São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005

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Romances "de sensação" e telenovelas, tratados como obras de segunda ordem, podem possibilitar à historiografia um melhor conhecimento da vida social e, principalmente, das sensibilidades de uma época

Elzira, Odete Roitman e a história

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

É tradicional na historiografia a utilização de textos literários para apreender traços essenciais das sociedades do passado. Exemplificando, Dostoiévski abriu portas para o entendimento do mundo perturbador da Rússia, na metade do século 19; Balzac também deu aos historiadores essa oportunidade, com relação à sociedade parisiense de época um pouco anterior; entre nós, Machado de Assis se destacou, e quanto, por desvendar, na trama de seus personagens, traços essenciais da "sociedade de favor".
Menos comum foi a utilização pela historiografia, até há algumas décadas, de textos que não têm o rótulo ilustre de "literários" -escritos de segunda ordem ou mesmo considerados "sujos". Quando eles passaram a ser reconhecidos como fonte histórica, possibilitaram a exploração de novos temas, o melhor conhecimento da vida social e, principalmente, das sensibilidades de uma época. Mas há ainda poucos exemplos significativos dessa vertente entre nós. Um deles é o livro de Alessandra El Far "Páginas de Sensação" (Companhia das Letras), cujo subtítulo é explicativo: "Literatura Popular e Pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924)".
Vou me concentrar na literatura popular ou, mais propriamente, no que a autora chama de romance de sensação -um tipo de narrativa melodramática, caracterizada pelo ritmo acelerado de acontecimentos inesperados, vividos por protagonistas pouco convencionais.
A primeira reação à leitura do livro é a de que penetramos num mundo remoto, seja com relação aos produtores e consumidores dos textos, seja sobre seu alcance ou os recursos do meio editorial, mundo sepultado pelos novos veículos -a televisão sobretudo- e novas tecnologias. Em grande medida, a reação faz sentido, o que significa que, em certa medida, não faz. Vejam, por exemplo, o sucesso da reedição das histórias pornográficas em quadrinhos do Zéfiro, nos dias de hoje, e mesmo a possibilidade de haver bolsões de leitores dos romances de sensação.

Final infeliz
As distâncias entre estes e a telenovela são tão óbvias que quase seria desnecessário lembrar: a força da imagem televisiva, o alcance da transmissão, o tipo de identificação ou de repulsa com personagens de carne e osso etc. Mas existem proximidades entre os dois gêneros, começando por uma constatação genérica trivial. Ambos têm uma fórmula atraente para promover no público o escapismo da vida rotineira, do fardo do trabalho e da sucessão dos dias, pela via de tramas e situações emocionais, cuja estrutura, entretanto, não é arbitrária.
Mais ainda, há algo na estrutura da telenovela que lembra os romances de sensação. Como mostra Alessandra El Far, os romances se iniciam, quase sempre, instaurando uma desordem, uma exacerbação de sentimentos e de comportamentos. A desordem chega a um paroxismo, mas o fim das histórias acaba por recuperar a ordem perdida. Essa seqüência nos soa familiar, com uma diferença: se, nas telenovelas, tanto quanto eu saiba, o final feliz é uma regra de ouro, no romance de sensação o desfecho pode ser trágico, violando o princípio de que o mal deve ser punido, e o bem, premiado. É o caso de romances que ficaram famosos, como "Maria, a Desgraçada", ou "Elzira, Morta Virgem".
Outra questão diz respeito ao tema controvertido acerca do papel social das telenovelas. Elas confirmariam a ordem e os costumes vigentes ou, pelo contrário, estariam alguns passos à frente? Há bons indícios de que, tanto no caso das telenovelas quanto dos romances de sensação, a segunda hipótese seja verdadeira. Por mais que as tramas tenham muito de previsível e de repetitivo, nelas se armam situações e relacionamentos que, não por acaso, geram protestos indignados das mentes mais conservadoras.

Pouco adiante
É claro que os passos à frente, em nossos dias, têm um conteúdo bem diverso do que os passos dos romances de sensação. Temas como a aceitação de relações homossexuais, por exemplo, estavam no passado confinados aos romances pornográficos e recebiam o tratamento típico do gênero. Os romances de sensação tendiam a reforçar os direitos individuais e a afetividade, antepondo-se ao tradicionalismo e aos interesses familiares, sobretudo em situações que envolviam jovens apaixonados. Ou ainda, no subgênero constituído pelo romance de "sensações novas", construíam-se enredos tidos como maliciosos, mas que não chegavam a ser pornográficos. Com freqüência tinham como alvo o despertar da sexualidade feminina, tecida de olhares, beijos e toques furtivos.
Entretanto há uma diferença na forma de transmissão dos conteúdos. A telenovela parece transmiti-los pela reiteração de um conjunto de narrativas individualizadas, que se sucedem ao longo dos anos, mas que, tomadas uma a uma, tendem a ser esquecidas, apesar das reprises com o rótulo de "Vale a Pena Ver de Novo". No romance de sensação, os textos de maior êxito atravessam o tempo e o espaço, caso típico de "Elzira, Morta Virgem". História dramática de uma moça apaixonada, cujo desejo de se casar com determinado jovem, igualmente perdido pela paixão, é barrado pelos pais, em nome de um rico pretendente. Elzira definha ao longo do tempo, diante da recusa e, quando os pais acabam cedendo, é demasiado tarde.
A primeira publicação do romance data de 1883. A partir daí, surgiram edições sucessivas, inclusive versões em cordel, que tiveram leitores do Sul ao Nordeste do país. Lançando uma ponte de continuidade entre um passado mais diante e outro mais próximo, lembremos, com a autora do livro citado, a canção "Mamãe Coragem" (1968), de Caetano Veloso e Torquato Neto. Na letra, um conselho, algo cruel, dado pelo filho, que está de partida, à mãe desconsolada: "Pegue uns panos pra lavar/leia um romance/leia a "Elzira, Morta Virgem" / ou "O Grande Industrial'". Um claro indício de que as sensibilidades mudam ao longo do tempo, mas podem ter um substrato invariável ou, ao menos, um ritmo de alteração diverso das vertiginosas transformações materiais.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

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