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PSICANÁLISE
A psicanalista Catherine Millot fala sobre as lutas pela libertação sexual no século
Felicidade e tirania do sexo
BETTY MILAN
especial para a Folha, de Paris
"A satisfação sexual é a mais
forte que o ser humano pode ter",
afirma a psicanalista francesa Catherine Millot na entrevista a seguir, em que ela fala sobre os processos de afirmação da sexualidade ocorridos ao longo do século.
Membro da Escola Freudiana de
Paris -fundada e dissolvida por
Jacques Lacan-, Millot publicou
vários livros, entre os quais "Gide
Genet Mishima - A Inteligência da
Perversão" e "A Vocação do Escritor", sua obra mais famosa.
Para a psicanalista, "a sexualidade de certo modo evoca os partidos totalitários, porque passamos sempre do que é interditado
para o que é obrigatório".
Folha - Você escreveu um livro de
grande sucesso, "Gide, Genet, Mishima", cujo subtítulo é "A Inteligência da Perversão". Qual é o sentido da palavra "perversão" hoje?
Catherine Millot - O subtítulo
foi escolhido pelo meu editor, Philippe Sollers, porque, desde o início do trabalho, eu queria fazer um
elogio à perversão, mas não ousava sustentá-lo publicamente. Temia que as pessoas logo se opusessem ao elogio, invocando o "serial
killer", que é um perverso. Ninguém pensaria em Gide, que tornou pública a sua homossexualidade para defender o direito dos
homossexuais de serem como são.
O procedimento dele teve uma
grande repercussão social e foi por
causa disso que ele recebeu o Prêmio Nobel. Gide foi explicitamente nobelizado por ser um liberador
dos costumes e do espírito.
Folha - Seria possível retomar a
questão e analisar o sentido da palavra perversão?
Millot - A palavra perversão é
usada na França para designar a
manipulação de uns pelos outros.
Por isso o termo aparece muito na
política. Quanto a mim, uso-o no
sentido dos sexólogos, de Kraft
Ebing. No século 19, o termo designava todas as formas de desvio
sexual, ou seja, toda prática sexual
que não estivesse ligada ao primado da reprodução. Em 1895, nos
"Três Ensaios sobre a Sexualidade", Freud mostrou que tal desvio
era universal, ou seja, que as práticas perversas servem de preliminares para os heterossexuais. Noutros termos, que a sexualidade humana não é determinada pela procriação. Foi uma idéia subversiva,
inteiramente nova.
Folha - Que relação existe entre
essa idéia de Freud e a liberação
que ocorreu no século 20?
Millot - Por ter mostrado que a
sexualidade humana não é redutível à reprodução, Freud induziu a
uma tolerância social maior e favoreceu a aceitação dos homossexuais. Mas ela só ocorreu realmente depois de Maio de 68 e, na França, só quando a esquerda tomou o
poder em 1982, porque ela modificou as leis. Quanto à liberação das
mulheres, ela também está ligada à
separação entre a sexualidade e a
reprodução, mas só se tornou possível graças à pílula, que é uma arma de dois gumes.
Folha - Por quê?
Millot - Porque a procriação se
tornou complicada, na medida em
que depende de uma decisão. A
mulher precisa pedir e o homem
aceitar. Ora, a paternidade é angustiante e não é fácil o homem assumir. Em certo sentido, a pílula
dificultou a vida das mulheres. Ganharam por um lado e, por outro,
perderam. Ademais, as pessoas
agora resolvem ter filhos quando
já é muito tarde, e as mulheres precisam de assistência médica para
procriar. A procriação in vitro é a
expressão mais clara da disjunção
entre sexualidade e procriação.
Folha - Desde quando a perversão sexual deixou de ser considerada um delito?
Millot - Se considerarmos as diferentes perversões, existe apenas
uma que deixou de ser um delito, a
homossexualidade. Na França, isto foi um crime até a Revolução
Francesa. Ainda no século 18 há
gente queimada em praça pública
por causa da sodomia. No código
penal de 1810, a homossexualidade
com menor de 15 anos leva à cadeia e é punida com trabalhos forçados, caso tenha havido violência. Em 1832, mesmo sem violência, é um ato criminoso. Neste século, a idade passa de 15 para 13
anos. Com o governo de Vichy, há
um endurecimento. Qualquer um
que satisfaça as suas paixões homossexuais com menores de 21
anos é preso. É durante o governo
de De Gaulle que as mulheres são
consideradas maiores aos 15 anos
e os homens aos 21.
