São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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POLÍTICA
Para o filósofo francês Alain Bihr ecologia é saída para crise dos movimentos operários
A opção verde

RICARDO ANTUNES
especial para a Folha

No início de 1998, os trabalhadores desempregados na França começaram a exigir do governo Jospin uma divisão mais justa da riqueza socialmente gerada. Anteriormente, em novembro/dezembro de 1995, os assalariados das empresas públicas francesas foram responsáveis pelo mais célebre movimento social dos trabalhadores nos anos 90, que levou à primeira inflexão do neoliberalismo francês. Se estes movimentos sociais foram surpresa para inúmeros sociólogos que vaticinavam o fim do trabalho, o mesmo não se pode dizer de Alain Bihr.
Filósofo, autor de diversos livros e colaborador do "Le Monde Diplomatique", Bihr, particularmente em seu livro "Da Grande Noite à Alternativa - O Movimento Operário Europeu em Crise" (Ed. Boitempo), já no início dos anos 90 oferecia uma densa e abrangente análise dos elementos constitutivos da crise do mundo operário na Europa. Num livro instigante e provocativo, o autor faz uma crítica demolidora às formas tradicionais de estruturação do movimento operário. E foi para falar sobre essas questões que Alain Bihr esteve no Brasil a convite do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Como lembrou o historiador social Michel Ralle, professor da Universidade de Paris 4 que também participou da entrevista, a "grande noite" é uma expressão presente no imaginário social francês que simboliza o crepitar das labaredas, em que privilégios são abolidos... Ainda que no livro de Bihr a referência seja ao Maio de 68, não seria desprovido de sentido dizer que os eventos recentes em Paris têm também significados seminais.

