São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005

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+ debate

Não há desperdício na produção de filmes, pois os fracassos fazem parte da viabilização dos bem-sucedidos

Economia de escala ou nada

ANDRÉ KLOTZEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sou a favor de qualquer pessoa expressar suas opiniões sobre qualquer assunto. Críticos e leigos. Mas argumentos amparados em pseudo-informações, como se fossem verdades precisas e estudadas, merecem ser desmascarados. Esse é o caso do artigo inicial, e agora da tréplica, do sr. Carlos Alberto Dória (Mais! 03/07) sobre cinema brasileiro.
Inicialmente quero deixar claro que, quando discuto a questão do cinema, tenho em vista que uma política para a atividade deve levar em conta os interesses do país, e não dos cineastas. Evidentemente, como profissional, convivo com as muitas dificuldades de se fazer cinema e busco minimizá-las. Mas caso se chegue à conclusão que, por ser muito caro, não deve haver cinema no Brasil, mudo de profissão.
Audiovisual e cinema são atividades industriais com conteúdo cultural, cada vez mais presentes na multiplicação dos veículos (TVs, internet, celulares). Países como os da União Européia, Canadá ou Austrália fazem questão de ter cinema nacional. Não se escuta falar do cinema da Bolívia, Honduras ou Congo. Manter a diversidade e a continuidade da produção audiovisual no Brasil é, do meu ponto de vista de cidadão, questão estratégica. E toda a cinematografia ocidental, com exceção da norte-americana, sobrevive apenas porque há participação do Estado. Sempre.
O sr. Dória, citando a tabela da Ancine [Angência Nacional do Cinema], faz erros de leitura e graves equívocos de interpretação. Ao dizer que apenas 22 filmes conseguiram bilheteria equivalente ao valor do incentivo recebido, se deixa iludir, pois não é do ramo. A bilheteria listada naquela tabela corresponde ao valor bruto, do qual apenas a terça parte vai para os produtores (descontados os gastos de comercialização). Refazendo as contas, nenhum filme brasileiro se paga por esse critério. Por outro lado, hoje se arrecada no Brasil mais com vídeo/DVD e TV do que com salas de cinema -e há o mercado externo. Isso não consta nas tabelas da Ancine.
Já que o sr. Dória fala dos recursos que estou tentando captar para meu próximo filme, pondero utilizando como exemplo um filme que dirigi, "A Marvada Carne", parcialmente financiado com recursos estatais, da Embrafilme. O filme teve 1,2 milhão de espectadores no cinema e não se pagaria se fosse apenas por isso. Mas também foi vendido para vídeo e TV, visto comercialmente em 15 países, teve sucesso em exibições e festivais, como Cannes. Hoje, 20 anos depois, ainda é exibido em TVs, escolas, mostras, e sempre recebo solicitações para falar sobre o filme, participar de debates etc. A pergunta é: o Estado errou ao financiar o filme?
Para cada sucesso cinematográfico há vários fracassos e resultados médios. Por isso a verdadeira indústria do cinema trabalha com escala de produção. Dos 600 filmes produzidos por ano nos EUA, apenas um terço são produtos de exportação que chegam ao Brasil. Dentre eles, vários não são rentáveis, e a maioria é muito ruim. O cinema norte-americano é bom negócio porque, além do imenso mercado interno, detém mais de 80% do comércio mundial.
Quando o sr. Dória diz que nunca se investiu tanto em cinema brasileiro, é bom dimensionarmos o que se está falando, para evitar mal-entendidos. O total de recursos investidos em 2004 (R$ 129 milhões) equivale a US$ 52 milhões. O custo médio de um único filme de estúdio americano é de cerca de US$ 50 milhões -o mesmo que toda a produção anual de cinema no Brasil. É com essa realidade que o cinema brasileiro chega às telas para competir.
Críticas como essas do sr. Dória são expressão de uma atitude cíclica, em que o cinema brasileiro é alternadamente incensado e linchado. A retomada do cinema, iniciada há uns dez anos, foi recebida de maneira eufórica, idealizada. Qual seria a próxima onda desse ciclo? Desconfio que as tais "moscas que se multiplicarão" do sr. Dória podem ser transmissoras de graves e mórbidas doenças. Já vimos isso acontecer com Collor, que fez a atividade regredir muitos anos, depois de uma campanha negativa que se arrastou por toda década de 80. Agora novamente o obscurantismo ameaça se generalizar e classificar "a raça" dos cineastas como formada por perdulários e perversos cidadãos, mamadores de tetas. Que as críticas sejam feitas, mas sérias e consistentes.
O Brasil é o décimo país do mundo em arrecadação de cinema, sétimo em volume de público e tem potencial para crescer mais. Por suas dimensões, pode aspirar a uma cinematografia própria. Esse é o verdadeiro pressuposto para um pensamento republicano, e não o raciocínio estreito de quem nada tem a propor e só se consegue enxergar como se vivesse em uma república de bananas.


André Klotzel é cineasta paulista, diretor de filmes como "A Marvada Carne" (1986), "Capitalismo Selvagem" (1994) e "Memórias Póstumas" (1999).

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