Mas a grande mudança ocorre
em 1982, porque, a partir de então,
a homossexualidade só passa a ser
considerada criminosa se praticada com menor de 15 anos. Por um
lado, se estabelece a igualdade entre os sexos e, por outro, se considera que o delito não é a homossexualidade, mas a pedofilia.
Folha - Nos anos 70, o homossexualismo foi assumido publicamente por muitos. O que levou a
isso?
Millot - O militantismo apareceu em 1971. Foucault apoiou a luta dos homossexuais pela igualdade entre eles e os heterossexuais.
Folha - E o que você acha do fato
de se assumir em público a opção
sexual?
Millot - Há grupos que até fazem propaganda da homossexualidade e outros que são mais reservados. Foucault, por exemplo,
nunca declarou que era homossexual, até porque ele considerava
que se trataria de uma confissão
forçada. A tendência que obriga os
homossexuais a tornarem pública
a sua preferência sexual é uma tendência tirânica. Muitas pessoas
precisam viver a própria sexualidade de forma secreta, a dissimulação pode fazer parte do gozo.
Folha - A liberdade, portanto,
consiste em ter o direito de mostrar ou de esconder e nós estamos
bem longe disso.
Millot - Sim.
Folha - Nós falamos da liberação
dos homossexuais que precedeu a
das mulheres. Gostaria que você
falasse da revolução sexual dos
anos 60, que diz respeito sobretudo a elas.
Millot - Passamos da idéia de
que as mulheres não tinham vocação para o gozo para a de que têm o
direito e o dever do gozo. A revolução sexual dos anos 60 foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que nos liberou
do medo da sífilis, e a pílula, que
nos liberou do medo da gravidez.
Antes da pílula, as mulheres não
tinham sossego. A gente corria o
risco de ficar grávida e precisava
ficar atenta o tempo todo. A pílula
apareceu na França em 1965, mas
só foi legalizada em 1967. O grande
boom da sexualidade foi mesmo
em 1968.
Folha - A homossexualidade deixou de ser incriminada e as mulheres foram liberadas para o gozo,
mas passamos a estar sujeitas a
dois imperativos, o de ter que falar
de sexo e o de ter que transar, o
que não deixa de ser opressivo.
Você diria que nós passamos da repressão para a obrigação?
Millot - Quem focalizou mais
claramente a questão foi Michel
Foucault. Na "História da Sexualidade" ele se opôs à idéia que vigorava nos anos 70 de que a sexualidade sempre foi reprimida e de
que graças à psicanálise a repressão deixou de existir. Mostrou que
a psicanálise nos incitou a falar de
sexo continuamente e isso só favoreceu o controle da sexualidade
pela Igreja. Para Foucault, a cura
analítica não passa de um prolongamento da religião...
A sexualidade de certo modo
evoca os partidos totalitários, porque passamos sempre do que é interditado para o que é obrigatório.
Nos anos 60 escapamos da repressão imposta às gerações anteriores, mas para ser liberada era preciso dizer sim a todas as propostas
masculinas. Do contrário, éramos
consideradas retrógradas. As mulheres tinham que dizer sim e, os
homens, que responder ao imperativo de ter uma atividade sexual
intensa, ao imperativo do gozo. A
liberdade sexual na verdade não
existe. Ou estamos sujeitos à interdição ou ao imperativo.
Folha - O turismo sexual data dos
anos 70 e é decorrente da democratização da viagem. Gostaria de
saber se ele tem antecedentes.
Millot - O turismo de massa começou nos anos 70, mas o turismo
sexual já existia antes. Sempre
houve gente indo nas férias para
países do Sul a fim de ter relações
sexuais facilmente. A tradição do
turismo sexual existe desde o século 19. Os jovens da burguesia de
então costumavam dar uma volta
pela Europa. As viagens para a Itália fazem parte dessa tradição.
Freud fez até um trocadilho, pois,
em alemão, ir para a Itália é "gehen Italien", que lembra "genitalien" -genitália. Gide, por exemplo, partiu com um amigo para a
África para perder a virgindade.
Folha - Gide foi um pioneiro da
liberação dos homossexuais. Entre
as mulheres quem foi?
