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Romances "de sensação" e telenovelas, tratados como obras de segunda ordem, podem possibilitar à
historiografia um melhor conhecimento da vida social e, principalmente, das sensibilidades de uma época
Elzira, Odete Roitman e a história
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
É tradicional na historiografia a
utilização de textos literários
para apreender traços essenciais das sociedades do passado. Exemplificando, Dostoiévski
abriu portas para o entendimento
do mundo perturbador da Rússia,
na metade do século 19; Balzac também deu aos historiadores essa
oportunidade, com relação à sociedade parisiense de época um pouco
anterior; entre nós, Machado de Assis se destacou, e quanto, por desvendar, na trama de seus personagens, traços essenciais da "sociedade
de favor".
Menos comum foi a utilização pela
historiografia, até há algumas décadas, de textos que não têm o rótulo
ilustre de "literários" -escritos de
segunda ordem ou mesmo considerados "sujos". Quando eles passaram a ser reconhecidos como fonte
histórica, possibilitaram a exploração de novos temas, o melhor conhecimento da vida social e, principalmente, das sensibilidades de uma
época. Mas há ainda poucos exemplos significativos dessa vertente entre nós. Um deles é o livro de Alessandra El Far "Páginas de Sensação"
(Companhia das Letras), cujo subtítulo é explicativo: "Literatura Popular e Pornográfica no Rio de Janeiro
(1870-1924)".
Vou me concentrar na literatura
popular ou, mais propriamente, no
que a autora chama de romance de
sensação -um tipo de narrativa
melodramática, caracterizada pelo
ritmo acelerado de acontecimentos
inesperados, vividos por protagonistas pouco convencionais.
A primeira reação à leitura do livro
é a de que penetramos num mundo
remoto, seja com relação aos produtores e consumidores dos textos, seja
sobre seu alcance ou os recursos do
meio editorial, mundo sepultado pelos novos veículos -a televisão sobretudo- e novas tecnologias. Em
grande medida, a reação faz sentido,
o que significa que, em certa medida, não faz. Vejam, por exemplo, o
sucesso da reedição das histórias
pornográficas em quadrinhos do
Zéfiro, nos dias de hoje, e mesmo a
possibilidade de haver bolsões de
leitores dos romances de sensação.
Final infeliz
As distâncias entre estes e a telenovela são tão óbvias que quase seria
desnecessário lembrar: a força da
imagem televisiva, o alcance da
transmissão, o tipo de identificação
ou de repulsa com personagens de
carne e osso etc. Mas existem proximidades entre os dois gêneros, começando por uma constatação genérica trivial. Ambos têm uma fórmula atraente para promover no público o escapismo da vida rotineira,
do fardo do trabalho e da sucessão
dos dias, pela via de tramas e situações emocionais, cuja estrutura, entretanto, não é arbitrária.
Mais ainda, há algo na estrutura da
telenovela que lembra os romances
de sensação. Como mostra Alessandra El Far, os romances se iniciam,
quase sempre, instaurando uma desordem, uma exacerbação de sentimentos e de comportamentos. A desordem chega a um paroxismo, mas
o fim das histórias acaba por recuperar a ordem perdida. Essa seqüência
nos soa familiar, com uma diferença: se, nas telenovelas, tanto quanto
eu saiba, o final feliz é uma regra de
ouro, no romance de sensação o desfecho pode ser trágico, violando o
princípio de que o mal deve ser punido, e o bem, premiado. É o caso de
romances que ficaram famosos, como "Maria, a Desgraçada", ou "Elzira, Morta Virgem".
Outra questão diz respeito ao tema
controvertido acerca do papel social
das telenovelas. Elas confirmariam a
ordem e os costumes vigentes ou,
pelo contrário, estariam alguns passos à frente? Há bons indícios de
que, tanto no caso das telenovelas
quanto dos romances de sensação, a
segunda hipótese seja verdadeira.
Por mais que as tramas tenham muito de previsível e de repetitivo, nelas
se armam situações e relacionamentos que, não por acaso, geram protestos indignados das mentes mais
conservadoras.
Pouco adiante
É claro que os passos à frente, em
nossos dias, têm um conteúdo bem
diverso do que os passos dos romances de sensação. Temas como a aceitação de relações homossexuais, por
exemplo, estavam no passado confinados aos romances pornográficos e
recebiam o tratamento típico do gênero. Os romances de sensação tendiam a reforçar os direitos individuais e a afetividade, antepondo-se
ao tradicionalismo e aos interesses
familiares, sobretudo em situações
que envolviam jovens apaixonados.
Ou ainda, no subgênero constituído
pelo romance de "sensações novas",
construíam-se enredos tidos como
maliciosos, mas que não chegavam a
ser pornográficos. Com freqüência
tinham como alvo o despertar da sexualidade feminina, tecida de olhares, beijos e toques furtivos.
Entretanto há uma diferença na
forma de transmissão dos conteúdos. A telenovela parece transmiti-los pela reiteração de um conjunto
de narrativas individualizadas, que
se sucedem ao longo dos anos, mas
que, tomadas uma a uma, tendem a
ser esquecidas, apesar das reprises
com o rótulo de "Vale a Pena Ver de
Novo". No romance de sensação, os
textos de maior êxito atravessam o
tempo e o espaço, caso típico de "Elzira, Morta Virgem". História dramática de uma moça apaixonada,
cujo desejo de se casar com determinado jovem, igualmente perdido pela paixão, é barrado pelos pais, em
nome de um rico pretendente. Elzira
definha ao longo do tempo, diante
da recusa e, quando os pais acabam
cedendo, é demasiado tarde.
A primeira publicação do romance data de 1883. A partir daí, surgiram edições sucessivas, inclusive
versões em cordel, que tiveram leitores do Sul ao Nordeste do país. Lançando uma ponte de continuidade
entre um passado mais diante e outro mais próximo, lembremos, com
a autora do livro citado, a canção
"Mamãe Coragem" (1968), de Caetano Veloso e Torquato Neto. Na letra, um conselho, algo cruel, dado
pelo filho, que está de partida, à mãe
desconsolada: "Pegue uns panos pra
lavar/leia um romance/leia a "Elzira,
Morta Virgem" / ou "O Grande Industrial'". Um claro indício de que as
sensibilidades mudam ao longo do
tempo, mas podem ter um substrato
invariável ou, ao menos, um ritmo
de alteração diverso das vertiginosas
transformações materiais.
Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção
"Autores", do Mais!.
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