São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001

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Biografia e álbum de fotos que acabam de sair na França desmistificam a vida de um dos poetas mais importantes do século 19

Rimbaud na cratera do vulcão

por Philippe Sollers

A história é engraçada: em 1990, com a ajuda da lenda de Rimbaud (1854-1891), foi descoberta e certificada como autêntica a casa na qual ele teria morado durante sua estada sinistra em Aden, no Iêmen. As consequências não se fizeram esperar: restauração da casa (a um custo alto), criação de um centro cultural francês, visitas de poetas, escritores e especialistas, espetáculos animados, colóquios, encontros, récitas, emoções, poesia, poesia e mais poesia -ou seja, turismo.
Como deve ser arrebatador, de fato, estar lá, em comunicação mediúnica com o grande desaparecido, respirando o mesmo ar que ele, sentindo seu sofrimento, seu mistério, seus sonhos. Como deve ser doce imaginar, desde nosso conforto, a vida dolorosa de um selecionador de café cercado de nativos estúpidos, de um traficante de armas correndo, sob um sol implacável, diretamente para os braços da doença e da morte.
O espetáculo tem suas leis: como a "casa de Rimbaud" esperava apenas seus novos hóspedes, o Iêmen se tornou um cantinho da França, até mesmo, quem sabe, uma parte exótica da Comuna de Paris. Após o caso de "La Chasse Spirituelle" (esse falso Rimbaud desmascarado por André Breton, em sua época), após o envio de "Iluminations" (Iluminações), sob outro nome, a todas as grandes editoras e sua rejeição por elas, finalmente se tinha algo novo e sólido.
Mas -surpresa!- a casa de Rimbaud, construída após sua morte, não era dele, e a casa em que ele realmente morou, situada a pouca distância, desapareceu para dar lugar a um edifício moderno estilo "caixa de cimento". O instituto cultural com vocação poética se transformou prosaicamente num hotel, o Rambow. Diante dessa nova comédia, podemos imaginar Rimbaud dando uma risadinha seca? Surpreso, ele? Ora, o que é isso?
Essas e muitas outras revelações se encontram no álbum "Rimbaud à Aden" (Rimbaud em Aden). A idéia é luminosa: confrontamos fotos dos anos 1880 com outras de hoje, vemos paisagens que Rimbaud viu e no que se transformaram hoje. Desembarcamos em Steamer Point (atual Tawahi) e vemos o Grande Hotel do Universo (esse, sim, um bom endereço). Rimbaud podia contemplar à sua frente um tribunal inglês e um minarete. O minarete continua no lugar, mas o tribunal virou agência central dos correios. Cavalos e camelos foram substituídos por automóveis.
O lugar dá a impressão de ser vivível, mas ouçamos o que o funcionário exilado conta a sua família em 28 de setembro de 1885 (ano da morte triunfal do poeta Victor Hugo, em Paris): "Não há nem uma única árvore aqui, nem mesmo ressecada, nenhum sinal de grama, nenhum grão de terra e nem uma só gota de água doce.
Aden é uma cratera de vulcão extinto cujo fundo foi recoberto pela areia do mar. Não se vê nem se toca absolutamente nada, exceto lava e areia, incapazes de produzir o menor vegetal. As cercanias são um deserto absolutamente árido. As paredes da cratera impedem o ar de entrar, e, no fundo desse buraco, assamos como se estivéssemos num forno. É preciso ser obrigado a trabalhar pelo pão de cada dia para empregar-se num inferno semelhante!".
Rimbaud visto por seu patrão, Alfred Bardey: "É um rapaz alto e simpático, que fala pouco e acompanha suas explicações resumidas com pequenos gestos cortantes com a mão direita e no contratempo". Vamos reencontrar essas mãos mais adiante.
Ele é impossível, esse Rimbaud. E a nova biografia de Jean-Jacques Lefrère, "Arthur Rimbaud", o confirma: nenhum romantismo, tensão constante, objetivos financeiros austeros e precisos. Uma testemunha, Borelli, fala dele nos seguintes termos: "Ele é incansável. Sua aptidão para as línguas, uma grande força de vontade e uma paciência a toda prova o classificam entre os viajantes consumados".
Rimbaud se enfastia, não lê jornais e menos ainda romances, pensa apenas em aperfeiçoar seu árabe para o comércio, não tem desejo nenhum de falar de sua vida passada e, se alguém se arrisca a lhe perguntar algo sobre sua criação poética, ele resmunga alguma coisa sobre "um período de embriaguez" e lança as palavras "absurdo", "ridículo", "repulsivo". Poeta maldito? Quem, ele? Líder de uma certa "escola decadente" que se maravilha com o soneto de "Voyelles"? Não é o que se imaginaria. Essas pessoas na França que fingem se interessar por ele com certeza preparam algum golpe baixo -alguém vai lembrar o caso de Bruxelas com Verlaine, e, aliás, o Exército pode chamá-lo a qualquer momento para fazer seu serviço militar (ele, desertor do Exército holandês em Java).
Que o deixem tranquilo, ele tem um plano. Juntar o dinheiro tão arduamente ganho ("não tenho cargo"), voltar, algum dia, apesar de já estar demasiado habituado "à vida errante e gratuita" e aos climas quentes ("eu morreria no inverno"), casar-se ("mas seria preciso encontrar alguém que me acompanhasse em minhas peregrinações"), ter um filho a quem ensinar, para que se torne engenheiro -em suma, tudo menos literatura.

