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Em romance que acaba de ser lançado nos EUA, Israel
Rosenfield narra a descoberta de um manuscrito fictício de Freud em que é exposto o conceito de 'megalomania alucinatória'
Um capítulo oculto na história da psicanálise
por Adam Phillips
Freud nos mostrou novas maneiras de ter curiosidade em relação às vidas das pessoas. E, se sua reticência em relação a sua própria vida privada tem
sido vista por algumas pessoas como provocação,
o fato é que ele também ajudou essas pessoas ao lhes
prover de formas de desconfiança e métodos de investigação.
Ele lhes mostrou onde procurar para encontrar um
escândalo -numa vida erótica negada (ou seja, vergonhosa) e na agressão do desejo por prestígio. Freud fez
tudo o que pôde para nos mostrar o quanto somos fingidos, apaixonados pelo disfarce e pelo fantasiar-se de
outras pessoas -e que exibimos nossa maior inventividade quando se trata de ocultar quem somos. Não teria
sido novidade para Freud -como Israel Rosenfield
quer nos fazer crer em seu primeiro e fascinante romance, "Freud's Megalomania" (A Megalomania de
Freud)- que as pessoas têm algo a esconder e que a
pessoa da qual cada um melhor consegue esconder as
coisas é ele ou ela mesmo(a).
As pessoas tendem a mostrar seu lado mais freudiano
quando desmascaram Freud. O desejo de expor Freud
ou de desacreditar sua obra -de expô-lo como tendo
sido indecente em sua vida pessoal e de ter agido com
má-fé em sua vida profissional- parece vir apenas para confirmar uma de suas sugestões mais úteis: a de que
podemos conhecer as pessoas melhor se pensarmos nelas como sendo dissimuladas ou afeitas ao sigilo.
Se a "megalomania" do título do livro de Rosenfield
joga com as chamadas guerras freudianas, fazendo alusão à idéia de que a vontade de poder de Freud era um
pouco maior do que sua veracidade, também constitui
um tributo a Freud como alguém que enxergava o ego
consumido por seu apetite pelo logro de si mesmo. Como insiste Rosenfield, a megalomania, de uma maneira
ou de outra, é a ilusão de que não está ocorrendo nenhuma auto-ilusão.
No romance de Rosenfield, "megalomania" se refere
ao título da recém-descoberta e traduzida última obra
de Freud, um manuscrito que ele teria dado a sua amante como legado para a filha ilegítima dos dois, que havia
deserdado. Faz parte da engenhosidade do livro o fato
de que Rosenfield, com plena consciência do que faz,
explora de maneira informada e divertida tanto as mais
grosseiras desconfianças que nutrimos em relação a
Freud quanto o mais familiar dos conceitos da ficção
moderna: a suposta descoberta de um documento crucial.
Se a obra de Freud diz respeito ao oportunismo da
memória, a nosso passado enquanto recurso mais essencial e incerto, o romance de Rosenfield utiliza uma
falsa memória -um trecho fictício do passado de
Freud, algo que nunca aconteceu- para mostrar e narrar algumas coisas muito interessantes que dizem respeito não apenas a Freud e à psicanálise, mas também
ao poder das pessoas influentes em nossas vidas. O livro
nos pede que olhemos para nós mesmos olhando para
Freud e nos indaguemos o que queremos (ou queríamos) dele e o que ele queria de nós.
Os prazeres do pastiche
"Freud's Megalomania"
é apresentado cuidadosamente de maneira a sustentar
nossas expectativas, mas também a garantir que não
nos esqueçamos dos prazeres do pastiche. Sabemos que
tudo isso não é real, mas Rosenfield faz com que tenhamos vontade de saber até que ponto ele vai saber inventá-lo (ou seja, somos colocados na posição de um tipo
de analista). O romance tem introdução de um certo
professor Albert J. Stewart, que nos conta sobre a origem do manuscrito -tanto como ele se enquadra na
turbulenta trajetória da obra de Freud quanto como esse capítulo oculto da história da psicanálise se encaixa
dentro de uma história pessoal ainda mais turbulenta.
Mas o professor Stewart não é freudiano. O primeiro
parágrafo de sua introdução é uma sentença contundente: "Nunca gostei de Freud". No entanto mesmo essa declaração tão simples nos leva a nos indagar se estará fazendo referência à obra ou ao homem.
