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De uma tortura a outra
Jacques Rancière
Com o que nos indignamos hoje e
que rosto conferimos ao intolerável? Algumas semanas atrás, a
França era sacudida pelo retorno
de um recalque não muito antigo. Um
general, comandante dos serviços especiais franceses durante a Guerra da Argélia, revelava em livro o detalhe das torturas sistematicamente praticadas pelos
especialistas da informação contra os
suspeitos. Revelar é dizer muito. Faz
mais de 40 anos que escritores e docentes
tomaram da pluma para denunciar os
métodos dos serviços especiais. Seus livros foram então perseguidos ou proibidos, e os governos, socialista, depois gaullista, que moviam na época a guerra na
Argélia, trataram continuamente essas
revelações como fábulas destinadas a
desmoralizar as tropas e a nação em proveito da insurreição argelina.
Assim, hoje não podemos senão achar
cômicas as declarações horrorizadas de
Jacques Chirac ou dos ministros socialistas, indignando-se contra esse abominável torturador, que não fora mais que um
executor da política liderada pelos chefes
de Estado ou de governo de que eles são
os herdeiros.
Todos os que denunciaram na época a
tortura na Argélia não se furtaram a dizer que a questão não dizia respeito às
ações de um militar perverso, mas à política de um Estado, à política da razão de
Estado que justifica tudo e do segredo do
Estado que tudo acoberta.
Essa "revelação" de um segredo amplamente conhecido põe os governos de
hoje, filhos daqueles de ontem, numa
posição desconfortável. Felizmente, os
potenciais públicos de indignação logo
se iriam fixar num objeto de escândalo
bem diverso, um objeto de escândalo do
nosso tempo. Uma televisão privada
francesa lançou, segundo o modelo do
"Big Brother" holandês, já aclimatado
em numerosos países, a transmissão de
"Loft Story". Onze jovens foram encerrados sob o olhar das câmaras que retransmitiam dia e noite os episódios de sua vida engaiolada: conversas triviais, necessidades fisiológicas ou folguedos eróticos. O conjunto dessa (in)atividade era
ao mesmo tempo orientado pelo objetivo do jogo: a eliminação progressiva dos
ocupantes do loft por pré-seleção interna
e voto dos telespectadores até que só restasse um casal, o casal ganhador.
Em poucos dias, os recordes de audiência foram batidos. Em poucos dias,
também, a opinião jornalística e intelectual se debruçou sobre esse novo "fenômeno de sociedade". A nota dominante
era a indignação. Por vezes, ela se circunscrevia aos aspectos econômicos e
culturais do negócio: essa gente que ganha um salário mínimo para oferecer a
imagem da vida como ela é era a um
tempo uma nova forma de exploração
do trabalho e o meio de reduzir ao mínimo as despesas da indústria cultural, necessárias para atrair as receitas publicitárias. "A grana varreu a cultura", declarava um semanário de esquerda. Mas, na
maioria dos casos, bem mais que uma
infração à legislação do trabalho, se denunciava o triunfo do sistema totalitário.
Ligeiras diferenças Essas cobaias
fechadas dia e noite sob o olhar das câmeras, escancarando ao olhar de todos
sua vida privada, essa comunidade fictícia de indivíduos que não possuem outro
objetivo senão eliminar os outros não seria a realização do grande sonho de controle total dos indivíduos? Nas colunas
do "Monde", um filósofo tirava disso a lição: fazendo eco à "pornografia dos
campos de concentração", "Loft Story"
figurava "o ideal terrível, mas domesticado, da sociedade com a qual sonhou o totalitarismo, sem poder realizá-lo".
Em vão se fez notar aos profetas da catástrofe final que havia, ainda assim, ligeiras diferenças entre os 11 concorrentes de "Loft Story" e os milhões de prisioneiros dos campos stalinistas ou nazistas. Estes, aliás, não tinham escolhido estarem onde estavam; quem os havia encarcerado não se preocupava minimamente em lhes dar a vida em espetáculo,
antes pelo contrário: queriam atirá-la na
sombra. O extermínio em massa, a eliminação lenta ou a destruição psíquica lá
faziam as vezes da mansão prometida
aos felizes ganhadores.
Os denunciadores não se deixaram
perturbar por tão pouco: este, retrucam
eles, é justamente o totalitarismo aperfeiçoado, o "totalitarismo soft" que não
procede a nenhuma tortura, que não
destrói nenhum corpo, mas que é exercido "somente sobre as consciências, somente em imagens".
