São Paulo, domingo, 10 de julho de 2005

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"Uma Temporada de Facões" faz uma espécie de "diário da matança" de 800 mil em Ruanda

No coração das trevas

FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gostaríamos de dizer, como o faz um dos entrevistados de Jean Hatzfeld em "Uma Temporada de Facões", que a África é estranha aos genocídios. Sua dor, os homens e as terras que sangram, o fazem pela imposição de outro, do estranho e do estrangeiro. Essa é no mínimo uma meia verdade, no máximo uma concessão benevolente. A história da África, depois do século 15, foi, e continua sendo, uma história de dor, mortes e empobrecimento. A alegria que salta aos olhos do visitante, seja em Maputo, Dar-es-Salam ou Kinshasa, é apenas mais uma forma de viver, uma estratégia, talvez mágica, em meio à possibilidade concreta de o continente tornar-se a maior tragédia humanitária do século 21.
Em meio a tanta dor, um episódio -e vejam, apenas um episódio entre outros- inscreve-se na história de Ruanda: o genocídio dos anos 1990.
Trata-se de um pequeno país, de quase 9 milhões de habitantes, plantado em terras férteis e ricas da região dos grandes lagos d'África. A colonização branca -alemã e depois belga, sob a suserania da França- trouxe forte desequilíbrio, escolhendo alguns grupos étnicos e culturais como ponto de apoio da presença européia, em detrimento de outros. Forjou-se uma história, nobre para uns; de submissão e inferioridade para a maioria. Mesmo a Igreja Católica, seja pela hierarquia local, seja pelo silêncio -ainda uma vez o silêncio!- do Vaticano, no mínimo, permitiu, deixou de evitar, a matança.
Uma versão oficial da história de Ruanda fala em uma minoria de pastores-guerreiros, oriundos do vale do Nilo, os tutsi -cerca de 9% da população total-, que ocupam uma bela região o país das mil colinas já povoado por uma maioria de camponeses de origem bantu, os hutu. Um sistema de relações familiares e de dependência pessoal gera uma ampla rede de trocas, materiais e simbólicas, entre as duas comunidades. Os casamentos interétnicos são comuns.
O preço da dominação dos pastores-guerreiros tutsi foi a relativa segurança dada ao país, com o afastamento dos mercadores de escravos, poupando a massa bantu/hutu dos horrores que seus vizinhos no Congo ou Angola sofriam.
A ocupação européia escolhe os tutsi como pilar de sua ação, culminando na conversão de sua elite ao catolicismo em 1931. Quando a independência é proclamada, em 1961, a ascensão dos hutu ao poder preocupa e assusta seus antigos senhores tutsi, começando então uma história de perseguições, saques e mortes.

Luta pelo poder
Ruanda, 1990: as relações entre os dois grupos étnicos centrais do país deterioram-se, apontando para uma crise de grande brutalidade. Os tutsi, a minoria favorecida pelo colonialismo belga (que chega a formular uma falsa teoria antropológica para provar a superioridade dos tutsi), são afastados do poder pela maioria hutu, que os consideram estrangeiros e aliados de inimigos do país (em especial de Uganda).
Após derrubar o poder tutsi, e tendo como pretexto a morte do presidente Jouvenal Habyarimana, em um acidente aéreo em 1994, inicia-se uma longa campanha de assassinatos coletivos, incentivados pela mídia -a Radio des Milles Collines-, pela Igreja Católica local e por várias instituições estatais. Milícias de hutu atacam residências, igrejas, clubes e escolas, massacrando com facões membros da etnia tutsi. A ONU, chamada a intervir, perde-se em longas "démarches" diplomáticas, o que permite que pelo menos 800 mil pessoas (tutsi e hutu moderados) sejam mortas, enquanto alguns milhares fogem em condições desumanas para o Congo (Ex-Zaire).
Em Ruanda, ao contrário do terceiro Reich, não havia um poder totalitário, uma ideologia racial dominante e um partido transformado em arma inumana. Como explicar a tragédia: Hatzfeld oferece, ainda uma vez, o relato de um sobrevivente: "...Foram manobras sobrenaturais de pessoas bem naturais!".
Mais de 60 anos depois do terror da "solução final", do estabelecimento do genocídio como crime de direito internacional, sancionado pela ONU, repetia-se no coração da África -naquele momento o próprio "coração das trevas"- o terror genocidário.
O genocídio, expressão criada em 1944, na obra "Axis Rule in Occupied Europe" [Controle do Eixo na Europa Ocupada], do jurista polonês, de origem judaica, Raphael Lemkin, visava dar estatuto jurídico específico aos crimes de guerra de massa praticados contra as minorias étnicas, religiosas ou culturais durante a Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, em 1948, as Nações Unidas inscreveram o genocídio nos seus estatutos como o mais grave crime contra a humanidade.
A expectativa da resolução de 1948 era de dar conteúdo à exigência gravada em pedra no campo de concentração de Dachau: "Nie Wieder", Nunca mais! Contudo, tais expectativas foram frustradas, não só em Ruanda, como ainda no Camboja ou na ex-Iugoslávia.
No pós-Segunda Guerra Mundial, malgrado os antecedentes dos genocídios hereró, armênio, cigano e da massificação do assassinato de judeus, todos consideravam a repetição da tragédia como impossível. Contudo outros processos de extermínio em massa foram colocados em prática, como em Ruanda.
O livro de Hatzfeld, quase um diário da matança, na expressão do autor, narra com texto sereno e duro as responsabilidades e os mecanismos que possibilitaram o genocídio ruandês. Algumas biografias e relatos pessoais, de testemunhas e sobreviventes, dão um vivo viés de gente real a uma história quase sempre distante, considerada, por excelência, como a história do outro. Hatzfeld volta-se, ainda, para uma questão crucial: como continuar vivendo, e é imperioso viver para os sobreviventes, com a presença da "matança". A resposta do autor, plena de responsabilidade e sabedoria, por meio de um dos relatos, é clara: o perdão.
As matanças extrapolaram, o perdão também extrapola.


Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor de história contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Uma Temporada de Facões
288 págs., R$ 44
de Jean Hatzfeld. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).


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