São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

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+3 questões Sobre Sigmund Freud

1. Qual é o principal legado de Freud?
2. Em que medida suas teorias ainda valem hoje?
3. Qual é sua opinião sobre a polêmica que envolveu a mostra "Conflito e Cultura", nos EUA?


Betty Fuks responde

1.
A fundamentação do método de cura no qual um homem, falando para aquele que lhe oferece uma escuta singular, encontra alívio à dor e à angústia que o afetam. Uma prática clínica iconoclasta, capaz de levar o sujeito a migrar da multidão familiar para, nesse êxodo, encontrar sua singularidade, seu estilo e diferença absoluta.
Enfim, Freud legou instrumentos teórico-clínicos precisos, capazes de convocar a alteridade a desfazer os jogos de espelhos e de direcionar o sujeito a apropriar-se de sua própria verdade, no reconhecimento da existência do outro.

2.
Freud dedicou a vida a pensar o não-idêntico. Sua própria escrita teórica exige do leitor acompanhar o movimento erradio da letra, acatar os brancos dos textos e ultrapassar todo e qualquer conhecimento convertido em saber. O vigor da teoria permanece intacto, e os alicerces de sua metapsicologia, inabaláveis. Por exemplo, na aurora do século 20, ao virar pelo avesso a visão que o homem tinha de si mesmo, ele não apenas criou o conceito de pulsão como revelou que o caráter de errância dessa força, que é de todos os tempos e de todos os homens, sempre exigirá do analista um pensamento voltado ao desconhecido, ao não-familiar.

3.
Patética. Mas, se considerarmos a história da psicanálise, desde seus primórdios, como a história da resistência à idéia de que nossas pulsões não podem ser inteiramente domadas, entende-se melhor o porquê de tamanha violência intelectual num mundo onde, cada vez mais, se procura dominar os sujeitos e calar o desejo. É interessante lembrar que certa vez Freud, ao chegar aos Estados Unidos, disse que os norte-americanos, em sua ingenuidade, não poderiam nem imaginar que ele estava lhes trazendo a peste. Pobre Freud: um século depois, nesse mesmo país, alguns intelectuais disciplinados e politicamente corretos se deram conta do "perigo" e não mais deixaram de insistir em erradicar a peste do planeta.

Nelson Ascher responde

1.
O legado mais difundido de Freud é um conjunto de mitos sobre o ser humano, mitos esses que permearam muito da cultura popular e de massa, chegando mesmo a influenciar alguns poetas, escritores e pensadores importantes.

2.
A atração exercida pelas idéias de Freud se deve ao fato de combinarem um esquema explicativo relativamente simples, mas que dá conta de praticamente tudo, com uma imagem misteriosa, profunda e complexa do ser humano, uma imagem que torna, debaixo de sua superfície banal, qualquer pessoa interessante.
E tudo isso, oferecido com sobretons de segredo ritualístico perigosamente ousado e se escorando num fraseado com ares científicos, serve para justificar uma terapia demorada e dispendiosa, que apenas insinua, embora jamais declare, quais os males com que se propõe lidar, sem dar, no entanto, nenhuma garantia de que possa debelá-los. Diante de problemas como alcoolismo e tabagismo, impotência e frigidez, fobias e depressão, que devem levar muita gente aos divãs, os resultados da psicanálise, após décadas, parecem modestíssimos. Quanto às teorias do vienense, como não foram geralmente formuladas de modo a poderem ser empiricamente verificadas ou refutadas, elas continuam valendo da mesma forma que valiam quando foram criadas, ou seja, valem para aqueles que, de antemão, acreditam nelas.

3.
Há poucos países nos quais a psicanálise ainda conta com a aceitação acrítica que a envolve no Brasil, na Argentina e na França. Nos EUA, além de ter de competir com centenas de outras terapias, ela também está sujeita ao escrutínio e contestação de pensadores, filósofos e cientistas das mais variadas orientações. Quando alguns destes perceberam que o prestígio da Biblioteca do Congresso bem como verbas públicas iriam ser usados, na mostra sobre Freud, para legitimar e promover um único ponto de vista entre muitos, o da ortodoxia freudiana, eles fizeram circular um abaixo-assinado propondo que a mostra, sim, se realizasse, só que incorporando uma gama mais democrática de opiniões. Ortodoxia e pluralidade de idéias, no entanto, não combinam. E assim começou a polêmica.

QUEM SÃO

Betty Fuks
É psicanalista e ensaísta. Professora do curso de especialização em psicologia clínica na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), está publicando "Freud e a Judeidade" (Jorge Zahar Editor).

Nelson Ascher
É poeta, ensaísta e tradutor. Articulista da Folha, é autor de "Algo de Sol" e "Pomos da Discórdia" (Editora 34).


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