São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2000

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Chega ao Brasil no dia 26, no Masp, a controversa exposição dedicada ao autor de "A Interpretação dos Sonhos"
Freud - conflito e cultura

Reprodução
Divã de Sigmund Freud (1856-1939); ao fundo, imagem de escritório do psicanalista em Viena (Áustria)


Crise da psicanálise nos EUA, reafirmada pela série de protestos ocorridos na época da exposição da Biblioteca do Congresso, comprova a voga neomoralista que assola o país
Exposição Fred

por Sérgio Paulo Rouanet

No dia 26 de setembro, será inaugurada no Museu de Arte de São Paulo (Masp) uma grande exposição dedicada à vida e à obra de Sigmund Freud (1856-1934). A exposição teve início em Washington, DC (EUA), na Biblioteca do Congresso, que detém o maior acervo do mundo de documentos relacionados com o fundador da psicanálise. Depois de Washington, onde esteve de outubro de 1998 a janeiro de 1999, a exposição deslocou-se para Nova York, Viena e Los Angeles, de onde virá para o Brasil.
A iniciativa da Biblioteca do Congresso desencadeou nos Estados Unidos uma tempestade de protestos. Segundo seus críticos, a exposição serviria apenas para a glorificação de Freud e para a consolidação do establishment psicanalítico, sem abrir espaço para a furibunda contestação a Freud que está sacudindo a sociedade americana. Desde seu nascimento, a psicanálise tem sido abalada por diversos movimentos sísmicos. Mas o terremoto mais recente, que já dura alguns anos e quase levou ao cancelamento da exposição de Washington, foi certamente o mais violento.
Em parte, os ataques vieram do campo "politicamente correto". Freud teria descrito a sexualidade feminina em termos patriarcais, falocêntricos e estigmatizado o homossexualismo, vendo-o como uma enfermidade.
Mas outros ataques tiveram caráter mais teórico, procurando desacreditar a validade científica da psicanálise. Adolf Grünbaum, por exemplo, publicou em 1984 um livro muito influente, "The Foundations of Psychoanalysis", em que tentou mostrar que os argumentos de Freud para validar suas teorias careciam de base empírica. Freud alegara que essas teorias eram verdadeiras porque se fundavam nas observações clínicas, mas estas, para Grünbaum, são irremediavelmente "contaminadas" pela sugestão do analista, pelo desejo do analisando de corresponder às expectativas do seu analista e pela seletividade com que o analista escolhe para fazer suas interpretações certos elementos do material clínico, deixando outros de lado.
O tom dessas objeções ainda foi moderadamente polido. Outros críticos, no entanto, mostraram uma truculência de caubóis, atirando primeiro e fazendo perguntas depois. Essa tiroteio foi iniciado por Frederick Crewes, autor de um artigo publicado em 1993 no "The New York Review of Books". Para esse xerife da epistemologia positivista, as idéias de Freud nunca tiveram nenhuma confirmação independente, ele tinha trabalhado sempre com base em intuições fragmentárias, dirigira um movimento que era menos um empreendimento científico que um politburo destinado a caçar dissidentes, ignorara totalmente o que fosse uma verdadeira explicação causal, fabricara conceitos "ad hoc", como o de transferência negativa e o de resistência, com o único fim de justificar seus fracassos terapêuticos, criara um pseudoconceito, o de repressão, para controlar um pseudofenômeno, a existência de impulsos infantis de caráter edipiano, e inventara uma terapia que não era mais que uma lavagem cerebral, baseada numa técnica, a livre associação, incapaz de fornecer qualquer informação que não tivesse sido sugerida pelo analista.
Em suma, fora responsável "pelo maior conto-do-vigário do século 20".
Os ataques do primeiro grupo ignoram a originalidade essencial da descoberta freudiana, que separou a sexualidade da reprodução, com isso deixando claro que o heterossexualismo não é nem a expressão "natural" do desejo erótico nem uma consequência "natural" da diferença anatômica dos sexos. Para Freud, a "masculinidade" é pelo menos tão problemática quanto a "feminilidade".