Millot - Colette. Uma das personagens dela, Clodine, tinha relações sexuais com a professora e
com uma colega. A obra de Colette
é atravessada por histórias de homossexualidade feminina. Nunca
declarou que era homossexual,
mas isso não a impediu de viver a
sua homossexualidade e de fazer
alusão a isso sob o modo da ficção.
Folha - Quais foram os meios pelos
quais a sexualidade pôde ser vivida abertamente neste século?
Millot - Os meios intelectuais e
artísticos. Isso se torna evidente
quando a gente lê, por exemplo, o
"Cahiers de la Petite Dame" (Cadernos da Pequena Senhora), de
Maria van Rysselbergh. A "Petite
Dame" era uma amiga de Gide,
mais velha, com a qual ele coabitou durante muito tempo e que todo dia tomava nota do que ele dizia. Foi testemunha das atividades
de sedução de Gide, sobretudo de
jovens adolescentes. Ela era de
uma tolerância absoluta. Gide seduzia meninos de 13, 14 anos, e ela
se divertia com isso.
Outro exemplo é Jean Genet. Logo depois da guerra, esteve ameaçado de prisão perpétua, porque
era ladrão e reincidente. Eram pequenos roubos, que hoje seriam
considerados insignificantes, como o roubo de um livro, de um
lenço... Mas, como ele fazia isso o
tempo todo, foi parar na cadeia, e a
pena para os reincidentes era a prisão perpétua. Genet foi salvo por
Cocteau, que fez com que ele fosse
julgado por um juiz tolerante e depois agraciado pelo presidente da
República. Ora, Genet era autor de
obras pornográficas, como "Nossa Senhora das Flores" ou "Milagre da Rosa", que narram explicitamente relações homossexuais. O
fato de ter sido agraciado é uma
evidência de tolerância no meio
em que ele vivia.
Folha - Na última década fala-se
em legalizar a adoção de crianças
por homossexuais. O que você
pensa da adoção de crianças por
um casal homossexual?
Millot - Eu poderia dizer que é
melhor ter como pais um casal tradicional. Isso permite que a criança se estruture mais facilmente do
ponto de vista das identificações
sexuais, porque há um homem e
uma mulher. Mas, quando a gente
vê o que acontece com os filhos de
casais tradicionais, a gente se diz
que talvez não seja pior ser criado
por dois homens ou duas mulheres. Em suma, tudo depende da
personalidade da criança e do casal. Há crianças que ficam traumatizadas por um quase nada e outras
que se adaptam facilmente a qualquer situação.
Folha - O grande boom da liberação sexual foi interrompido pela
Aids nos anos 80...
Millot - Sim, e é preciso considerar que o medo da Aids talvez
não seja proporcional ao perigo.
Houve um movimento moralista
que surgiu em função da sexualidade desenfreada nos meios gays,
nos anos 70, nos EUA, terreno no
qual a Aids, que já existia de forma
incipiente, desenvolveu-se. A retração de hoje também é devida ao
fato de que o preservativo implica
um pequeno risco. Podemos falar
de sexo seguro, mas não de sexo
absolutamente seguro. A Aids
reintroduziu o risco e o discurso
moralizante sobre a sexualidade.
Folha - O século 18 conheceu a
liberdade sexual dos libertinos e o
século 20 a da revolução sexual.
Gostaria que você comparasse essas liberdades.
Millot - Os libertinos eram minoritários -burgueses, aristocratas ou intelectuais. Já o que caracterizou a liberdade sexual dos anos
60 é que ela foi ampla. Os libertinos
tinham um discurso pedagógico e
havia também, na libertinagem,
uma dimensão de segredo. Nos
anos 60, além de uma reivindicação aberta, houve a divulgação por
meio da mídia, que desempenhou
um papel muito importante.
Folha - O sexo está hoje associado à felicidade. Quando surgiu essa associação e como se explica?
Millot - Surgiu no século 19.
Freud diz que a satisfação sexual é
a mais forte que o ser humano pode ter e, portanto, a mais importante para a felicidade, pois esta
depende da satisfação.
Betty Milan é psicanalista e escritora, autora de
"O Papagaio e o Doutor" (Record) e "A Paixão de
Lia" (Globo). A entrevista acima fará parte de
seu próximo livro, "O Século", com depoimentos
de intelectuais.
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