São Paulo, domingo, 10 de março de 2002
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+ livros Dinheiro parindo dinheiro
Em "O Relatório Lugano", Susan George parodia um grupo de financistas
e intelectuais reunidos na cidade suíça para debater o futuro do capitalismo
Pareceu-me de início uma facécia,
gozação, exercício de quebra-cabeça. Como é que nós vamos ajudar a manter o capitalismo no século 21? "Nós", isto é, a patota regiamente bem paga de políticos intelectuais, europeus e norte-americanos, valendo-se
de pseudônimos, que teria se reunido
num ágape em Lugano, aprazível cidade
à beira de um lago suíço durante um ano,
de 1998 a 1999.
À medida que ia prosseguindo a leitura, fui tomado da sensação angustiante
de que estava diante de algo sinistro e cínico, espécie de ciência do mal, embora
não desprovido de um enfoque realístico. Depois li o posfácio e então verifiquei
que a autora deste relatório, redigindo-o
de ponta a ponta, é uma mulher de nome
engraçado, Susan George, nascença norte-americana, vivendo em Paris, pós-graduada na École des Hautes Études,
que trabalhou no Greenpeace e é vice-presidente da Attac [organização francesa antiglobalização", tendo escrito alguns
livros contra a "tirania das transnacionais", portanto situando-se no campo da
esquerda.
Não se trata de obra de ficção, esclarece
a autora, mas sim de quem -com o pé
no chão- escreve assumindo o ponto
de vista dos donos argentários do mundo, entrando na pele ou vestindo a camisa de um George Soros, de um Alan
Greenspan, de um Morgan Stanley, sabedora do que se passa nos dossiês dos
escritórios de Wall Street e da City, ou seja, por dentro do pesadíssimo etos capitalista angloamericano.
É como se, para recorrer a um símile
local, no último verão, eu fosse sendo para isso altamente cacifado a participar
como convidado especial de um simpósio no Copacabana Palace ao lado de um
Pedro Malan, de um Gustavo Franco, de
um Armínio Fraga, com o escopo de levar adiante neste novo milênio a reprodução da feitoria Brasil, "neorraitéqui" e
superecolonizada.
Há dois aspectos interessantes neste livro. O dinheiro, a esbórnia financeira e o cassino do dólar não mantêm nenhuma relação com os bens e serviços. É dinheiro parindo dinheiro, o ocaso do valor de uso das mercadorias, o capital financeiro graúdo desligado da produção de bens e serviços. O outro aspecto diz respeito ao principal inimigo do sistema de mercado aberto: a crise ecológica. O triunfante neoliberalismo corre o sério risco de converter a degradação do ambiente em morte da natureza. A autora refere-se a um "planeta morto". É a destruição capirota da bioesfera. "A natureza é o maior obstáculo de todos para o futuro do sistema de mercado aberto e não pode ser tratado como se fosse um adversário. A mensagem deve ser esta: proteger ou perecer." Quem mais polui a mãe Terra é o hemisfério Norte. São os países ricos que sujam e maltratam a natureza. Chegamos a um ponto-limite com a falta d'água. A desertificação do planeta. Os próximos conflitos bélicos pela posse da água, o líquido precioso. "A guerra parecerá mais com a Ilíada do que com Hiroshima." Meu Deus, nosso Brasil é o maior reservatório de água doce do mundo. "Imperium das Águas", para lembrar o título de um dos livros de J.W. Bautista Vidal sobre a Amazônia. O xará de Apipucos, Gilberto Freyre, definia o homem brasileiro como ser anfíbio. A principal causa do desastre da bioesfera, segundo Susan George, é a queima do petróleo, gás e carvão mineral, ou seja, a economia baseada em combustíveis fósseis, lançando desvairadamente CO2 na atmosfera, de que resultam o efeito estufa, chuva ácida, tormentas, furacões, enfim, a economia dos hidrocarbonetos está levando a natureza ao excesso de entropia e, consequentemente, à morte prematura. As classes dominantes e as inescrupulosas gangues emergentes do capitalismo imperialista em seu estágio globalizado, as chamadas "elites nômades" da grana, não estão nem aí para o perigo de um renascimento do poder neo-soviético ou de alternativas socialistas e revolucionárias pipocando aqui e ali. A sua preocupação obsedante é com o apocalipse ecológico causado pelo uso dos combustíveis fósseis e com o espectro do ineludível esgotamento do petróleo. O salve-se quem puder é pelo controle do moribundo petróleo, vide Trade Center e "Afeganistão War", e não pelo carvão mineral, que não apresenta ainda estertores agônicos, embora sua utilização esteja ecologicamente condenada, conforme o alarme dramático dado pelas trombetas de Kyoto. E, nesse aspecto, é mister consignar que a autora -ao contrário de muitos badamecos em ciências sociais que ignoram os princípios da termodinâmica- não cai na esparrela de supor que do mirabolante avanço tecnológico medrará alguma nova energia bolada pelo G-7, assim como ela recusa a hipótese insana de conceber a tecnologia desvencilhada da natureza e prescindindo das matérias-primas naturais. Diferentemente dos economistas tarados pelo monetarismo, Susan George pensa a economia dentro do universo físico e do fluxo de energia. Sem energia não há nem sequer trabalho, de modo que a tal globalização mostra a olho nu, embora pouquíssima gente a perceba assim, que a questão essencial do nosso tempo é o "locus" energético da geografia, o cenário geopolítico-energético. A economia ancorada nos combustíveis fósseis está em estreita simbiose com as matrizes geográficas dos países situados nas regiões frias e temperadas do planeta. "Destoutro lado do Atlântico", como dizia o filósofo Sílvio Romero, é que se encontra a tábua de salvação para os países ricos em dinheiro falso e decadentes em energia, mas isso não é contudo objeto de cogitação do boreal "Relatório Lugano", o qual se espanta com a imundice dos ratos nas favelas das cidades brasileiras, porém está mui longe de se ocupar da bola da vez dos trópicos e da úmida "América do Sol", como poetou Oswald de Andrade, sem ter no entanto condições em sua época de antever para o século 21 o deslocamento do eixo geopolítico do mundo: do árido Oriente Médio às florestas tropicais. Ou, se se quiser apelar à linguagem sociomística: sai Muhammad e entra em cena Kourupyra. Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros, "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed. Senac). O Relatório Lugano 224 pás., R$ 36,00 de Susan George. Boitempo Editorial (av. Pompéia, 1.991, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3865-9647). Texto Anterior: + livros: Trilhas minadas Próximo Texto: O continente multicultural Índice |
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