São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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De uma tortura a outra

Jacques Rancière

Com o que nos indignamos hoje e que rosto conferimos ao intolerável? Algumas semanas atrás, a França era sacudida pelo retorno de um recalque não muito antigo. Um general, comandante dos serviços especiais franceses durante a Guerra da Argélia, revelava em livro o detalhe das torturas sistematicamente praticadas pelos especialistas da informação contra os suspeitos. Revelar é dizer muito. Faz mais de 40 anos que escritores e docentes tomaram da pluma para denunciar os métodos dos serviços especiais. Seus livros foram então perseguidos ou proibidos, e os governos, socialista, depois gaullista, que moviam na época a guerra na Argélia, trataram continuamente essas revelações como fábulas destinadas a desmoralizar as tropas e a nação em proveito da insurreição argelina.
Assim, hoje não podemos senão achar cômicas as declarações horrorizadas de Jacques Chirac ou dos ministros socialistas, indignando-se contra esse abominável torturador, que não fora mais que um executor da política liderada pelos chefes de Estado ou de governo de que eles são os herdeiros.
Todos os que denunciaram na época a tortura na Argélia não se furtaram a dizer que a questão não dizia respeito às ações de um militar perverso, mas à política de um Estado, à política da razão de Estado que justifica tudo e do segredo do Estado que tudo acoberta.
Essa "revelação" de um segredo amplamente conhecido põe os governos de hoje, filhos daqueles de ontem, numa posição desconfortável. Felizmente, os potenciais públicos de indignação logo se iriam fixar num objeto de escândalo bem diverso, um objeto de escândalo do nosso tempo. Uma televisão privada francesa lançou, segundo o modelo do "Big Brother" holandês, já aclimatado em numerosos países, a transmissão de "Loft Story". Onze jovens foram encerrados sob o olhar das câmaras que retransmitiam dia e noite os episódios de sua vida engaiolada: conversas triviais, necessidades fisiológicas ou folguedos eróticos. O conjunto dessa (in)atividade era ao mesmo tempo orientado pelo objetivo do jogo: a eliminação progressiva dos ocupantes do loft por pré-seleção interna e voto dos telespectadores até que só restasse um casal, o casal ganhador.
Em poucos dias, os recordes de audiência foram batidos. Em poucos dias, também, a opinião jornalística e intelectual se debruçou sobre esse novo "fenômeno de sociedade". A nota dominante era a indignação. Por vezes, ela se circunscrevia aos aspectos econômicos e culturais do negócio: essa gente que ganha um salário mínimo para oferecer a imagem da vida como ela é era a um tempo uma nova forma de exploração do trabalho e o meio de reduzir ao mínimo as despesas da indústria cultural, necessárias para atrair as receitas publicitárias. "A grana varreu a cultura", declarava um semanário de esquerda. Mas, na maioria dos casos, bem mais que uma infração à legislação do trabalho, se denunciava o triunfo do sistema totalitário.