Folha - Em "Da Grande Noite à Alternativa" o sr. tematiza as dimensões profundas da crise do mundo do trabalho europeu. Quais são suas características?
Alain Bihr -
É a de se ser a crise de um modelo bem particular do movimento operário, o chamado modelo social-democrata do movimento operário, desenvolvido pela social-democracia européia desde o século passado, no quadro do qual o movimento operário europeu se formou. Esse modelo se caracteriza em particular pelo privilégio concedido ao exercício do poder do Estado, o que denomino fetichismo de Estado -como meio de transformação social, tanto para os movimentos de tipo reformista, no sentido social-democrata clássico, como também na prática de tipo leninista, que desembocou em regimes que se chamam "socialistas", como na ex-União Soviética ou China.
Durante quase um século, todo o movimento operário se orientou na direção do Estado, considerado como uma alavanca essencial da transformação social. Por outro lado, isso coincidiu, o que explica o sucesso desse modelo, com uma fase de crescimento do capitalismo, praticamente realizado nos marcos do quadro nacional.
A fase do capitalismo na qual entramos agora caracteriza-se pela transnacionalização do capital, que vem tirar do Estado nacional suas capacidades e prerrogativas tradicionais, isto é, sua capacidade de articular e controlar o desenvolvimento econômico nacional. Ao mesmo tempo o movimento operário europeu está privado do seu eixo maior de transformação e de qualquer tipo de estratégia.
Folha - O sr. concorda com essa tese do fim da classe trabalhadora e dos movimentos operários?
Bihr -
Eu acho que a tese à qual o sr. se refere tem alguns aspectos que devem ser explicitados com precisão. Falar do fim do trabalho é um equívoco enorme. Como uma vida social seria possível sem trabalho? É algo que não se pode nem mesmo conceber. Assistimos não ao fim do trabalho, mas a modificações nas formas vigentes de trabalho, nas formas que foram dominantes até recentemente. Modificações que só prolongam tendências bastante antigas, que consistem basicamente naquilo que Marx chamava de substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto. Isto é, fazer trabalhar mais as máquinas e menos os homens.
Os trabalhadores hoje podem ser agrupados, conforme apresento em meu livro, em três grandes conjuntos: 1) os trabalhadores estáveis e com garantias, em fase de redução; 2) os trabalhadores excluídos do mercado de trabalho; e 3) entre esses pólos, há uma massa flutuante de trabalhadores instáveis (terceirizados, trabalho em domicílio, em tempo parcial etc).
A esse primeiro elemento se acrescenta um segundo, que se caracteriza pela redução do trabalho vivo no contexto capitalista. Isto assume necessariamente a forma de uma diminuição de postos de trabalho. Portanto, tem-se uma diminuição do que tradicionalmente se chama de operários.
Como terceiro elemento desse quadro temos que, além da diminuição de postos de trabalho, o próprio conteúdo do trabalho vivo muda. Tomando como exemplo a passagem do fordismo ao toyotismo, isso se traduz por modificações nas qualificações operárias e no conteúdo da força de trabalho.
Além desses temos há um quarto elemento, que é o deslocamento de parte do capital industrial das antigas metrópoles para a periferia mundial. Essa conjugação de fatores tem por consequência a produção de uma crise nas formas tradicionais de organização dos trabalhadores. Esta é a outra razão da crise do movimento operário, além da anterior, caracterizada como vimos anteriormente, pelo fetichismo de Estado.
Isso coloca a questão da capacidade estratégica dos trabalhadores industriais europeus. Para resumir, é evidente que subsiste um proletariado nessas metrópoles centrais e que subsiste um proletariado em nível mundial, o que põe a questão da capacidade subjetiva dos trabalhadores em se manifestar como força social, uma vez que ele carece atualmente tanto de estratégia como também vê questionadas suas formas tradicionais de organização, suas representações culturais, ideológicas etc.
Folha - O sr. critica duramente a visão produtivista presente no movimento operário europeu e a necessidade de ele enfrentar, entre tantas questões, a questão ecológica. Por quê?
Bihr -
Eu acentuo primeiramente a necessidade de os trabalhadores elaborarem uma proposta à crise ecológica, como parte do esforço em resgatar sua capacidade estratégica. Isso porque a crise ecológica interroga, inclusive de um modo fundamental, todas as forças sociais do mundo contemporâneo. O que implica dizer que a construção da capacidade de intervenção do movimento operário passa pelo questionamento do produtivismo tradicional.
Pelas razões mencionadas anteriormente -emprego, deslocamento das indústrias etc-, o movimento operário vai ser levado a defender, como objetivo, a necessidade de trabalhar menos para que todos possam trabalhar, o que coloca em discussão o funcionamento da sociedade em sua totalidade: suas formas de gerir o patrimônio da humanidade, que é a natureza, seus modos de produção e de consumo, os produtos que resultam da atividade econômica, seus meios de produção, suas necessidades, seu modo de vida, suas técnicas e sua ciência.
O desperdício sistemático de matérias-primas, energia e trabalho social resulta da necessidade do capital em submeter o valor de uso a uma produção visando à produção. O movimento operário sob hegemonia social-democrata se mostrou solidário à logica produtivista, reforçada durante o compromisso fordista, uma vez que ele participava do crescimento das forças produtivas da sociedade, contando que os frutos deste crescimento fossem "repartidos". Tudo isso levou à intensificação do produtivismo. E a crítica ecológica pode levar o movimento operário a elaborar uma lógica alternativa contrária ao industrialismo capitalista. Claro que tudo isso acaba por questionar a própria finalidade do modo de produção.
Folha - O movimento operário europeu está hoje mais próximo de um modelo neo-social-democrata ou de uma alternativa para além do capital?
Bihr -
Eu diria que, desgraçadamente, estamos tão longe de um quanto de outro. A forma política que permanece hegemônica, dominante é a forma neoliberal. As diversas propostas de tipo social-democrata que se fizeram na Europa não chamam a atenção das elites dirigentes dos países. Uma alternativa de nível social-democrata só poderá se apresentar ao mesmo tempo em que se apresentar a possibilidade de uma alternativa mais radical, numa fase de retomada das lutas populares. Entretanto, saber quais das duas alternativas vencerá é uma coisa que não se pode dizer a priori. No meu livro eu me limito a fazer uma série de proposições para que uma alternativa radical seja possível. Tanto os objetivos a atingir, a estratégia a adotar como as formas de organização a construir.


Ricardo Antunes é professor de sociologia do trabalho na Unicamp e autor, entre outros, de "Adeus ao Trabalho?" (Cortez/Unicamp), "O Novo Sindicalismo no Brasil" (Pontes).
Tradução de Eurenice Lima.



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