As críticas do segundo grupo são respondidas com a afirmação de que as acusações de falta de cientificidade não atingem a psicanálise. Para alguns dos seus defensores, ela é uma ciência hermenêutica, cujos critérios de verificação não são os mesmos que os aplicados às ciências naturais, e sim os que se dão no interior da própria relação clínica. Nesta, a validação é possível porque a técnica psicanalítica dispõe dos métodos apropriados para evitar a "contaminação". Para outros, a psicanálise é, sim, uma ciência natural e pode ser corroborada por métodos experimentais. Mas quero concentrar-me aqui numa estratégia defensiva que em geral não tem boa reputação entre os empiristas: a de ver nos ataques uma prova de resistência à psicanálise.
Essa estratégia foi articulada pelo próprio Freud, que desde o início teve uma vasta experiência com a animosidade despertada pela psicanálise. Os detratores da nova disciplina, para ele, tinham violado "todas as leis da lógica, da decência e do bom gosto", muitas vezes fazendo com que ele se sentisse como um "malfeitor", exposto "num pelourinho aos insultos da ralé". Por que tanta hostilidade? A resposta é dada pela própria psicanálise. Essa rejeição tão maciça era um fenômeno de "resistência". As pessoas reagiam à psicanálise, primeiro, porque era uma ciência nova e, segundo, devido ao próprio objeto dessa ciência.
Exatamente por ser uma ciência, a psicanálise está comprometida com o novo. Ela abre caminhos, faz descobertas que perturbam as velhas rotinas. Ora, há algo na natureza humana que resiste ao novo. Esse misoneísmo, essa fobia do novo ("Scheu vor dem Neuem") deriva da atitude infantil de rejeição com que reagimos nos primeiros anos de vida a uma criança recém-nascida. Foi o que ocorreu com essa outra teoria científica nova, a de Charles Darwin (1809-1882), que suscitou tanto escândalo quanto a gerada pela psicanálise. Por ser ciência, a psicanálise está condenada a despertar resistências desse tipo. Pode-se dizer mesmo que só a ciência desperta resistências. Uma simples visão do mundo raramente origina tais resistências. A propriedade da ciência é ser "resistível". A "resistibilidade" da psicanálise é um corolário do seu estatuto científico.
Mas a psicanálise provoca resistências, em segundo lugar, pelo seu objeto. Desde o prefácio dos "Três Ensaios", Freud dizia que tais resistências vinham em grande parte da concepção ampliada de sexualidade que a psicanálise propunha. Mais tarde a resistência passou a provir, também, de outra coisa inaceitável, o inconsciente. "A psicanálise quer elevar os materiais psíquicos recalcados ao nível do reconhecimento consciente, e cada homem que a julga é ele próprio alguém que possui tais recalques e que talvez só os conserve com grande esforço. A psicanálise desperta nessas pessoas a mesma resistência que nos pacientes, e essa resistência consegue facilmente revestir um disfarce intelectual e mobilizar argumentos, do mesmo modo que os brandidos por nossos doentes, quando se revoltam contra a regra fundamental da análise. Como os doentes, também nossos adversários se caracterizam muitas vezes por uma sensível deterioração de sua capacidade de julgamento, em decorrência de fatores afetivos. Há as mesmas resistências nessas pessoas que nos doentes, os mesmos argumentos, afetos travestidos de razões."
Faz parte da natureza humana, com efeito, considerar errado aquilo de que não gosta e por isso se "disputa a veracidade da psicanálise com argumentos lógicos e factuais, mas procedentes de fontes afetivas, e essas objeções se mantêm, sob a forma de preconceitos, resistindo a todas as tentativas de refutação". A psicanálise é combatida, enfim, porque ela é uma fonte de humilhação para o ego, infligindo-lhe a terceira "ferida narcísica" depois que Copérnico mostrou que a Terra não é o centro do universo e que Darwin reinscreveu o homem no reino animal. Com a psicanálise, o ego descobre que "não é dono de sua própria casa, dada a influência determinante da sexualidade e o fato de que grande parte da vida mental se dá fora da consciência".

