São Paulo, domingo, 10 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

O continente multicultural

Em "O Espelho Enterrado" o escritor mexicano Carlos Fuentes propõe uma síntese histórica da identidade hispânica

João Almino
especial para a Folha

A comparação talvez não agradasse a Carlos Fuentes. Mas, depois da morte de Octavio Paz, ele é a figura de maior destaque nos meios culturais mexicanos, sem a dimensão de Paz e também sem ocupar a mesma posição. Romancista, diplomata que, quando criança, viveu no Rio de Janeiro enquanto seu pai trabalhava com o embaixador e escritor Alfonso Reyes, Fuentes tem uma vasta produção literária, que inclui duas obras-primas: "A Morte de Artemio Cruz" e "A Região Mais Transparente". O livro "O Espelho Enterrado", que tem como subtítulo "Reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo", baseia-se numa série para a televisão e tem como marco os 500 anos da chegada dos espanhóis ao Novo Mundo. Fuentes escreve sobre um espelho enterrado aqui e lá "que olha das Américas para o Mediterrâneo, e do Mediterrâneo para as Américas". O que será, para uns, a qualidade deste livro será para outros seu maior defeito. É obra de erudição que passa pelos temas mais distintos, juntando observações passageiras, traços de personalidades, anedotas e curiosidades relacionadas a explicações sobre os grandes processos históricos. Ao tratar da Espanha e da América hispânica, Fuentes dá, de imediato, a impressão de fazer uma colagem em que se inserem símbolos, mitos, obras de arte e fatos históricos. São passados em revista a cultura erudita, as culturas indígenas, a conquista, os movimentos de independência, a revolução mexicana e até a cultura "chicana" nos Estados Unidos -esta a meu ver parcialmente idealizada pelo autor.

Tolerância relativa
O tom é às vezes queixoso, outras, melancólico, mas sempre permeado de uma confiança no futuro, fundamentada na unidade e continuidade da cultura hispânica, uma cultura em si multicultural, resultado da contribuição de iberos, celtas, gregos e fenícios, cartagineses e romanos, godos, árabes e judeus. Os cristãos chegaram no primeiro século e, em 711, veio o islã, para permanecer por quase 800 anos. Destaco duas idéias sugeridas pela leitura do relato feito por Fuentes da formação histórica da Espanha: a da tolerância relativa exercida pelo islamismo; e a do pioneirismo democrático e de direitos civis da Espanha medieval. O islã exigiu respeito para os seguidores do judaísmo e do cristianismo, considerados, juntamente com os próprios islâmicos, "os povos do livro". A intolerância foi praticada pelos cristãos, que perseguiram e, finalmente, em 1492, expulsaram os judeus, forçando-os a seguir para o norte, onde puseram seus talentos a serviço dos protestantes e do capitalismo nascente.


Teremos mais chances de ser modernos, livres para pensar e consolidar nossas democracias, quando a questão de nossa identidade já não nos preocupar tanto


O surgimento do individualismo como democracia decorreu, por sua vez, da luta medieval de resistência dos cristãos à ocupação moura. À medida que avançava sua fronteira, eles elegiam magistrados locais (os "alcaldes") e constituíam assembléias municipais para resolver os assuntos públicos. Em nível mais amplo, o primeiro parlamento espanhol foi convocado pelo rei Afonso 9º, em 1188, antecedendo todos os outros parlamentos europeus. Fuentes mostra, contudo, que a mesma razão que tornara possível a obtenção precoce dos direitos civis fundamentais, ou seja, uma guerra contra outra força militar e religiosa dentro de seu próprio território, lhes podaria o florescimento, em razão do enorme acréscimo de prestígio obtido pela monarquia, uma vez vencida a guerra contra o islã. A guerra medieval contra os mouros permitiu também o desenvolvimento de um individualismo como privilégio feudal, à medida que terras eram distribuídas como recompensa da guerra, um modelo, aliás, seguido nas Américas, onde a recompensa das guerras de independência se converteu numa das bases do poder econômico. Tanto na Espanha quanto nas Américas o barroco é uma espécie de arte de resistência: é a "exceção demasiada e dinâmica", segundo Fuentes, a um sistema religioso e político, inspirado pela rígida Contra-Reforma, preenchendo o vazio entre o ideal e a realidade, que no Novo Mundo era de saque, escravidão e mesmo de genocídio. "A cultura negra do Novo Mundo, como a dos índios, achou sua expressão no barroco", diz ele. Numa das poucas referências ao Brasil, afirma que "o mulato Aleijadinho criou uma obra considerada por muitos a culminação do barroco latino-americano". Ocorre-me que, se de um lado o barroco bem como a realidade política e econômica aproximam o mundo hispânico do lusitano, de outro, de maneira distinta da tradição portuguesa, tal como a entende, por exemplo, Eduardo Lourenço (que tem se referido à negação luso-brasileira do trágico), na Espanha e no mundo hispano-americano existe o culto do trágico. Diz Fuentes que, no canto flamenco, "o destino trágico se apodera de tudo"; e ainda: "Sempre mantivemos viva a margem da tragédia". A tese central e recorrente, embora não tratada de maneira sistemática, é de que a compreensão da continuidade cultural pode "instruir e transcender a desunião econômica e a fragmentação política do mundo hispânico". A inspiração maior parece vir de José Martí, citado no livro: "Para Martí, deveríamos destacar recursos, gente, necessidades, cultura, tradições, extraindo de tudo isso um modelo nacional de progresso. "O governo", escreveu em "Nuestra América", "há de nascer do país'".

Modelos frustrantes
O desafio lançado por Fuentes não é pequeno, pois está em jogo até mesmo a construção de novas utopias ideológico-políticas, distintas do que ele considera como os frustrantes modelos importados de capitalismo ou socialismo. Para ele, a própria modernidade da América Latina também depende dessa adequação da política e da economia à base cultural.
Não seria mau se essa tese da especificidade, que historicamente serviu para justificar o autoritarismo, pudesse agora, como quer Fuentes, estar a serviço da democracia.
Confesso meu ceticismo. Creio, na verdade, que teremos mais chances de ser modernos, social, política e economicamente desenvolvidos, livres para pensar e criar, para construir as instituições e consolidar nossas democracias quando a questão de nossa identidade já não nos preocupar tanto.
O problema não está intrinsecamente em imitar ou deixar de imitar. Depende de "o que". Nunca será mau aprender o que é bom. E sempre será bom desfazer-se de tradições daninhas, por mais nossas que sejam. Não esqueçamos que, sendo nós mesmos, muitas vezes nos perdemos em nosso populismo, em nosso caudilhismo, em nosso autoritarismo especificamente hispano ou luso-americanos. Mas vale a pena ler esse livro, que vai muito além da proposição de teses; que é, na verdade, uma bem escrita introdução à cultura hispânica. Os editores tiveram razão em lhe dar a aparência de um livro de arte. Pena que a qualidade de impressão das reproduções não esteja à altura do projeto e que tenham deixado passar alguns erros de revisão.

João Almino é escritor e diplomata, autor, entre outros livros, do romance "As Cinco Estações do Amor" (ed. Record).


O Espelho Enterrado -
Reflexões Sobre a
Espanha e o Novo Mundo
400 págs., R$ 60,00
de Carlos Fuentes.
Trad. Mauro Gama
Rooco (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar,
CEP 20011-040, RJ, tel 0/xx/21/2507-2000).


Texto Anterior: Dinheiro parindo dinheiro
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.