Ligeiras diferenças Essas cobaias fechadas dia e noite sob o olhar das câmeras, escancarando ao olhar de todos sua vida privada, essa comunidade fictícia de indivíduos que não possuem outro objetivo senão eliminar os outros não seria a realização do grande sonho de controle total dos indivíduos? Nas colunas do "Monde", um filósofo tirava disso a lição: fazendo eco à "pornografia dos campos de concentração", "Loft Story" figurava "o ideal terrível, mas domesticado, da sociedade com a qual sonhou o totalitarismo, sem poder realizá-lo".
Em vão se fez notar aos profetas da catástrofe final que havia, ainda assim, ligeiras diferenças entre os 11 concorrentes de "Loft Story" e os milhões de prisioneiros dos campos stalinistas ou nazistas. Estes, aliás, não tinham escolhido estarem onde estavam; quem os havia encarcerado não se preocupava minimamente em lhes dar a vida em espetáculo, antes pelo contrário: queriam atirá-la na sombra. O extermínio em massa, a eliminação lenta ou a destruição psíquica lá faziam as vezes da mansão prometida aos felizes ganhadores.
Os denunciadores não se deixaram perturbar por tão pouco: este, retrucam eles, é justamente o totalitarismo aperfeiçoado, o "totalitarismo soft" que não procede a nenhuma tortura, que não destrói nenhum corpo, mas que é exercido "somente sobre as consciências, somente em imagens".
Reconhece-se a lógica do argumento: a causa é tanto mais confirmada quanto mais invisível é seu efeito. Ironicamente essa foi sempre a lógica paranóica dos poderes totalitários. Era assim que o procurador Vichinsky reconhecia os sabotadores mais perversos da pátria soviética: para esconder que eram sabotadores, eles nunca se abandonavam a nenhum ato de sabotagem. Do mesmo modo, o totalitarismo é reputado tanto mais perfeito quanto mais internalizado, mais imaterial. Da mesmo forma, claro, as histórias de torturas, de razão e de segredo de Estado somem pelo alçapão. O totalitarismo, hoje nos ensinam, é a lei interiorizada da transparência generalizada. Na era da publicidade planetária, estamos todos encerrados, em todos os campos, vítimas da lógica pura e perfeita do sistema que os torturadores à antiga e os chefes de campos de extermínio ainda não podiam imitar senão de modo artesanal.
Michel Foucault inquietava-se outrora com as consequências um pouco simplistas demais que se podiam tirar de suas teses sobre a "sociedade do controle". Ele temia que todas as perseguições políticas do mundo fossem agrupadas e dissolvidas numa noite de "encarceramento" na qual todos os gatos seriam pardos. Deplorava um modo cômodo demais de dizer: "Todos temos o nosso Gulag: ele está à nossa porta, em nossas cidades, em nossos hospitais, em nossas prisões. Está aqui em nossas cabeças".
Esse temor revelou-se totalmente justificado. Desde então não cessaram de proliferar, sob o próprio manto da referência à "biopolítica" de Foucault, os discursos que remontam às mais diversas atrocidades da razão de Estado ao conceito de um totalitarismo "soft" que está em toda parte, mas em primeiro lugar e sobretudo nas telas de TV e nas cabeças dos telespectadores. Denunciar o comércio das imagens torna-se então o primeiro dos deveres e o menos custoso dos "heroísmos".
Não cabe ampliar a paranóia. Certamente os promotores dessas transmissões não lançaram seus produtos para fazer esquecer os genocídios e as torturas. E os filósofos denunciadores tampouco os pretendem fazer olvidar.
Contudo, por meio da própria marcha da polêmica, um estranho consenso parece se instalar entre os comerciantes de imagens, os denunciadores da imagem e os governantes. Estes, sempre pouco à vontade ante o retorno dos recalques da razão de Estado, geralmente acolheram com indulgência essas transmissões "totalitárias". O espetáculo televisual da vida comum oferecida ao consumo de indivíduos comuns está bem de acordo com sua divisa atual: a do realismo cotidiano a serviço das preocupações cotidianas dos "cidadãos". "Escuta" e "proximidade", que são hoje as palavras-chave de nossos governos, encontram ali sua mais exata ilustração.

Virtudes e tumultos As antigas representações do Estado e a denúncia política de sua "razão" e de seus segredos são substituídas por uma dupla descrição de nossa sociedade. De um lado, ela é representada como a sede das ocupações calmas e cotidianas, dos pequenos problemas e dos pequenos prazeres que opõem suas virtudes pacificadoras aos tumultos democráticos e sociais, responsáveis primeiros pelas grandes catástrofes totalitárias. Essa sociedade tranquila se harmoniza assim com o modesto Estado gestor, que liquida as grandes utopias. De outro lado, a mesma sociedade do "cotidiano", da "escuta" e da "proximidade" é apresentada como a realização extrema de um totalitarismo cuja sede não é outra senão o narcisismo do indivíduo democrático comum encarnado pelo telespectador.
De um lado, o sábio Estado gestor e realista opõe-se ao "totalitarismo" nascido das paixões utópicas da efervescência popular. De outro, o nobre Estado republicano, fiador da ordem simbólica e dos valores universalistas, é invocado para conter o "totalitarismo" inerente ao narcisismo dos indivíduos democráticos.
Dos dois lados a razão de Estado se acha discretamente desonerada do peso de seus crimes reais e novamente legitimada contra aqueles de um totalitarismo imaginário.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de José Marcos Macedo.




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