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+ sociedade
Programas de TV como o holandês "Big Brother" e o francês "Loft Story" criam um laboratório de convívio sintético que faz da nulidade o verdadeiro espetáculo
Banalidade mortífera
por Jean Baudrillard
Toda a nossa realidade se tornou
experimental. Na ausência de destino, o homem moderno está entregue a uma experimentação sem
limites sobre si mesmo. Duas ilustrações
recentes: uma, o programa "Loft Story"
(1), da ilusão da realidade ao vivo na mídia; outra, Catherine Millet (2), da ilusão
fantasmática do sexo ao vivo.
O loft se tornou um conceito universal,
uma condensação de parque de diversões humano, gueto, "huis clos" e "Anjo
Exterminador". A reclusão voluntária
como laboratório de um convívio sintético, de uma socialidade telegeneticamente modificada.
É então, quando tudo é mostrado (como em "Big Brother", nos "reality
shows" etc.), que percebemos que não há
mais nada a ver. É o espelho da platitude,
do grau zero, onde se comprova, contrariando todos os objetivos, o desaparecimento do outro e talvez mesmo do fato
de que o ser humano não é fundamentalmente um ser social. O equivalente a um
ready-made -transposição exata da vida de todo dia, ela mesma já falsificada
por todos os modelos dominantes. Banalidade sintética, fabricada em circuito
fechado e sob tela de controle.
Nisso o microcosmo artificial do loft é
parecido com a Disneylândia, que dá a
ilusão de um mundo real, de um mundo
exterior, enquanto os dois são exatamente idênticos. Todos os Estados Unidos são uma Disneylândia, e estamos todos no loft. Não é preciso entrar no duplo virtual da realidade, já estamos nele
-o universo televisual é apenas um detalhe holográfico da realidade global. Até
em nossa existência mais cotidiana já estamos numa situação de realidade experimental. E é aí que surge o fascínio por
imersão e por interatividade espontânea.
Trata-se de voyeurismo pornô? Não.
O sexo está em qualquer lugar, mas
não é isso que as pessoas querem. O que
elas querem profundamente é o espetáculo da banalidade, que hoje é a verdadeira pornografia, a verdadeira obscenidade: a da nulidade, da insignificância e
da platitude. No extremo oposto do Teatro da Crueldade. Mas talvez exista aí
uma forma de crueldade, pelo menos
virtual. No momento em que a televisão
e a mídia são cada vez menos capazes de
prestar conta dos fatos (insuportáveis)
do mundo, elas descobrem a vida cotidiana, a banalidade existencial como o
acontecimento mais mortífero, como a
atualidade mais violenta, o próprio local
do crime perfeito. O que é, na verdade. E
as pessoas ficam fascinadas, fascinadas e
aterrorizadas pela indiferença do nada-a-dizer, nada-a-fazer, pela indiferença de
sua própria existência. A contemplação
do crime perfeito, da banalidade como
novo rosto da fatalidade, tornou-se uma
verdadeira disciplina olímpica ou o último avatar dos esportes radicais.
Dois tabuleiros Tudo isso reforçado
pelo fato de que o próprio público é mobilizado como juiz, que ele mesmo se torna Big Brother. Estamos além do panóptico, da visibilidade como fonte de poder
e de controle. Não se trata mais de tornar
as coisas visíveis a um olhar exterior, mas
de torná-las transparentes a si mesmas,
por perfusão do controle na massa e apagando imediatamente os vestígios da
operação. Assim os espectadores são envolvidos em uma gigantesca contratransferência negativa sobre si mesmos,
e, mais uma vez, é daí que vem a atração
vertiginosa desse tipo de espetáculo.
No fundo tudo isso corresponde ao direito e ao desejo imprevisível do ser imprescritível. De não ser nada e de ser visto como tal. Há duas maneiras de desaparecer: ou exigimos não sermos vistos
(é a problemática atual do direito à imagem) ou caímos no exibicionismo delirante de nossa nulidade. Tornamo-nos
nulos para ser vistos e considerados como nulos -proteção definitiva contra a
necessidade de existir e a obrigação de
ser.
Daí a exigência contraditória e simultânea de não ser visto e de ser perpetuamente visível. Todo mundo joga nos dois
tabuleiros ao mesmo tempo, e nenhuma
ética ou legislação pode elucidar esse dilema: o do direito incondicional de ver e
aquele, igualmente incondicional, de
não ser visto. A informação máxima faz
parte dos direitos humanos, portanto
também a visibilidade forçada, a superexposição às luzes da informação.
