São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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O sociólogo francês Henri-Pierre Jeudy, que faz conferência em SP na terça e lança em junho "O Espelho das Cidades", diz que as aparências corporais realizam uma encenação permanente das fantasias do indivíduo

O teatro efêmero do corpo

JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O corpo está aberto para debate. Sociólogo do Centro National de Pesquisa Científica (Paris) e professor de estética na Escola de Arquitetura de Paris-Villemin, Henri-Pierre Jeudy dedica-se ao estudo do poder semântico do corpo há muitos anos e já publicou dois livros sobre o assunto: "O Corpo como Objeto de Arte" (Estação Liberdade) e "Le Corps et Ses Stereotypes" (O Corpo e Seus Estereótipos, 2001).
Jeudy está lançando agora no Brasil "O Espelho das Cidades".
Depois de amanhã, às 20h, Jeudy realiza a conferência de abertura de "Corpo Representado", no Instituto Itaú Cultural (tel. 0/xx/11/ 2168-1776), em São Paulo, seminário que integra o evento "Corpo". Este compreende uma mostra de artes visuais e uma programação de performances e espetáculos de dança, além de diversas palestras e mesas-redondas para investigar este enigmático "gerador de conceitos e modos de expressão da sociedade contemporânea", conforme se apresenta o debate no material de divulgação.
Mas convém deixar de lado preconceitos: o corpo não é tema para as obras nem para a exposição, e também não se trata de aproveitar a "moda" das epidêmicas cirurgias plásticas. O debate é mais sério, como mostra Jeudy nesta entrevista feita por e-mail.
 

Folha - O senhor poderia explicar o que entende por "imagem corporal" e "representação do corpo"?
Henri-Pierre Jeudy -
Toda pessoa representa seu corpo ora com prazer, ora com certa inquietação, quando este já dá sinais de envelhecimento. Mas essa auto-representação é, felizmente, perturbada por miríades de imagens corporais imprevisíveis. Existe uma antinomia entre a estabilidade da representação de nossas aparências corporais e a potência acidental da irrupção de imagens das quais o corpo é justamente o teatro permanente.
Essas imagens estão ligadas a nossas fantasias mas também à imediaticidade do real, ao que nos acontece e que não podemos prever. Além disso, essas imagens ignoram o tempo, elas surgem de maneira incongruente até nossa morte.

Folha - Em "O Corpo como Objeto de Arte", o sr. parece sugerir uma equivalência entre a "alteridade" e o "corpo estranho". Se o estranho é o "outro", qual é a relação entre o sujeito e si mesmo e com seu próprio corpo? Como vê os fenômenos da "abjeção" e do "disforme" no campo artístico?
Jeudy -
O que nos é familiar pode parecer subitamente estranho. Nosso próprio corpo não pára de nos surpreender. Para mim, a experiência da alteridade começa em nós mesmos porque ela também é a descoberta de uma estranheza radical.
Meu corpo é habitado por outros corpos, ele é heterônimo. Sua aparente unidade se divide, pois sou sempre suscetível de me ver de uma maneira que não sou. E o olhar dos outros me incita a ver-me de modo diferente. Esse fenômeno de cissiparidade pode provocar distúrbios psíquicos, mas persiste como uma riqueza misteriosa do corpo.
A monstruosidade, a abjeção que os artistas e os escritores põem em cena nos revelam o quanto nosso corpo é capaz de exprimir o pior, segundo uma aparência puramente estética. Eles não mostram somente o outro de nós mesmos que não queremos ver mas sobretudo a aventura psíquica e orgânica do "corpo desmembrado". Tirando sua força de expressão do que é disforme, a arte dá forma à estranheza, mesmo a mais monstruosa, do corpo.
Para o artista, a obscenidade está ligada ao fato de "representar a si mesmo para si mesmo", quando o corpo, como em muitas performances, só mostra a si próprio.

Folha - O sr. afirma que o corpo não pode existir como objeto de arte porque está em eterna metamorfose. O que acha das obras de arte que estão em eterna metamorfose, como as obras efêmeras, aquelas em decomposição ou as que são constantemente atualizadas?
Jeudy -
A idéia do corpo como objeto de arte é, em primeiro lugar, um desafio! Como em várias cidades do mundo, homens ou mulheres vivos tomam o lugar de estátuas e assim nos mostram que os mil movimentos do corpo são percebidos a partir da imobilidade absoluta, da petrificação. O corpo existe de maneira acidental como objeto de arte.
O que é surpreendente é a maneira como percebemos nosso corpo e o dos outros por meio de referências emprestadas à arte e à literatura. E os obcecados pela beleza buscam sempre, pela cirurgia estética, a referência a modelos. Ora, a metamorfose do corpo permanece perpétua, às vezes até imperceptível. O que muitas obras de arte contemporâneas nos mostram é a maneira como o efêmero está no centro da aparente estabilidade de nossas representações do corpo. O efêmero é um sinal de vida, e não um sinal de morte. A própria decomposição é um movimento natural do corpo, não é o sinal de uma decrepitude inescapável.

Folha - Qual é o futuro da performance em um contexto de estereótipos e das "superofertas" culturais?
Jeudy -
A performance pode, hoje, parecer um estereótipo cultural, mas isso não é pejorativo. Temos necessidade desses estereótipos que circulam pela exibição dessas aventuras do corpo. Com a performance, o corpo torna-se uma narrativa, torna-se uma linguagem pública que nos fascina.
A performance é uma realização da "feira de estereótipos", ela nos oferece um espelho de mil faces "do que o corpo é capaz" (Espinosa). Mesmo aparecendo cada vez mais como uma convenção cultural, a performance continua a nos interrogar justamente sobre o poder cotidiano de nossos próprios hábitos culturais.

Folha - Lygia Clark aparece em seu livro associada aos "rituais da metamorfose". O senhor conhece mais da arte contemporânea brasileira?
Jeudy -
Em meu livro, falo de uma antiga performance de Lygia Clark, intitulada "Baba Antropofágica". A cena era apresentada como um ritual em que o corpo dos "acavalamentos-baba" reativa em nós o animal autêntico, além do humano, e não aquém. A performance em geral é um ritual cultural, uma metamorfose que faz reaparecer tudo o que ocultamos de nosso corpo, de suas origens orgânicas. O que sempre me seduziu no Brasil foi o longo percurso desse conceito "antropofágico" da arte, que permite entender que as culturas se comem mutuamente. É mais interessante, me parece, do que a idéia de "sincretismo cultural" desenvolvida pelos antropólogos ocidentais. A antropofagia cultural envolve um jogo de tensão, de absorção, de digestão, de rejeição, comparável aos próprios movimentos do corpo, a sua metamorfose. Mas hoje, no Brasil, uma das questões que se colocam à arte contemporânea é saber como essa tradição antropofágica pode produzir novas experiências artísticas ou como ela pode escapar da espetacularização de que é objeto.
Eu gosto muito de Hélio Oiticica porque ele sempre extraiu da vida cotidiana, do real como ele é, suas idéias criativas, sem manifestar a menor demagogia popular. Isso é muito raro numa época em que a arte faz funcionalismo social.
Enfim, conheço o trabalho de Alexandre Vogler, que expôs cartazes de nádegas cheias de celulite para criticar a histeria contemporânea da cirurgia estética. E essas nádegas, que não eram regulares do ponto de vista das normas estéticas, seduziram o olhar de muitos cidadãos. Conheço também as performances de Alexander Hamburger.


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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