Nova onda
Para evitar a circularidade autovalidadora de que se queixam com alguma razão filósofos como Karl Popper (1902-1994), é preciso manejar com muito cuidado esses argumentos, para que a crítica à psicanálise não seja vista como um sintoma que só a própria psicanálise pode explicar. Mas, diante das invectivas de energúmenos como Crewes, esses argumentos não podem ser descartados. Eles adquiriram maior plausibilidade com a novíssima vaga de críticas à psicanálise, desfechadas nos EUA. À primeira vista, essa afirmação é surpreendente. Se a correlação entre repressão sexual e resistência à psicanálise é verdadeira, nada faria prever que tal resistência atingisse a virulência que atingiu justamente nos EUA, país que parece ter levado mais longe que muitos outros a liberação sexual.
Pelo contrário, a meu ver a atual crise da psicanálise nos EUA confirma perfeitamente a correlação postulada por Freud. A sociedade americana que ele conheceu em 1909, e com relação à qual ele sempre teve uma atitude de condescendência irônica, era essencialmente puritana. Freud se divertia com a afirmação de uma senhora americana de que as mulheres austríacas podiam sonhar aquelas obscenidades, mas que as cidadãs dos EUA tinham sonhos mais respeitáveis. Tudo isso parece ter mudado na época da "new left", durante a qual teria ocorrido uma revolução sexual, mas duvido que esses novos comportamentos tenham chegado à "América profunda". Em todo caso, desde os anos 80 está se produzindo uma reação nos EUA contra a permissividade que caracterizou os anos 60.
O país está sendo assolado por uma vaga neomoralista alimentada por duas tendências opostas. Uma vem da direita religiosa. À esquerda, certas feministas atacam um filme como "Lolita", em nome da dignidade da mulher e da repressão à pedofilia, com a mesma cólera sagrada com que suas mães e avós condenavam "Ulysses" ou "O Amante de Lady Chatterley". As duas correntes parecem ter se aliado para produzir o espetáculo espantoso, em pleno século 20, de um presidente ameaçado de impeachment por ter tido uma relação com uma estagiária da Casa Branca.
Creio que esse neomoralismo afetou consideravelmente a atitude com relação à psicanálise. Essa atitude talvez tenha sido prenunciada por Geoffrey Masson, quando escreveu um livro escandaloso em que acusava Freud de ter abandonado sua teoria da sedução infantil para não agredir demasiadamente o público vienense. A hipótese é absurda, porque a nova teoria, que proclamava a existência da sexualidade infantil, era infinitamente mais chocante. Mas o caso Masson é interessante exatamente por causa desse disparate. Regredindo à idéia da sedução infantil, cujo abandono por Freud abriu o caminho para a descoberta do complexo de Édipo e para o advento da psicanálise propriamente dita, Masson estava regredindo, também, à antiga concepção vitoriana da inocência infantil. A criança freudiana é incestuosa e parricida; a de Masson, e a dos EUA de hoje (quando ela não está metralhando suas colegas de escola) é tão angelical quanto Pollyanna. Sim: dentro de certos limites, a "freudofobia" dos EUA de hoje é explicável à luz das categorias criadas pelo próprio Freud.
Não há motivo, entretanto, para que os brasileiros se sintam superiores aos americanos por causa disso. É verdade que a recepção da psicanálise pode variar segundo as características específicas de cada sociedade, mas não há nenhuma diferença cultural suscetível de relativizar a universalidade dos seus conceitos básicos, entre os quais está o conceito de resistência. Ela existe no Brasil com a mesma força que do outro lado do Atlântico, mas talvez se alimente de outras fontes. Quem sabe se entre nós a resistência viria, não da repressão sexual, mas do horror à razão? Para Freud, não há nenhuma instância acima da razão, mas ele sabe que seu primado só pode ser estabelecido depois de um caminho longo e difícil. O irracional é mais prazeroso.
Como diz Freud, "a razão que nos recusa tantas possibilidades de prazer se converte em inimiga. O homem descobre como é agradável escapar dela, pelo menos por algum tempo, cedendo às tentações do absurdo". Num país que voltou a acreditar em anjos e duendes, nada é mais sedutor que a desrazão nem mais perigoso que uma teoria, como a freudiana, que nos confronta com uma exigência de racionalidade permanente. Na dúvida, é melhor imitar os americanos, boicotando a exposição Freud. Não, não iremos ao Masp. Talvez assim consigamos nos livrar da obrigação de pensar, assim como os americanos, benza-os Deus, devem ter conseguido, com seus protestos, livrar-se dos seus fantasmas incestuosos e de suas tentações pedófilas.


Sergio Paulo Rouanet é diplomata e ensaísta, autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".



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