A expressão de si mesmo como forma
extrema de confissão, de que falou Foucault. Não guardar nenhum segredo. Falar, falar, comunicar incansavelmente.
Essa é a violência feita ao ser singular e a
seu segredo. E ao mesmo tempo é uma
violência feita à linguagem, pois a partir
daí ela também perde sua originalidade,
não é mais que um meio, um operador
de visibilidade, perde qualquer dimensão irônica ou simbólica quando a linguagem é mais importante do que aquilo
que se diz.
E o pior nessa obscenidade, nesse despudor, é a participação forçada, essa
cumplicidade automática do espectador,
que é resultado de uma verdadeira chantagem. É esse o objetivo mais claro da
operação: o servilismo das vítimas, mas
o servilismo voluntário, aquele das vítimas que gozam a dor que lhes causam, a
vergonha que lhes impõem. A participação de toda uma sociedade em seu mecanismo fundamental: a exclusão interativa, é o cúmulo! Decidida em comum,
consumida com entusiasmo.
Se tudo acaba na visibilidade, que, assim como o calor na teoria da energia, é a
forma mais degradada de existência, entretanto o ponto crucial é conseguir
transformar essa perda de todo o espaço
simbólico, essa forma extrema de desencanto com a vida, num objeto de contemplação, de sideração e de desejo perversos. "A humanidade que um dia com
Homero foi objeto de contemplação para os deuses olímpicos hoje o é para si
mesma. Sua alienação de si própria atingiu um grau que a faz viver sua própria
destruição como uma sensação estética
de primeira ordem" (Walter Benjamin).
Duplo contra-senso O experimental substitui assim em toda a parte o real e
o imaginário. Em toda a parte os protocolos da ciência e da verificação nos são
inoculados, e estamos a ponto de dissecar, em vivissecção, sob o escalpelo da
câmera, a dimensão relacional e social,
fora de qualquer linguagem e contexto
simbólico.
Catherine Millet também é experimental, outro gênero de vivissecção: todo o
imaginário da sexualidade é descartado,
resta apenas um protocolo em forma de
verificação ilimitada do funcionamento
sexual, de um mecanismo que no fundo
não tem mais nada de sexual.
Duplo contra-senso: o de transformar
a própria sexualidade em referência final. Reprimida ou manifestada, a sexualidade é no máximo uma hipótese e, enquanto hipótese, é falso transformá-la
em uma verdade e uma referência. A
própria hipótese sexual talvez seja apenas uma fantasia, e de qualquer modo é
na repressão que a sexualidade assumiu
essa autoridade e essa aura de atração estranha -quando manifesta, ela perde
até essa qualidade potencial; daí o contra-senso e o absurdo da passagem ao
ato e de uma "liberação" sistemática do
sexo: não se "libera" uma hipótese.
Quanto a demonstrar o sexo por meio
do sexo, que tristeza! Como se tudo não
estivesse no deslocamento, no desvio, na
transferência, na metáfora: tudo está no
filtro da sedução, no desvio, não no sexo
e no desejo, mas no jogo com o sexo e o
desejo. É isso que de qualquer maneira
torna impossível a operação do sexo "ao
vivo", assim como a morte ao vivo ou o
acontecimento ao vivo na informação
-tudo isso é incrivelmente naturalista.
É a pretensão de fazer tudo ocorrer no
mundo real, atirar tudo numa realidade
integral. E em algum lugar isso é a própria essência do poder. "A corrupção do
poder é inscrever no real tudo o que era
da ordem do sonho..."
A chave nos é dada por Jacques Henric
em sua concepção da imagem e da fotografia: é inútil ocultar a face, nossa curiosidade pelas imagens é sempre de ordem
sexual -tudo o que buscamos nelas é
afinal o sexo e muito especialmente o sexo feminino. Aí está não apenas o quadro "Origem do Mundo" (Courbet), mas
a origem de todas as imagem. Portanto,
vamos em frente sem desvios e fotografemos essa única coisa, obedeçamos sem
entraves à pulsão escópica! É esse o princípio de uma "realerotik", cujo "acting-out" copulativo perpétuo de Catherine Millet é o equivalente para o corpo: já
que afinal aquilo com que todo mundo
sonha é o uso sexual ilimitado do corpo,
passemos sem desvios à execução do
programa!
Nada mais de sedução, nada mais de
desejo ou mesmo de gozo, tudo está lá,
na repetição inumerável, num acúmulo
em que a quantidade teme acima de tudo
a qualidade. Sedução prescrita. A única
pergunta que gostaríamos de fazer é
aquela que o homem murmura ao ouvido da mulher durante uma orgia.
