São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005

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O sociólogo Maurício Tragtenberg, que já apresentava, nos anos 80, sua versão para a crise do PT, critica a ordem burocrática de partidos e empresas

Política como técnica

Jorge Araujo - 02.ago.2002/Folha Imagem
O deputado federal José Dirceu (PT-SP), durante a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, em 2002


ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A sociologia de Max Weber fundamenta análises relevantes da vida brasileira. As interpretações de seu pensamento entre nós indicam a impessoalidade dos cargos (perfeita separação entre público e privado) como um núcleo da modernidade. Aquele modelo é ignorado pelos nossos costumes políticos. Visto por esse ângulo, as teses de Maurício Tragtenberg (1929-1998), de quem a ed. Unesp lança até o fim do ano as obras completas, não representam algo novo. Sua estatura teórica surge em plena grandeza se acompanharmos as críticas endereçadas por ele à ordem burocrática dos partidos políticos ou das empresas.
"Administração, Poder e Ideologia" vai à lógica que se apodera das instituições públicas e privadas. Weber usa o símile do mercado para pensar instituições que se modernizaram no século 19. A igreja, segundo ele, assume a forma de uma empresa centralizada no Vaticano. O Estado seria um empreendimento "com o mesmo título da fábrica". "Nisto consiste precisamente seu traço histórico específico. E desse modo se acha condicionada a relação de mando." A burocracia resulta da separação (Trennung) entre os meios administrativos e o seu operador, na fábrica e no Estado. O novo poder afasta lentamente os partidos dos seus "donos", os militantes.
Algo similar ocorre nas organizações do mercado, indica Tragtenberg em seu livro. Burocratas definem os rumos daqueles coletivos, mas não se responsabilizam nem podem se responsabilizar pela "falência" dos partidos. E deixam os investidores na mão se a empresa vai à bancarrota.
John McCormick ("Carl Schmitt's Critique of Liberalism - Against Politics as Technology" [Crítica de Carl Schmitt ao Liberalismo - Contra a Política como Tecnologia, Cambridge]) mostra alguns frutos das teses weberianas. Caso vençam os escritórios, lugar onde se dissolvem as vontades, a política vai para o museu, pois a teleologia burocrática molda a economia e a sociedade.
As técnicas modificam o mundo natural, mas a idéia ética de melhorar a sociedade é metafísica. A política, inclusive no capitalismo, adequa os indivíduos aos mecanismos coletivos. Duas vias surgem contra esse desalento. Carl Schmitt combate a tecnologia enquanto política e busca a vontade que vence a maldição burocrática. Ele indica em Hitler a força que modifica a razão que despolitiza o mundo. A seqüência é conhecida, incluindo os judeus massacrados para fornecer calor ao organismo político. A esquerda busca a vontade proletária para quebrar o processo burocrático. A revolução quebra o gelo institucional.
G. Lukács segue tal linha. No fim melancólico, ele efetua jaculatórias à linhagem "Marx, Engels, Lênin, Stálin" e racionaliza as ordens truculentas dos escritórios situados no Kremlin.

Criação de "ex-trabalhadores"
Leitor de Weber, Tragtenberg não se curva diante do chefe nem obedece à razão partidária porque deseja a liberdade que recupera a política. Judeu, ele recusa o terror de Estado. Expulso do Partido Comunista, discute as teses de Trótski, une-se a Hermínio Sachetta. Encontra a Biblioteca Municipal onde, proclama, "lia-se de tudo, de Aristóteles a Sprengler, passando por Fernando Pessoa, Sá Carneiro e José Régio". Os livros levam-no à universidade e ao ensino.
Em 1964, bandidos acadêmicos o expulsam. Passada a ditadura, retorna ao ensino e à pesquisa. No PT ele nota a continuação dos partidos burocráticos e aponta na corrente Articulação o "estilo social-democrático", no qual as bases são tangidas pelos dirigentes. Tragtenberg é premonitório: o PT era a esperança de auto-organização trabalhadora. Mas, ao eleger o caminho eleitoral, ele "tende a formar, em cada trabalhador vereador, deputado ou senador, um ex-trabalhador".
A miragem eleitoral faz intelectuais e políticos imaginarem como "suas (independentes da base econômica) as metas que propõem a si e aos outros" (Folha, 14/11/1982). Os sindicalistas do PT, que subiram na vida social com as desculpas da ética e hoje se enredam em feia corrupção, provam os enunciados acima. E os leninistas, imorais por definição, acusam a sociedade que sustenta o Estado de "moralista" e amiga do golpe. Projetam nos outros o seu desejo permanente e o que aprenderam com a razão mecânica do partido supostamente infalível.
Se a política tem sentido, pensa Tragtenberg, ela não domestica indivíduos e classes em manobras burocráticas. "Administração, Poder e Ideologia" discute a ruína das individualidades em mecanismos de controle. O livro ilumina muitas das práticas que levam ao desastre do realismo.
A tese leninista (a mesma que norteia o PT), segundo Tragtenberg, é estatista, golpista, elitista, imagina uma revolução "que lutaria contra a opressão patronal funcionando do mesmo modo que a opressão patronal". Os militantes "são soldados que devem aceitar obediência absoluta sem discutir (como em qualquer Exército ou aparelho de Estado) as ordens de seus superiores, que encarnam física e institucionalmente a verdade, a justiça e a "razão do Estado" da classe operária".
Sentimos a falta de Tragtenberg. Sem ele, o espaço da política e da liberdade diminuiu muito no Brasil.

Roberto Romano é professor titular de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século 18" (ed. Senac/ São Paulo).

Administração, Poder e Ideologia
240 págs., R$ 30
de Maurício Tragtenberg. Ed. Unesp (Praça da Sé, 108, São Paulo, SP, CEP 01001-900, tel. 0/ xx/11/3242-7171).


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