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+ memória
Em 28 de maio morreu, aos 85 anos, o historiador José Calasans, o mais importante estudioso de Canudos
Um sertão não-euclidiano
Roberto Ventura
especial para a Folha
Eu gosto muito de conversar." Assim falava de si o historiador sergipano José Calasans, o mais importante conhecedor da história de
Canudos ou Belo Monte, a comunidade
religiosa criada por Antônio Conselheiro
em 1893 no sertão da Bahia. O povoado
foi destruído pelas tropas do Exército em
1897, depois de quase um ano de guerra.
Canudos foi incorporada à memória do
país com o livro de Euclides da Cunha,
"Os Sertões", publicado em 1902.
O grande conversador José Calasans
Brandão da Silva morreu em 28 de maio,
aos 85 anos, em sua residência na Ladeira da Barra, em Salvador. Dotado de prodigiosa memória e vasta erudição, Calasans era consultado pelos interessados
em Canudos ou Euclides. Recebia todos
com entusiasmo e não escondia dos interlocutores a simpatia que tinha pelo
Conselheiro. Chegava a dizer, com humor, que era conselheirista.
Sua paixão por contar e ouvir histórias
fez dele a memória viva de Canudos.
Tornou-se o elo de ligação entre os pesquisadores mais jovens e os sobreviventes e descendentes de Belo Monte, cujos
depoimentos começou a recolher no final da década de 40. Seu último livro,
"Cartografia de Canudos", foi publicado
em 1997, no centenário do fim da guerra.
Sua vontade de compartilhar o que sabia o levou a doar em 1983 toda a documentação que reuniu sobre Canudos à
Universidade Federal da Bahia, da qual
foi professor de história moderna e contemporânea e vice-reitor. Sua biblioteca
contém, entre outras preciosidades, um
dos dois cadernos manuscritos, com rezas e pregações, que o Conselheiro deixou como testamento religioso.
Calasans se interessou pela história da
comunidade a partir das reportagens
que Odorico Tavares fez, com belas fotos
de Pierre Verger, para a revista "O Cruzeiro" em 1947, nos 50 anos de sua destruição. Contou ao historiador Marco
Villa, em "Calasans, um Depoimento para a História" (1998), que as reportagens
lhe revelaram a existência de muitos sobreviventes da guerra e o fizeram dar início à coleta de depoimentos e poemas
populares.
Conversou com seguidores do Conselheiro, como Manoel Ciriaco, nascido
em Canudos; Honório Vilanova, irmão
do mais importante comerciante da região; Francisca Macambira, filha de outro comerciante; Pedrão de Várzea da
Ema, um dos chefes armados, depois
contratado para combater o bando de
Lampião na década de 30. Seu esforço
em resgatar a versão dos habitantes do
sertão, vencidos na guerra, foi acompanhado por Nertan Macedo, que entrevistou Honório em "Memorial de Vilanova" (1964), e por José Aras, que registrou
alguns testemunhos em "Sangue de Irmãos".
Calasans aliou, de forma inovadora, a
história oral à pesquisa rigorosa dos manuscritos e documentos. Fez de Canudos
não apenas uma história a ser resgatada,
mas antes um "mar de histórias", contadas segundo diversas perspectivas. Deu
aos relatos orais e populares a mesma
importância que atribuía às interpretações impressas ou eruditas. Inspirou-se
no destaque dado por Gilberto Freyre à
oralidade em "Casa-Grande & Senzala"
(1933), ensaio sobre a formação patriarcal da sociedade brasileira.
A história de Belo Monte, tal como
contada por Calasans, é diferente daquela apresentada por Euclides da Cunha,
que criou, em "Os Sertões", um retrato
sombrio do Conselheiro como fanático
místico e louco. Segundo Calasans, surgiu a partir dos anos 50 um Canudos
"não-euclidiano" com base nos testemunhos dos sobreviventes e na revisão dos
documentos sobre a guerra.
Sem julgamentos depreciativos, Calasans recriou a vida de Antônio Vicente
Mendes Maciel, filho de um comerciante
de Quixeramobim, no interior do Ceará,
que se tornou o Conselheiro. Investigou
sua formação escolar, o fracasso no comércio e no casamento, a atuação junto
ao padre Ibiapina no Ceará. Abordou os
escritos de Antônio Maciel, que mostram um sertanejo letrado, capaz de exprimir concepções políticas e religiosas
ligadas a um catolicismo tradicional, comum na Igreja do século 19.
Lendas do Conselheiro Em "O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro", sua tese de livre-docência de 1950,
Calasans se voltou para os aspectos lendários e fabulosos do guia espiritual do
Belo Monte, que a tradição popular identificava a Santo Antônio. Recolheu, em
"No Tempo de Antônio Conselheiro"
(1959) e em "Canudos na Literatura de
Cordel" (Ática, 1984), o cancioneiro sobre Canudos, com algumas versões favoráveis e outras contrárias ao Conselheiro, que ora aparece como enviado de
Cristo, encarregado de salvar as almas
antes do Juízo Final, ora como bandido
cruel, capaz de matar a mãe e a mulher,
segundo lenda propagada nos sertões
que provocou sua prisão em 1876.
José Calasans se debruçou, em "Quase
Biografias de Jagunços" (1986), sobre figuras quase esquecidas do passado e recriou o cotidiano de Canudos a partir das
histórias de vida de seus habitantes, vindos de diversas regiões da Bahia, Sergipe
e Ceará.
Fez reviver os beatos de Belo Monte,
seus negociantes e proprietários, os chefes militares e combatentes, os agricultores, artesãos e professores e até o jaguncinho de Euclides, menino de Canudos,
entregue aos cuidados do escritor.
Canudos foi destruída duas vezes, uma
pelo fogo, em 1897, outra pela água, em
1968. Com o término da guerra, o povoado foi queimado com tochas de querosene e bombas de dinamite, sendo reduzido a cinzas. Sobre tais escombros ergueu-se outra Canudos, que iria depois
submergir sob as águas com a construção do açude de Cocorobó nos anos 60.
Nos períodos de seca, suas ruínas ressurgem do imenso lago como fantasmas de
um passado já meio distante.
Mas Belo Monte continua viva na obra
e na biblioteca do historiador José Calasans Brandão da Silva. Conversador e
conselheirista, assinava seus artigos e livros como José Calasans, nome de guerra, com o qual se integrou às tropas do
Conselheiro e à história de Canudos.
Roberto Ventura é professor de teoria literária na
Universidade de São Paulo e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras) e "Folha Explica Casa-Grande & Senzala" (Publifolha).
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