|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
"Uma Temporada de Facões" faz uma espécie de "diário da matança" de 800 mil em Ruanda
No coração das trevas
FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Gostaríamos de dizer, como
o faz um dos entrevistados
de Jean Hatzfeld em "Uma
Temporada de Facões",
que a África é estranha aos genocídios. Sua dor, os homens e as terras
que sangram, o fazem pela imposição de outro, do estranho e do estrangeiro. Essa é no mínimo uma
meia verdade, no máximo uma concessão benevolente. A história da
África, depois do século 15, foi, e
continua sendo, uma história de
dor, mortes e empobrecimento. A
alegria que salta aos olhos do visitante, seja em Maputo, Dar-es-Salam ou Kinshasa, é apenas mais uma
forma de viver, uma estratégia, talvez mágica, em meio à possibilidade
concreta de o continente tornar-se a
maior tragédia humanitária do século 21.
Em meio a tanta dor, um episódio
-e vejam, apenas um episódio entre outros- inscreve-se na história
de Ruanda: o genocídio dos anos
1990.
Trata-se de um pequeno país, de
quase 9 milhões de habitantes, plantado em terras férteis e ricas da região dos grandes lagos d'África. A
colonização branca -alemã e depois belga, sob a suserania da França- trouxe forte desequilíbrio, escolhendo alguns grupos étnicos e
culturais como ponto de apoio da
presença européia, em detrimento
de outros. Forjou-se uma história,
nobre para uns; de submissão e inferioridade para a maioria. Mesmo a
Igreja Católica, seja pela hierarquia
local, seja pelo silêncio -ainda uma
vez o silêncio!- do Vaticano, no
mínimo, permitiu, deixou de evitar,
a matança.
Uma versão oficial da história de
Ruanda fala em uma minoria de
pastores-guerreiros, oriundos do
vale do Nilo, os tutsi -cerca de 9%
da população total-, que ocupam
uma bela região o país das mil colinas já povoado por uma maioria de
camponeses de origem bantu, os hutu. Um sistema de relações familiares e de dependência pessoal gera
uma ampla rede de trocas, materiais
e simbólicas, entre as duas comunidades. Os casamentos interétnicos
são comuns.
O preço da dominação dos pastores-guerreiros tutsi foi a relativa segurança dada ao país, com o afastamento dos mercadores de escravos,
poupando a massa bantu/hutu dos
horrores que seus vizinhos no Congo ou Angola sofriam.
A ocupação européia escolhe os
tutsi como pilar de sua ação, culminando na conversão de sua elite ao
catolicismo em 1931. Quando a independência é proclamada, em 1961, a
ascensão dos hutu ao poder preocupa e assusta seus antigos senhores
tutsi, começando então uma história
de perseguições, saques e mortes.
Luta pelo poder
Ruanda, 1990: as relações entre os
dois grupos étnicos centrais do país
deterioram-se, apontando para uma
crise de grande brutalidade. Os tutsi,
a minoria favorecida pelo colonialismo belga (que chega a formular uma
falsa teoria antropológica para provar a superioridade dos tutsi), são
afastados do poder pela maioria hutu, que os consideram estrangeiros e
aliados de inimigos do país (em especial de Uganda).
Após derrubar o poder tutsi, e tendo como pretexto a morte do presidente Jouvenal Habyarimana, em
um acidente aéreo em 1994, inicia-se
uma longa campanha de assassinatos coletivos, incentivados pela mídia -a Radio des Milles Collines-,
pela Igreja Católica local e por várias
instituições estatais. Milícias de hutu
atacam residências, igrejas, clubes e
escolas, massacrando com facões
membros da etnia tutsi. A ONU,
chamada a intervir, perde-se em
longas "démarches" diplomáticas, o
que permite que pelo menos 800 mil
pessoas (tutsi e hutu moderados) sejam mortas, enquanto alguns milhares fogem em condições desumanas
para o Congo (Ex-Zaire).
Em Ruanda, ao contrário do terceiro Reich, não havia um poder totalitário, uma ideologia racial dominante e um partido transformado
em arma inumana. Como explicar a
tragédia: Hatzfeld oferece, ainda
uma vez, o relato de um sobrevivente: "...Foram manobras sobrenaturais de pessoas bem naturais!".
Mais de 60 anos depois do terror
da "solução final", do estabelecimento do genocídio como crime de
direito internacional, sancionado
pela ONU, repetia-se no coração da
África -naquele momento o próprio "coração das trevas"- o terror
genocidário.
O genocídio, expressão criada em
1944, na obra "Axis Rule in Occupied Europe" [Controle do Eixo na
Europa Ocupada], do jurista polonês, de origem judaica, Raphael
Lemkin, visava dar estatuto jurídico
específico aos crimes de guerra de
massa praticados contra as minorias
étnicas, religiosas ou culturais durante a Segunda Guerra Mundial.
Mais tarde, em 1948, as Nações Unidas inscreveram o genocídio nos
seus estatutos como o mais grave
crime contra a humanidade.
A expectativa da resolução de 1948
era de dar conteúdo à exigência gravada em pedra no campo de concentração de Dachau: "Nie Wieder",
Nunca mais! Contudo, tais expectativas foram frustradas, não só em
Ruanda, como ainda no Camboja ou
na ex-Iugoslávia.
No pós-Segunda Guerra Mundial,
malgrado os antecedentes dos genocídios hereró, armênio, cigano e da
massificação do assassinato de judeus, todos consideravam a repetição da tragédia como impossível.
Contudo outros processos de extermínio em massa foram colocados
em prática, como em Ruanda.
O livro de Hatzfeld, quase um diário da matança, na expressão do autor, narra com texto sereno e duro as
responsabilidades e os mecanismos
que possibilitaram o genocídio
ruandês. Algumas biografias e relatos pessoais, de testemunhas e sobreviventes, dão um vivo viés de
gente real a uma história quase sempre distante, considerada, por excelência, como a história do outro.
Hatzfeld volta-se, ainda, para uma
questão crucial: como continuar vivendo, e é imperioso viver para os
sobreviventes, com a presença da
"matança". A resposta do autor, plena de responsabilidade e sabedoria,
por meio de um dos relatos, é clara: o
perdão.
As matanças extrapolaram, o perdão também extrapola.
Francisco Carlos Teixeira da Silva é professor de história contemporânea na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Uma Temporada de Facões
288 págs., R$ 44
de Jean Hatzfeld. Tradução de Rosa Freire
d'Aguiar. Companhia das Letras (r. Bandeira
Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/ 11/ 3707-3500).
Texto Anterior: 'A tristeza é minha' Próximo Texto: + livros: Política como técnica Índice
|