Reconhece-se a lógica do argumento: a
causa é tanto mais confirmada quanto
mais invisível é seu efeito. Ironicamente
essa foi sempre a lógica paranóica dos
poderes totalitários. Era assim que o procurador Vichinsky reconhecia os sabotadores mais perversos da pátria soviética:
para esconder que eram sabotadores,
eles nunca se abandonavam a nenhum
ato de sabotagem. Do mesmo modo, o
totalitarismo é reputado tanto mais perfeito quanto mais internalizado, mais
imaterial. Da mesmo forma, claro, as histórias de torturas, de razão e de segredo
de Estado somem pelo alçapão. O totalitarismo, hoje nos ensinam, é a lei interiorizada da transparência generalizada. Na
era da publicidade planetária, estamos
todos encerrados, em todos os campos,
vítimas da lógica pura e perfeita do sistema que os torturadores à antiga e os chefes de campos de extermínio ainda não
podiam imitar senão de modo artesanal.
Michel Foucault inquietava-se outrora
com as consequências um pouco simplistas demais que se podiam tirar de
suas teses sobre a "sociedade do controle". Ele temia que todas as perseguições
políticas do mundo fossem agrupadas e
dissolvidas numa noite de "encarceramento" na qual todos os gatos seriam
pardos. Deplorava um modo cômodo
demais de dizer: "Todos temos o nosso
Gulag: ele está à nossa porta, em nossas
cidades, em nossos hospitais, em nossas
prisões. Está aqui em nossas cabeças".
Esse temor revelou-se totalmente justificado. Desde então não cessaram de
proliferar, sob o próprio manto da referência à "biopolítica" de Foucault, os discursos que remontam às mais diversas
atrocidades da razão de Estado ao conceito de um totalitarismo "soft" que está
em toda parte, mas em primeiro lugar e
sobretudo nas telas de TV e nas cabeças
dos telespectadores. Denunciar o comércio das imagens torna-se então o primeiro dos deveres e o menos custoso dos
"heroísmos".
Não cabe ampliar a paranóia. Certamente os promotores dessas transmissões não lançaram seus produtos para
fazer esquecer os genocídios e as torturas. E os filósofos denunciadores tampouco os pretendem fazer olvidar.
Contudo, por meio da própria marcha
da polêmica, um estranho consenso parece se instalar entre os comerciantes de
imagens, os denunciadores da imagem e
os governantes. Estes, sempre pouco à
vontade ante o retorno dos recalques da
razão de Estado, geralmente acolheram
com indulgência essas transmissões "totalitárias". O espetáculo televisual da vida comum oferecida ao consumo de indivíduos comuns está bem de acordo
com sua divisa atual: a do realismo cotidiano a serviço das preocupações cotidianas dos "cidadãos". "Escuta" e "proximidade", que são hoje as palavras-chave de nossos governos, encontram ali sua
mais exata ilustração.
Virtudes e tumultos As antigas representações do Estado e a denúncia política de sua "razão" e de seus segredos
são substituídas por uma dupla descrição de nossa sociedade. De um lado, ela é
representada como a sede das ocupações
calmas e cotidianas, dos pequenos problemas e dos pequenos prazeres que
opõem suas virtudes pacificadoras aos
tumultos democráticos e sociais, responsáveis primeiros pelas grandes catástrofes totalitárias. Essa sociedade tranquila
se harmoniza assim com o modesto Estado gestor, que liquida as grandes utopias. De outro lado, a mesma sociedade
do "cotidiano", da "escuta" e da "proximidade" é apresentada como a realização extrema de um totalitarismo cuja sede não é outra senão o narcisismo do indivíduo democrático comum encarnado
pelo telespectador.
De um lado, o sábio Estado gestor e
realista opõe-se ao "totalitarismo" nascido das paixões utópicas da efervescência
popular. De outro, o nobre Estado republicano, fiador da ordem simbólica e dos
valores universalistas, é invocado para
conter o "totalitarismo" inerente ao narcisismo dos indivíduos democráticos.
Dos dois lados a razão de Estado se
acha discretamente desonerada do peso
de seus crimes reais e novamente legitimada contra aqueles de um totalitarismo
imaginário.
Jacques Rancière é professor da Universidade de
Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.
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