O peso da poesia De qualquer maneira, a experiência foi feita: ninguém compreendeu "Une Saison en Enfer" (Uma Estadia no Inferno) e "Illuminations" (publicados no Brasil em "Arthur Rimbaud - Prosa Poética", Topbooks, trad. de Ivo Barroso), e dentro de um ou dois séculos talvez a situação continue a mesma. É preciso correr, recolher o que é possível e ir embora, mas quando? Tentemos uma caravana de fuzis. Um italiano, Ferrandi, vê Rimbaud partir: "Alto, magro, os cabelos já ficando grisalhos nas têmporas, vestido à européia, mas de modo sumário, com calças largas, um casaco largo cor cinza-cáqui, ele levava na cabeça apenas um pequeno barrete igualmente cinza e enfrentava o sol tórrido como um nativo. Apesar de possuir um burrinho, não o montava durante as marchas e, equipado com o seu fuzil, andava à frente da caravana, sempre a pé".
Esse fuzil de Rimbaud, ei-lo aqui fotografado num instantâneo do grupo em Sheick-Othman, uma espécie de oásis não longe de Aden. Numa bela propriedade hoje em ruínas, seis personagens coloniais estão reunidas na escadaria. Uma delas destoa imediatamente por sua atitude: é Rimbaud. Acontecimento surrealista: no próximo momento em que nos enganávamos quanto à residência do sujeito, uma foto desconhecida ressurge como que para zombar de todas as animações culturais.
Os cinco coloniais estão evidentemente contentes de serem fotografados; eles fazem pose, encaram a câmera, se exibem com suas armas como se estivessem voltando de uma caçada. O sexto está estranhamente rígido: de branco, com a mão direita pousada sobre o cano de seu fuzil, a mão esquerda colocada sobre o peito. O olhar foge da objetiva. Em silêncio, Rimbaud diz alguma coisa.
Em primeiro lugar: não tenho nada em comum com esses bobões. Depois, o quê? A posição é pacífica, recolhida, concentrada, quase litúrgica. Dir-se-ia um oficial apresentando-se diante do altar com um turíbulo invisível. Estranha mensagem pretendida, estranha comunhão entre ele e o negativo. Vem à mente a seguinte frase tirada de uma de suas cartas: "Estou bem, mas a cada minuto mais um cabelo meu embranquece". E também: "De fato, massacra-se e pilha-se muito nestas paragens. Aliás, no país e na estrada, sou tratado com certa consideração devido a meus procedimentos humanos. Nunca fiz mal a ninguém. Pelo contrário, faço um pouco de bem quando encontro ocasião para tanto, e esse é meu único prazer".
Também vem à mente a seguinte declaração dirigida à litania da infelicidade humana, assim como à propaganda da dor que estava na moda nos países ricos: "Aqueles que repetem a todo momento que a vida é dura deveriam passar algum tempo aqui para aprender filosofia". E, em "Une Saison en Enfer": "A marcha, o peso carregado, o deserto, o tédio e a cólera".
Não se mata, não se massacra, não se saqueia. Os poetas são gentis, mas eles não têm peso -de certa maneira, lhes falta um fuzil. Verlaine adora Rimbaud, sem dúvida, mas, num primeiro momento, não vê senão "coisas encantadoras" em "Illuminations". Em última análise é Alfred Bardey, o patrão, quem melhor observou esse passante importante: "Sua caridade, discreta e ampla, foi provavelmente uma das muito poucas coisas que fez sem zombaria e sem aversão".


Philippe Sollers é escritor e ensaísta francês, autor de, entre outros, "Mulheres" (ed. Siciliano). Acaba de lançar na França "Éloge de l'Infini" (Elogio do Infinito, ed. Gallimard). O texto acima foi publicado no "Le Monde".

Tradução de Clara Allain.




Rimbaud à Aden
168 págs., 28,97 euros
de Jean-Hugues Berrou, Pierre Leroy e Jean-Jacques Lefrère. Ed. Fayard.

Arthur Rimbaud
1.240 págs., 44,22 euros
de Jean-Jacques Lefrère. Ed. Fayard.

Onde encomendar:
Os livros podem ser encomendados, em SP, à livraria Francesa (tel. 0/ xx/11/231-4555) e, no RJ, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/21/ 533-2237).






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