De fato, logo no início do romance parece -sem razão, conforme ficamos sabendo depois- que estamos
sendo conduzidos por um guia mais do que familiar.
"Por muito tempo acreditei", escreve Stewart, que
Freud "tinha cometido a pior lavagem cerebral da história". Mas é claro que, como qualquer pessoa que nos
conta uma história, Stewart tem uma série de prioridades complicadas. A idéia é que essa não seja apenas a
história de um manuscrito perdido, de um período da
vida de Freud. Ela também envolve a relação complexa
de Stewart com outro brilhante "líder... professor...
mestre... homem", seu amigo e colega de profissão Norman Dicke.
Dicke é neurocientista e, como Freud, inventor de outra explicação de tudo, chamada, muito apropriadamente, de teoria do laço (um de seus muitos pronunciamentos memoráveis é "somos laços e enlaçamos"). Para Stewart, assim como para Freud em sua obra final e
felizmente descoberta, a questão não é a de saber se "estarão esses chamados gênios, os Freuds e Dickes do
mundo, nos falando a verdade sobre nós mesmos e todo o resto", mas sim saber "o que nos torna tão influenciáveis por esse tipo de pessoa". Como se explica que
suas palavras ao mesmo tempo nos estimulem e nos
hipnotizem tanto?
É em "Megalomania" que Freud finalmente enxerga
através -através e dentro- da natureza da autoridade. "Sabemos demais para podermos aceitar afirmações grandiloquentes", escreve o Freud de Rosenfield,
com ironia apropriada. O que esse Freud propõe em
sua última obra -e o texto de "Megalomania", que
ocupa quase metade do romance, é ao mesmo tempo
um triunfo de ventriloquismo e uma peça notável de
teoria "freudiana" lúcida- é o conceito do "superego
alucinatório".
Inteligência de Freud
"O superego alucinatório",
escreve esse Freud, "representa uma relação especial
entre o indivíduo e a totalidade do conhecimento". Essa
revelação se torna uma crítica que desmonta a ciência
do próprio Freud e, por isso mesmo, reinstala Freud na
categoria da inteligência suprema. "O que sabemos e
não ousamos falar", escreve ele, "é que o valor do homem é sua habilidade em falsificá-lo, de reagir em circunstâncias em que sua ignorância é total, sem revelar,
nem por um momento sequer, até que ponto é ignorante".
É o megalomaníaco -a quem Freud, neste livro, chama de psicótico e que é internalizado como superego
alucinatório, uma figura de autoridade "Übermensch"
(super-homem)- que parece nos curar de nossa ingenuidade exagerada e nos confere tanta sede de aprendizado. O megalomaníaco é a pessoa capaz de nos convencer de que ele sabe o que importa. E saber o que importa parece fazer com que nós tenhamos importância.
"Não é o conteúdo do pensamento do megalomaníaco
que é importante para ele", escreve Freud em "Megalomania", "mas sua capacidade de criar importância a
partir do nada".
O que mais chama a atenção nesta última e fictícia
obra de Freud -e parece ser exatamente correto, como
também parecem ser tantos dos julgamentos de Rosenfield neste livro maravilhosamente pensado- é sua característica abertamente autobiográfica.
Ela mostra Freud criando teoria a partir das circunstâncias imediatas de sua vida. E o romance é especialmente pungente quando evoca, sem cinismo, a ambição de Freud e o impacto devastador da Primeira Guerra Mundial sobre cada uma de suas impressões. Para resumir, "Freud's Megalomania" é um triunfo da síndrome da falsa memória à qual chamamos ficção contemporânea.
Adam Phillips é escritor e psicólogo, autor, entre outros, de "Monogamia" (Companhia das Letras). Este texto foi escrito originalmente
para o "The New York Times Book Review".
Tradução de Clara Allain.
Onde encomendar:
"Freud's Megalomania" (W.W. Norton & Company, Nova York,
US$ 21,95), de Israel Rosenfield, pode ser encomendado, em SP,
na FNAC (tel. 0/xx/11/ 867-0022) e, no RJ, na livraria Leonardo
da Vinci (tel. 0/xx/21/ 533-2237).
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