São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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+ sociedade

Vinculação a culturas e nações, que alavancou a expansão da Igreja Católica nos séculos anteriores, transformou-se hoje em armadilha, responsável por sua perda de fiéis para as religiões pentecostais

O retrovisor polonês

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos 500 anos da descoberta da América (1992), João Paulo 2º veio a Santo Domingo, na República Dominicana, para fazer o discurso de abertura da Quarta Conferência do Episcopado Latino-Americano (CELAM). Natural que nesse ambiente e com essas pessoas a comemoração daquela data virasse celebração do "quinto centenário da evangelização da América". Evangelização católica, "por supuesto". Não perdeu a ocasião, propícia como poucas, para mais uma vez pensar no passado.
Tratava-se de reavivar a memória mítica das origens modernas do nosso continente, aquela que pretende nos dar a certeza de que seu momento fundador foi o "dom da fé católica". Posto em chave mítica, o evento da conquista colonial se transmutava nisso, em "dom da fé católica". E, assim, os destinatários do discurso eram levados a crer que, se o destino da América Latina estava umbilicalmente ligado ao catolicismo, era por uma razão histórica fundamental e fundadora.


Pergunte a igrejas como as evangélicas, no intuito de responder aos desafios do nosso tempo, se elas vão perder tempo com a reevange-lização da cultura


Disse então o papa: "Damos graças a Deus porque na América Latina o dom da fé católica penetrou no âmago de seus povos, conformando nesses 500 anos a alma cristã do continente ("Discurso inaugural do Santo Padre", 09/10/ 1992).
Algumas religiões são diretamente étnicas no sentido de que seu deus é o deus de um povo em particular, de uma etnia. O judaísmo é um bom exemplo. O candomblé, no Brasil, também, até os anos 60.
Em contraste, as principais religiões mundiais concebem-se como abertas em missão universal a toda a humanidade. Se aquelas podem ser classificadas como religiões etnoculturais, de preservação do patrimônio cultural de um povo, essas são ditas universais. Mas não basta abrir-se a outras etnias ou povos para uma religião ser conseqüentemente universal: é universal a religião que interpela as pessoas como indivíduos, não como membros de uma coletividade, seja ela o clã, a tribo, a etnia, a nação, a cultura.

Universal e particular
A palavra "católico" em grego quer dizer universal. Em sua acepção teológica, ela remete à noção de "catolicidade", usada tradicionalmente por todas as confissões cristãs para dizer que a igreja de Cristo é universal, tanto na dimensão planetária, quanto na vocação, que é a sua, de acolher todo o mundo, todos os seres humanos e todos os povos. Assim, catolicidade e universalidade podem dizer a mesma coisa.
Já a palavra "catolicismo" tem uma acepção mais circunscrita, eu diria sociologicamente circunscrita, e designa os fiéis e as instituições ligadas ao cristianismo latino, à igreja católica romana, cujo centro de poder é o Vaticano. Concretamente, portanto, o catolicismo é o conjunto daqueles cristãos e comunidades cristãs que reconhecem a jurisdição do bispo de Roma, também chamado sumo pontífice da Igreja Universal, jurisdição, na verdade, particular a uma forma determinada de cristianismo.
Historicamente, as religiões tenderam a se propagar ou juntas de um grupo étnico ou lingüístico que era seu portador privilegiado ou juntas das fronteiras de uma unidade política particular (que por sua vez podia se definir por uma identidade étnica compartilhada). Muitas vezes, a conversão inicial de uma grande população não era mais que a conversão da elite política ou intelectual que a dominava.
É por isso que a propagação da nova religião avançava, não gradual e molecularmente como hoje, mas a passos largos ou mesmo de chofre, à medida que territórios inteiros eram nominalmente convertidos. "Coge intrare", dizia a consigna celebrizada por Agostinho: "Força a entrar!". O impulso missionário aliado à conquista colonial anexava povos, antes que indivíduos. Foi assim com o catolicismo ibérico quando aqui chegou. Batizava a todos que encontrava independentemente de escolha ou preferência pessoal, que sequer entrava em linha de consideração.
Foi assim que todo brasileiro era católico junto com o Brasil: por colonização política e econômica mas também por colonização cultural, e isso não exigia mais que a submissão a uma ritualidade sacramental puramente exterior. Bastava a fachada.
Não é impossível que religiões de missão universal se tornem guardiãs de uma particularidade nacional. Se a etnicidade pode moldar a religião, a religião compartilhada pode também ser vital na manutenção ou desenvolvimento de uma identidade étnica comum.
Por séculos a fio, os poloneses estiveram sob dominação estrangeira, de uma forma ou de outra. No final do século 18, o reino da Polônia acabou repartido entre seus poderosos vizinhos. Os alemães prussianos eram luteranos; e os russos, ortodoxos. Por efeito de contraste, o catolicismo romano passou a garantir aos poloneses sua especificidade cultural, a lealdade à igreja fundindo-se com a lealdade à nação. Vem de lá o dito popular "Polak-katolik": ser um polonês é ser um católico.
Desde então, à exceção dos judeus, nascer na Polônia é ser católico por destino. E é verdadeiro patriota, como o foi Karol Wojtyla, quem zela pela identidade cultural da nação, católica romana desde o berço.
Meu ponto neste artigo é indicar que a Igreja Católica, não obstante sua reivindicação de universalidade, no decorrer da modernidade acabou montando para si uma verdadeira armadilha, uma espécie de quadratura do círculo, ao conferir à identidade "católica" dos católicos um caráter adscrito de herança cultural coletiva, e esta não pode ser senão particular a certo(s) povo(s) em particular: os povos "católicos por natureza", "católicos desde a origem", "católicos nas raízes".