Ela está na verdade além do fim, lá onde todos os processos ganham um ritmo
exponencial e só podem se duplicar indefinidamente. Assim como para Jarry
em "Le Surmâle", uma vez atingido o limite crítico no amor, podemos fazê-lo
indefinidamente, é o estágio automático
da máquina sexual. Quando o sexo não
passa de um "sex-processing", se torna
transfinito e exponencial. Mas não atinge
sua meta, que seria esgotar o sexo, chegar
ao fim de seu exercício. Isso é evidentemente impossível. Essa impossibilidade
é tudo o que resta de uma vingança da sedução ou da própria sexualidade contra
seus operadores sem escrúpulos -escrúpulos por si mesmos, por seu próprio
desejo e por seu próprio prazer.
"Pensar numa mulher tirando o vestido", diz Bataille. Sim, mas a ingenuidade
de todas as Catherine Millet é pensar que
tiramos o vestido para nos despir, para
nos desnudar e assim alcançar a verdade
nua, a do sexo ou a do mundo. Se tiramos o vestido, é para parecer não aparecer nua como a verdade, mas para nascer
no reino das aparências, isto é, da sedução -o que é exatamente o contrário.
Contra-senso total dessa visão moderna e desencantada que considera o corpo
como um objeto que só espera ser despido e o sexo como um desejo que só espera passar ao ato e gozar. Enquanto todas
as culturas da máscara, do véu, do ornamento dizem exatamente o contrário: dizem que o corpo é uma metáfora e que o
verdadeiro objeto de desejo e de gozo são
os signos, as marcas que o arrancam de
sua nudez, de sua naturalidade, de sua
"verdade", da realidade integral de seu
ser físico. Em toda a parte é a sedução
que arranca as coisas de sua verdade (incluindo sua verdade sexual). E, se o pensamento tira a roupa, não é para se revelar nu, não é para desvelar o segredo daquilo que até então estaria oculto, é para
fazer surgir esse corpo como definitivamente enigmático, definitivamente secreto, como objeto puro cujo segredo jamais será levantado, nem tem como ser.
Nessas condições, a mulher afegã de
"moucharabieh", a mulher engaiolada
na capa da revista "Elle" fazem as vezes
de alternativa ruidosa a essa virgem louca de Catherine Millet. O excesso de segredo contra o excesso de despudor.
Aliás, esse próprio despudor, essa obscenidade radical (como a de "Loft
Story"), é mais um véu, o último dos
véus intransponíveis, aquele que se interpõe quando acreditamos tê-los rasgado todos. Desejaríamos alcançar o pior,
o paroxismo da exibição, o desnudamento total, a realidade absoluta, ao vivo
-e ao dilacerado vivo não chegamos
nunca. Nada a fazer, o muro do obsceno
é intransponível. E paradoxalmente essa
busca inútil ressalta ainda mais a regra
fundamental do jogo: a do sublime, do
segredo, da sedução, a mesma que buscamos até a morte na sucessão de véus
rasgados.
O que "Loft Story" pretende demonstrar é que o ser humano é um ser social, o
que não é garantido. O que Catherine
Millet pretende demonstrar é que ela é
um ser sexuado, o que também não é de
modo nenhum garantido. O que se verifica nessas experimentações são as próprias condições da experimentação, simplesmente levadas a seu limite. O sistema
se decodifica à perfeição em suas extravagâncias, mas é o mesmo em toda parte.
A crueldade é a mesma em toda a parte.
Tudo isso afinal se resume, para lembrar
Marcel Duchamp, a um "levantamento
de poeira".
Notas
1. Programa transmitido pelo canal de TV francês
M6 que mostra o cotidiano de onze jovens vivendo em um loft;
2. Autora de "La Vie Sexuelle de Catherine M." (A
Vida Sexual de Catherine M., ed. Seuil), em que
descreve encontros sexuais que manteve com
centenas de anônimos. Seu companheiro, Jacques Henric, lançou o livro de fotos "Légendes de
Catherine M." (Lendas de Catherine M., ed. Denoël), em que retrata a escritora nua e lhe vota sua
admiração, citando Espinosa, Bataille etc.
Jean Baudrillard é filósofo francês, autor de, entre outros, "A Transparência do Mal" (ed. Papirus)
e "As Estratégias Fatais" (ed. Rocco). A íntegra deste texto foi publicado no jornal "Libération".
Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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