por Cocteau, que fez com que ele fosse julgado por um juiz tolerante e depois agraciado pelo presidente da República. Ora, Genet era autor de obras pornográficas, como "Nossa Senhora das Flores" ou "Milagre da Rosa", que narram explicitamente relações homossexuais. O fato de ter sido agraciado é uma evidência de tolerância no meio em que ele vivia.
Folha - Na última década fala-se em legalizar a adoção de crianças por homossexuais. O que você pensa da adoção de crianças por um casal homossexual?
Millot -
Eu poderia dizer que é melhor ter como pais um casal tradicional. Isso permite que a criança se estruture mais facilmente do ponto de vista das identificações sexuais, porque há um homem e uma mulher. Mas, quando a gente vê o que acontece com os filhos de casais tradicionais, a gente se diz que talvez não seja pior ser criado por dois homens ou duas mulheres. Em suma, tudo depende da personalidade da criança e do casal. Há crianças que ficam traumatizadas por um quase nada e outras que se adaptam facilmente a qualquer situação.
Folha - O grande boom da liberação sexual foi interrompido pela Aids nos anos 80...
Millot -
Sim, e é preciso considerar que o medo da Aids talvez não seja proporcional ao perigo. Houve um movimento moralista que surgiu em função da sexualidade desenfreada nos meios gays, nos anos 70, nos EUA, terreno no qual a Aids, que já existia de forma incipiente, desenvolveu-se. A retração de hoje também é devida ao fato de que o preservativo implica um pequeno risco. Podemos falar de sexo seguro, mas não de sexo absolutamente seguro. A Aids reintroduziu o risco e o discurso moralizante sobre a sexualidade.
Folha - O século 18 conheceu a liberdade sexual dos libertinos e o século 20 a da revolução sexual. Gostaria que você comparasse essas liberdades.
Millot -
Os libertinos eram minoritários -burgueses, aristocratas ou intelectuais. Já o que caracterizou a liberdade sexual dos anos 60 é que ela foi ampla. Os libertinos tinham um discurso pedagógico e havia também, na libertinagem, uma dimensão de segredo. Nos anos 60, além de uma reivindicação aberta, houve a divulgação por meio da mídia, que desempenhou um papel muito importante.
Folha - O sexo está hoje associado à felicidade. Quando surgiu essa associação e como se explica?
Millot -
Surgiu no século 19. Freud diz que a satisfação sexual é a mais forte que o ser humano pode ter e, portanto, a mais importante para a felicidade, pois esta depende da satisfação.


Betty Milan é psicanalista e escritora, autora de "O Papagaio e o Doutor" (Record) e "A Paixão de Lia" (Globo). A entrevista acima fará parte de seu próximo livro, "O Século", com depoimentos de intelectuais.



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