Inculturação
Nisso, desindividualiza-se o alcance de sua universalidade, pensada agora como estando referida antes de mais nada a povos com suas culturas do que a seres humanos com sua humanidade. E isso vem junto com todo um cortejo de efeitos práticos que repercutem, não por último, na armação de sua principal estratégia para assegurar sua presença na modernidade tardia: a chamada "inculturação".
Ora bem. O universalismo em que se representam os diversos "povos de alma católica" é o oposto do que tem sido cultivado (de resto, com resultados demográficos muito melhores) pelo protestantismo, especialmente em suas formas mais dinâmicas, pentecostais e neopentecostais, ao visar, com sua evangelização, indivíduos estruturalmente disponíveis e subjetivamente dispostos a romper com seus antigos laços de adesão religiosa por nascimento e cultura, herdada não por opção pessoal. Hoje parece provado com fatos e cifras que é somente na medida em que visa indivíduos, e não grupos ou nações, com suas culturas identitárias (ainda que imaginárias), que uma religião dita universal consegue ser, plenamente e com sucesso, religião de conversão.

Saia justa católica
Isso significa que o potencial de difusão das religiões se ressente seriamente do modo como suas estratégias de evangelização favorecem mais ou menos o estreitamento teórico de sua visada universalista. A meu ver, na catolicidade do catolicismo romano há fortes componentes de holismo culturalista que favorecem tal estreitamento.
Uma das saias justas do catolicismo atual é essa sua renovada insistência em querer "evangelizar as culturas", pretensão que hoje se resume na seguinte palavra de ordem teológica, mas de inspiração etnológica -"inculturação". Disse o papa: "Nos nossos dias, torna-se necessário um esforço e um tato especial para inculturar a mensagem de Jesus (...), possibilitando a consolidação de uma cultura cristã, que unifique os valores históricos, passados e presentes, para assim responder de modo adequado aos desafios do nosso tempo" (encíclica "Redemptoris Missio", 1991: 52).
Pergunte se qualquer uma das igrejas de conversão puramente individual, como as evangélicas, no intuito de responder aos desafios do nosso tempo, vai lá perder tempo com a reevangelização da cultura! E, no entanto, são elas as que mais crescem nessas "nações católicas" que se estendem de norte a sul da "América católica", não sem desde logo alcançar em plena "América protestante" os novos imigrantes de origem hispânica ou brasileira, culturalmente católicos, mas já agora postos em franca disponibilidade para uma conversão provavelmente evangélica -apostasia que não cessa de multiplicar-se, minando por baixo e por dentro os "povos culturalmente católicos" que o discurso pastoral de João Paulo 2º não se cansava de contemplar, envaidecido, em seu embaçado retrovisor polonês.

Antônio Flávio Pierucci é sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor de "A Magia" (Publifolha) e "O Desencantamento do Mundo" (34), entre outros livros.


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